«Depois do Adeus» é uma rubrica dedicada à vida de ex-jogadores após o final das carreiras. O que acontece quando penduram as chuteiras? Como sobrevivem os que não ficam ligados ao futebol? Críticas e sugestões para spereira@mediacapital.pt
O título é uma simplificação da vida de Daniel Schirmer de Vasconcelos. Uma vida de aventuras, agitada. Um nómada do futebol e da gastronomia, um explorador de sensações, texturas e sabores.
De Cachoeira do Sul, no sul do Brasil, até Pavia em Itália, com uma passagem ocasional e determinante por Lisboa e uma estada faraónica em Moçambique, não esquecendo uma temporada de bola nas areias do Qatar, 1991, lado a lado com a guerra do Golfo.
Tantos quilómetros para chegar aqui, ao Porto, e ao restaurante 8Oitenta, um paraíso de comida brasileira: picanha, feijoada, maminha, enfim, um manjar para reis, um atentado à boa forma física.
«Também temos comida vegetariana. Aliás, o nome nasce precisamente porque a nossa gerente era vegan. Para ela a comida ou era oito ou oitenta. Sem carne ou com muita carne», explica Daniel Schirmer durante a visita do Maisfutebol.
Daniel foi um bom lateral esquerdo, vestiu as camisolas de Corinthians, Náutico, Bahia e Atlético Paranaense no Brasileirão. Aos 51 anos assentou arraiais na Invicta, no papel de chef. Percorreu metade do planeta para mudar de um mundo para o outro.
O motivo? Um clássico imemorial: o amor.
«Foi mero acaso. Eu viajei do Brasil para Itália, onde iria fazer um curso de comida, mas as minhas malas nunca chegaram. Ficaram em Lisboa, na escala que o voo fez. Estive um mês e meio em Itália sem a minha roupa e decidi vir a Portugal procurar as malas. Encontrei as malas e a Maria.»
A Maria é a companheira de Daniel há uma década. Estiveram juntos na capital portuguesa – onde o chef trabalhou no restaurante do Casino do Estoril – e dois anos depois voaram para… Moçambique.
«Não é uma história chata, pois não? Em Moçambique tive vida de rei, explorei o bar de um hotel de cinco estrelas e um restaurante. Tinha dezenas de pessoas a trabalhar para mim», conta Daniel, sentado numa das mesas do acolhedor 8Oitenta.
E a segurança em Maputo? «Respondo sempre da mesma forma: era mais seguro do que no Brasil e menos do que em Portugal. Mas as coisas correram sempre bem, até decidirmos voltar para a cidade da Maria. O chamamento da família e da vida são importantes, o dinheiro não é tudo.»
Daniel está a começar tudo de novo. Em Portugal comprou este espaço de restauração, bem perto da Avenida da Boavista, e desenhou o Brasil dentro dele. Os aromas inebriam, distraem o conversador. É para continuar?
«Aqui trabalho muito, muito. Faço as compras, cozinho e tenho de gerir esta equipa de funcionários. É muito mais exigente do que em Moçambique. Os almoços correm muito bem, sempre cheios, e ao domingo enchemos a casa também. Toda a gente quer experimentar a minha feijoada.»
Vaná, guarda-redes do FC Porto, é cliente assíduo. Daniel espera que o compatriota e o verão tragam muitos mais.
«No Irão passei fome durante uma semana, a comida era horrenda»
Cachoeira do Sul, Estado do Rio Grande do Sul, 80 mil habitantes, 200 quilómetros até Porto Alegre. Daniel Schirmer nasceu numa família de classe média, um de quatro irmãos. Jeferson Gaúcho, um ano mais velho, fez carreira de respeito no Botafogo e no Flamengo: «era um craque», assevera.
O pai era funcionário do Banco do Brasil e a mãe tomava conta da casa. Por conta de uma educação rígida, o futebol só apareceu aos 17 anos.
«Eu e o meu irmão fomos para o Novo Hamburgo, ainda para os juniores. Depois ele saiu para o Botafogo, mas eu fiquei para trás. Enfim, coisas mais complicadas. Teve de ser o Jeferson depois a comprar o meu passe e a permitir a minha saída.»
É aí que Daniel ruma para o interior de São Paulo e posteriormente para o Timão, ano de 1991. «O Corinthians foi campeão brasileiro em 1990. Cheguei a um plantel recheado de campeões e na minha posição jogava o Jacenir, um lateral sem qualquer técnica, mas muito certinho. Por isso joguei menos do que esperava.»
Os internacionais brasileiros Neto e Viola eram algumas das grandes figuras. Foi mais ou menos por aí que Daniel se tornou «festeiro». «Eu e o Neto íamos a muitas festas. Eu nunca gostei muito de treinar. Adorava jogar, era competitivo, mas nos treinos eu não era o tipo mais aplicado do mundo.»
No Brasil, Daniel vestiu ainda outras camisolas importantes, mas as maiores aventuras aconteceram num Médio Oriente que lambia as feridas da Guerra do Golfo. O Qatar, em 1991, «não era nada do que é hoje».
«Areia, areia, alguns hotéis… foi aí que aprendi a cozinhar, tive de me safar. Só quando íamos para as concentrações do Al-Arabi, no hotel, é que me sentia um senhor. Eram sete dias do bom e do melhor. É isso, as concentrações duravam sete dias.»
O treinador Oswaldo Oliveira fez o convite, Daniel ganhou bastante dinheiro, mas teve de passar por situações… ingratas. «Fomos jogar ao Irão, para uma competição asiática, e avisaram-nos que a equipa deles só tinha gajos malucos. Eu, que no Brasil só jogava a bolinha, decidi rapar o cabelo e dar uma de mauzão também. Ninguém nos fez mal, mas passei fome durante uma semana. A comida lá era terrível, insuportável.»
Regressado ao Brasil, Daniel esteve mais uns anos no futebol e aos 29 anos decidiu abrir uma cadeia de talhos. Já chegava de bola. «Correu mal, perdi quase todo o meu dinheiro, mas aprendi a fazer todos os cortes nas carnes e a desossar frango. Hoje tudo isso está a ser-me útil.»
Se estiver no Porto e quiser ser servido por um chef que leva o Corinthians no currículo, já sabe. É só aparecer no 8Oitenta e dar de caras com o sorriso de Daniel.
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