O cartaz era este. Um tipo com uma capa de super-herói, em mais um episódio de ação, com a sua equipa de ajudantes. O local era um antigo recinto do Euro2004, um em que Portugal nunca tinha perdido e onde era, para além da invencibilidade, obrigatório triunfar.

A bem da humanidade, digamos, porque é isso que se espera que Cristiano Ronaldo faça. Que espante o mundo com os seus golos e feitos e nos abra a todos sorrisos. Até na Irlanda, onde a derrota terá custado, alguém terá dito: incrível. Sim, incrível, de facto, até porque fazer dois golos nesta noite foi totalmente inesperado, apesar de sabermos, todos nós que viemos ver o super-herói e o seu filme, que isto termina muitas vezes assim. Mesmo que, pelo meio, a película não seja grande coisa, vai-se sempre reconfortado, como se o bem vencesse o mal: neste caso, nem tanto a seleção irlandesa, mas sim a quase totalidade da exibição portuguesa.

Havia o regresso de Ronaldo ao United para alimentar o jogo, havia a possibilidade de se tornar o maior goleador de seleções de todos os tempos, havia o regresso da seleção a um relvado português após o Euro2020 e até havia um povo do outro lado dado a festas aqui no Algarve.

Na véspera, Fernando Santos dissera que a Irlanda era uma equipa que até tentava mudar o seu estilo mais comum, parecido ao old school britânico de kick and rush. Verdade, o selecionador tinha razão. Os irlandeses aprenderam a fazer bom whiskey, a fazer boa música, mas ainda não aprenderam a sair para o ataque com uma construção trabalhada na defesa.

Portugal pressionou ligeiramente e Bazunu teve de emendar o erro dele e de Hendrick com uma defesa espetacular a penálti de Cristiano Ronaldo. Ficou 0-0 no marcador, levou uma recordação para a vida o guarda-redes e o nosso super-herói, como no melhor dos argumentos, perdia a primeira batalha.

Entra essa história e outra, a de Egan a voar para o golo irlandês, há uma pergunta: por que é que Portugal, desde o penálti, só conseguiu criar uma situação de perigo para a baliza adversária? Palhinha até guardava bem as costas do ataque, mas a conexão Bruno Fernandes-Bernardo Silva não foi na prática, aquilo que toda a gente pensa que pode ser na teoria.

Os dois criativos, mais Rafa Silva e Cristiano Ronaldo estiveram absolutamente desligados uns dos outros e só quando Cancelo recebia na direita, se conseguia alguma coisa. Foi assim que Jota, esse sim, nunca perde rotação, atirou ao poste para, logo de seguida, Portugal voltar a ser óbvio no ataque. A Irlanda só teve de manter linhas e acreditar que num lance qualquer conseguia ir lá à frente marcar.

Pois bem, os irlandeses podem querer ser outra coisa futebolisticamente, mas foi num dos elementos mais rudimentares da sua prática que terminou no 1-0: canto e golo. A Irlanda é menor na habilidade, no talento, até no geral e tudo o resto. Era à seleção a quem pertencia a prova desta última frase, mas ela chegou com muito atraso, ainda que Jota desse um sinal, com um remate para fora, mesmo a terminar o primeiro tempo.

As trocas, mais trocas e Ronaldo nos 111

Fernando Santos ainda demorou 15 minutos a perceber que a dupla Bruno Fernandes-Bernardo Silva não estava a funcionar. Por isso, tirou o médio do Manchester United. Rafa tinha saído antes, verdade, mas isso merece apenas um apontamento, tal como a exibição do extremo do Benfica.

Com João Mário entrou também Nuno Mendes, mas foi o camisola 23 quem melhorou o jogo português. A posse foi mais fluída, teve mais conexão, mas era preciso fazer mais coisas: aumentar a pressão, dar ainda mais rapidez à posse, abrir pelas alas e servir André Silva e Cristiano Ronaldo.

Entrou Moutinho, entrou Guedes, a Irlanda recuou e, quando parecia que o tempo se ia esgotar e os visitantes levar três pontos, Guedes e João Mário meteram a bola no ar, Cristiano Ronaldo vestiu a capa de super-herói e, mais uma vez, como uma sequela que se repete, saiu como o maior, num jogo que não o foi de uma seleção, que lidera, isolada, o grupo de qualificação para o Mundial 2022.

No fundo, este é um filme de uma saga que vai longa. Começou com o rapaz a fazer um golo à Grécia, em 2004, passou por mundiais, por europeus, por Paris e uma equipa que o ajudou a ele a atingir a glória quando ele próprio estava ferido. Agora, estamos na parte em que o herói, já mais velho, ainda tem golo para ajudar uma seleção que lida com dilemas internos, como este de fazer todo aquele talento a ser ótimo e constante durante 90 minutos.

artigo atualizado