«Depois do Adeus» é uma rubrica dedicada à vida de ex-jogadores após o final das carreiras. O que acontece quando penduram as chuteiras? Como sobrevivem os que não ficam ligados ao futebol? Críticas e sugestões para o email vhalvarenga@mediacapital.pt.
Bruno Matias foi campeão de juniores pelo Sporting em 2008, ao lado de nomes como Pedro Mendes, André Martins, André Santos, Wilson Eduardo ou Diogo Viana. Pelo caminho, já tinha sido campeão de iniciados e juvenis, em doses duplas.
Entre os sub-16 e os sub-21, Bruno Matias acumulou igualmente 31 internacionalizações pelas seleções jovens de Portugal. Porém, o médio ofensivo nunca jogou no escalão principal do futebol português. Perdeu-se uma enorme promessa.
Emigrou para o Luxemburgo com 21 anos, sem cumprir o desejo de representar a primeira equipa do Sporting, e terminou a carreira aos 30, em 2019, para dedicar-se à família.
O Maisfutebol encontra Bruno Matias em França, na região da Normandia. O antigo jogador trabalha nesta altura como Responsável de Higiene e Segurança numa refinaria da Total.
«Vai fazer agora dois anos que deixei de jogar. Estava como treinador-jogador de um clube no Luxemburgo, o FC Green Boys 77 Harlange-Tarchamps, mas tinha a minha família em Portugal e decidi voltar. Ao longo da carreira, deixei sempre a família para trás, por falta de maturidade. Neste momento, é essa a minha total prioridade», começa por explicar.
Bruno Matias regressou a Santarém no final de 2019, recebeu propostas para continuar no futebol mas não quis manter uma rotina de constantes deslocações: «No primeiro ano estive parado, porque tinha uma condição financeira acima da média, mas estava a gastar muito dinheiro, não tinha noção. A vida de jogador de futebol é uma mentira, nós não temos a noção da realidade.»
«Eu demorei a dar este passo, tive de ser ajudado, tive de levar nas orelhas, mas cá estou em França a enfrentar o touro pelos cornos e a lutar. Tenho aqui a minha mãe e o meu padrasto, a minha mulher e os meus filhos estão em Portugal e cá estou a trabalhar. Não vou mentir, foi muito complicada a mudança de mentalidade, mas sou de origens humildes e para mim nunca foi difícil trabalhar. Os valores que o meu avô me transmitiu foram sempre de muito trabalho e disciplina», salienta o ex-jogador.
Aos 32 anos, enquanto outros talentos da sua geração estão a competir a um nível alto, Bruno Matias vive uma rotina completamente diferente junto ao Canal da Mancha: «Tenho uma casa própria junto à praia, faço turnos complicados, a começar às 4 da manhã, mas ainda arranjo tempo para a pesca, que agora é o meu desporto. Hoje sou um homem realizado, feliz de outra madeira, embora sinta falta do balneário, claro. Não consigo viver sem futebol.»
«Estou numa das maiores refinarias da Europa e sou responsável pela higiene, desinfeção e manutenção. Tenho de fazer o controlo sanitário e da desinfeção de todos os espaços, dos escritórios, por exemplo. Tenho igualmente de requisitar todo o material necessário. Há uma série de protocolos a seguir, sobretudo estando num local com químicos. Nas refinarias, a segurança é tudo. Se houver uma lâmpada partida que eu não identifique, isso pode criar um grande problema, estou sujeito a perder o meu trabalho», explica.
Bruno Matias não ganha o que ganhava como jogador profissional de futebol, muito longe disso, mas aprendeu a dar prioridade a outros valores: «Não há dinheiro que pague aquilo que a minha família, os meus, me dão. Claro que adorava ter mais algum dinheiro, se pudesse ir buscar algum do dinheiro que gastei mal gasto no passado, ia.»
«Antigamente, caia o salário, os prémios de jogo, depois os prémios da seleção. Era capaz de fechar um restaurante em Santarém e pagar tudo, também emprestava – quer dizer, dava – dinheiro a amigos que precisavam. Agora, é ver onde eles estão. Mas enfim, como costumo dizer, fui aquilo que quis ser», salienta o ex-jogador. Uma expressão que resume o seu percurso.
«Por mim, servia o Sporting durante a minha vida toda»
Bruno Filipe Santos Matias despertou para o futebol na Académica de Santarém, clube da sua cidade. «Fui pela mão do meu avó, o meu adepto número 1. Tenho carinho pela Académica, nunca vou esquecer o mister Costa e o mister Nuno Cabelo. Só me custa que, vindo de Santarém e sendo o segundo jogador com mais internacionalizações da cidade, a seguir ao Jorge Cadete, nunca tenha sido convidado para padrinho do torneio que organizam. A única homenagem que tive foi do Rui Canavarro», desabafa.
O médio ofensivo destacou-se em Santarém e despertou a atenção do Sporting, chegando ao clube leonino em 2000. Seguiu-se um trajeto impressionante nas camadas jovens do clube, com a conquista de vários títulos nacionais.
«A partir do segundo ano, fui sempre capitão do Sporting, marquei centenas de golos pelo clube e cheguei a ser campeão no mesmo escalão em dois anos seguidos (iniciados e juvenis), porque jogava sempre no ano acima. Agradeço ao mestre Aurélio Pereira, Nuno Naré, Luís Dias, João Couto, Luís Martins, foram pessoas inexcedíveis comigo», recorda.
Bruno Matias não chegou à equipa principal do Sporting, mas a ligação ficou para sempre: «Eu amo o Sporting e por mim servia o Sporting durante a minha vida toda. A maior dor que tenho é ver casos como o do Adrien Silva, que jogou comigo, ou de outros jogadores que depois do ataque à Academia, que foi um episódio triste, deixaram o clube que lhes deu tudo a troco de uns patacos a mais. Devemos ser sempre agradecidos a quem pegou em nós e nos mostrou ao mundo.»
«Eu nunca esquecerei o que fizeram por mim e não trocava aquele grupo de 1989 por nenhum. Ainda recentemente, andei a tentar pedir ajuda para o Rui Figueiredo Lopes, que jogou connosco, porque o filho dele afogou-se e ficou com muitas limitações. Só houve um jogador que não mandou pelo menos uma mensagem de força ao Rui: o Adrien. É algo que me faz confusão.»
Recuando à fase mais promissora da carreira, o ex-jogador recorda as abordagens que rejeitou na adolescência. «Quando estava nos sub-17, assinei pelo Pini Zahavi, que trabalhava em Portugal com o Paulo Futre e o Artur Futre. Tive o Chelsea, o Arsenal, o Villarreal, a Roma, clubes a darem-me cinco vezes mais do que aquilo que ganhava, mas eu nem queria ouvir as propostas. O irmão do senhor Alex Ferguson também me veio ver, num jogo em que eu joguei lesionado, foi um erro», explica.
O jovem tinha um grande objetivo em mente: chegar à equipa principal do Sporting. Porém, a oportunidade não surgiu. «Eu, o Adrien e o Diogo Amado chegámos a treinar com a Seleção Nacional, no tempo do mister Scolari (2006). Mais tarde, fomos campeões de juniores (2007/08), tínhamos uma equipa fantástica e eu fui um dos jogadores com melhor desempenho, mas nunca tive a oportunidade que merecia.»
«Nunca tive boa relação com o mister Paulo Bento, saí do Sporting por culpa dele, porque não apostou nas pessoas em que devia apostar. Olhando para trás, e digo isto com pena, se calhar o meu grande erro, ou a explicação por não ter chegado a outros campeonatos, foi não ter saído do Sporting mais cedo», diz, com alguma tristeza.
Em 2008, Bruno Matias é emprestado ao Fátima de Rui Vitória, que acaba por vencer a II Divisão, numa final frente ao Desportivo de Chaves de Leonardo Jardim (2-1), em Águeda. «O mister Rui Vitória conseguiu tirar o melhor de mim, fomos campeões e eu devia ter continuado lá. No fim da época, fui chamado aos escritórios do Sporting e falaram-me de novo empréstimo. Eu fiquei revoltado e chegámos a acordo para a rescisão. O Fátima não conseguia suportar o meu salário e acabei por ir para o Estoril, a convite do Dimas.»
«Enquanto o mister Hélder Cristóvão esteve no Estoril, eu estava bem. A certa altura, a Traffic aparece a demitir o mister Hélder para apostar no professor Neca. O balneário ficou completamente dividido e, certo dia, envolvi-me numa discussão com três jogadores brasileiros, para defender o João Coimbra, e fui suspenso», detalha.
Aos 21 anos, em 2010, o médio ofensivo voltou a demonstrar a sua personalidade forte, encontrando forma de ultrapassar a sanção imposta pelo Estoril. «O Sindicato de Jogadores não me conseguiu ajudar. O Estoril não me queria emprestar nem queria rescindir. Portanto disse-lhes: ‘vou para um clube amador jogar e vocês continuam a pagar-me o salário’. Assim foi. Fui para o União da Serra, clube que me deixou saudades.»
«A vida no futebol é como uma viagem de cruzeiro»
Bruno Matias ainda jogou um par de meses no Amiense, enquanto perdurava o castigo do Estoril, e decidiu emigrar: «Estive no Badajoz e entretanto, fui contratado pelo Dudelange do Luxemburgo. Quando cheguei lá levei um choque, temperaturas negativas, tudo gelado, mas adaptei-me e fui campeão luxemburguês. Dizem que tudo no Luxemburgo é amador, mas eu sempre defendi o contrário, como aliás se vê agora pelos resultados da seleção.»
Foi no Luxemburgo, aliás, que o médio ofensivo jogou durante parte da carreira sénior, passando por Dudelange, RM Hamm Benfica, Etzella, FC Atert Bissen, FC 72 Erpeldange, Jeunesse Schieren e US Feulen, antes do adeus ao serviço do FC Green Boys 77 Harlange-Tarchamps, em 2019.
«Como disse antes, fui aquilo que quis ser. Ganhei muitos títulos, se calhar sou dos jogadores mais titulados da minha geração, mas sei eu podia ter ido mais longe. Podia ter esperado mais pela minha oportunidade no Sporting, por exemplo, mas sou incapaz de não reagir a certas situações. Fui criado num ambiente de justiça, de luta pela igualdade de direitos», salienta Bruno Matias.
O antigo jogador assume as responsabilidades ao longo do processo e alerta para as tentações que os jogadores enfrentam. «Eu gostava muito mais da noite do que do dia, era tudo VIP, mulheres, carros, enfim. Recebia bom dinheiro e fui pelo mais fácil. Costumo dizer que a vida no futebol é como uma viagem de cruzeiro: quando se vê ao longe, ao olhar para os portos, é tudo muito bonito. Mas quando saímos do barco e conhecemos as coisas melhor, lá por dentro, percebemos tudo o que está mal no interior», lamenta.
«No dia em que o Paulo Futre lançou a sua autobiografia, meteu-me ao lado dele, deu-me um beijo e disse a toda a gente: ‘aqui está o meu sucessor’. Enfim, não aconteceu. Sei que continuarei ligado ao futebol no futuro, talvez a treinar equipas de camadas jovens, e a minha equipa agora é a UVRS – União de Veteranos da Ribeira de Santarém. O meu sogro convidou-me a jogar com eles e fui tratado como um rei, são gente boa e os convívios dão-me alegria. Já transmiti ao presidente Amadeu que, quando for a Portugal, vou jogar por eles», remata Bruno Matias.