Crónica de Marco António, jornalista da TVI e fã da NFL

Na América, o desporto é muito mais do que simplesmente desporto. É espetáculo, luz e cor, apetece dizer. Em termos de organização, tudo é feito por parte de atletas, equipas e ligas com uma perfeição impressionante para que da parte dos adeptos (a palavra fãs, que os americanos utilizam, até é a mais correta, tal é a noção de show que implica um espetáculo desportivo) o amor pelos seus desportos e os seus desportistas cresça sempre, pela positiva, nunca em sentido contrário. É por esta necessidade de perfeição que o caso de Ray Rice - um dos melhores e (até agora) mais bem-amados jogadores da NFL - é muito mais do que uma nódoa num pano que a liga de futebol americano deseja sempre ter imaculado. E ter todo um país e até Barack Obama a falar publicamente sobre o assunto não ajuda, definitivamente.

É claro que a perfeição nunca é total e muitos casos já houve a prová-lo; no entanto, a prontidão e firmeza com que a NFL, o seu comissário («presidente» da liga) e até o público em geral com a sua reação mais ou menos enérgica lidam com os casos mais sensíveis mantém os «fãs» apaixonados pelo seu desporto. Para quem segue o desporto favorito da América, o futebol americano e a NFL em particular, as questões que o caso Ray Rice levantam são muitas mais que as respostas que se obtém.

Por que razão o video da agressão do jogador à (na altura) noiva demorou mais de seis meses a ser conhecido num país que, por exemplo, soube (pelo mesmo site TMZ) da morte de Michael Jackson minutos depois do sucedido? Por que razão foi Rice inicialmente tão protegido (suspenso apenas por dois jogos pela NFL e defendido pela equipa que representava) apesar de o primeiro video conhecido do incidente mostrar claramente que a situação era grave? Por que razão, foi a NFL - tão eficaz em casos anteriores - tão ineficaz a investigar o caso de Ray Rice? Por que razão só quando o evidente se tornou inquestionável houve consequências a sério neste caso?

A NFL continuará a ser bem-amada. Rice não. Foi despedido pelos Ravens e suspenso por tempo indeterminado pela NFL. Mas há outras dúvidas por esclarecer. Os Ravens, que em primeira instância deviam ter feito a coisa certa, sofrerão consequências da defesa de um agressor? E Roger Goodell, «patrão» da NFL, ficará no cargo por, ao contrário do que é seu apanágio, ter (pelo menos, aparentemente) feito vista grossa a um dos maiores casos da história quase perfeita do futebol americano?  

PS: Já depois de escrever as linhas anteriores surgiram (mais) duas notícias curiosas acerca deste caso. Uma, que os Baltimore Ravens anunciaram (via Twitter) que todo e qualquer adepto que queira desfazer-se da sua camisola personalizada com o número (#27) e nome de Rice poderá fazê-lo gratuitamente nas lojas oficiais de merchandising no estádio da equipa, em Baltimore; em troca levará para casa uma camisola nova, com o nome e número de outro jogador à escolha. 


A segunda, que a EA Sports, empresa de jogos vídeo que produz o jogo oficial da NFL, «Madden», vai retirar imediatamente o jogador Ray Rice da mais recente versão do título, «Madden 15». É «oficial»: Ray é um anjo caído, está proscrito da NFL. Tal como é «oficial» que a limpeza de imagem da equipa e da liga começou, em grande. É a tal história do pano que a NFL quer sempre imaculado. A aplicação do «anti-nódoas» dos Ravens e de Goodell já está em marcha. As questões que coloquei anteriormente, no entanto, continuam sem resposta. 

Enquadramento:

Esta é uma crónica de opinião sobre o caso de Ray Rice, jogador dos Baltimore Ravens, que foi despedido pelo clube e suspenso pela Liga norte-americana depois de ter sido divulgado um vídeo que mostrava um caso de violência doméstica que já era conhecido, mas não com estes contornos.

O caso é de fevereiro, mas as novas imagens só foram agora divulgadas, pelo site de celebridades TMZ, mostrando a brutal agressão de Rice à sua então noiva, agora esposa, dentro do elevador de um hotel.

A divulgação do vídeo tornou evidente a violência da situação e chocou os Estados Unidos, colocando de novo sobre a mesa a questão da violência doméstica na NFL (National Football League), o mais popular dos desportos norte-americanos, cuja época acaba aliás de começar. 

Até Barack Obama reagiu. «Bater numa mulher não é algo que um verdadeiro homem faça, o que vale quer um acto de violência ocorra sob o olhar público ou, demasiado frequentemente, atrás de portas fechadas. Parar a violência doméstica é algo maior que o futebol e responsabilidade de todos», disse o presidente dos Estados Unidos, através da assessoria de imprensa da Casa Branca.

Rice tinha sido originalmente suspenso por dois jogos, o que já tinha motivado críticas sobre os diferentes pesos da NFL no que diz respeito a castigos e sanções. Basta recordar, por exemplo, que há apenas duas semanas um jogador dos Cleveland Browns, Josh Gordon, foi suspenso por toda a temporada por ter falhado pela segunda vez um teste para marijuana.

A Liga já tinha tentado responder às críticas com sanções mais claras relativas a violência doméstica. Roger Goodell, o comissário da NFL, tinha informado há cerca de uma semana os presidentes dos clubes de que as sanções relativas a violência doméstica passariam a ser de seis jogos no mínimo, e de suspensão por tempo indefinido para uma segunda ofensa.

Não se trata apenas de Ray Rice e da sua agora esposa, que aliás veio defender o jogador, num comunicado divulgado já nesta terça-feira. São recorrentes as notícias de casos de violência doméstica envolvendo jogadores da NFL. No final da semana passada, dois casos. Ray McDonald, dos San Francisco 49ers, foi detido por alegada violência doméstica na festa do seu aniversário. Detido igualmente Quincy Enunwa, jogador dos New York Jets, por alegada agressão à namorada.