artigo original: 22-02-2018 10:25

Depois do Adeus é uma rubrica do Maisfutebol dedicada à vida de ex-jogadores após o final das carreiras. O que acontece quando penduram as chuteiras? Como sobrevivem aqueles que não continuam ligados ao futebol? Críticas e sugestões para spereira@mediacapital.pt

Gaúcho é um dos nomes incontornáveis do futebol português nos anos noventa.

Passou por clubes como o Estrela da Amadora e o Marítimo, tinha um futebol elegante, fazia muitos golos, era figura de proa dos clubes que representava e constituía enfim uma aposta segura para as ligas fantasy que se jogavam na altura. Tudo isso tornou-o num nome ilustre.

Hoje tem 45 anos e vive em Santa Maria da Feira. Foi lá que o Maisfutebol o encontrou.

«Neste momento sou treinador da equipa B do União de Lamas. Mas isso não é um emprego, não recebo praticamente nada. Faço-o porque as pessoas me pediram e porque, como é só à noite, me deixa o dia todo livre. Por isso vivo de um salão de cabeleireiro que tenho aqui em Santa Maria da Feira e de outro que tenho no Brasil, na cidade do Recife.»

Mas porquê Santa Maria da Feira?, pergunta-se. A resposta não traz uma explicação inusitada ou extravagante. Pelo contrário. A esposa dele, que é portuguesa, é natural da Feira.

«A minha mulher gosta muito deste mercado dos salões de cabeleireiro. Ela já fazia a gestão de um salão muito grande no Brasil, que tinha entre 50 e 52 funcionários. Por isso ficou com a ideia de abrir um salão nosso», acrescenta.

«Quando terminei a carreira, sentimos que era a altura certa para investir nesse mercado, abrimos um salão no Recife e quando viemos para Portugal abrimos um também aqui. Mas acaba por ser a minha mulher que acompanha mais esse trabalho, eu só ajudo quando é necessário.»

Refira-se, de resto, que os salões de cabeleireiro não são o primeiro negócio de Gaúcho. Antes disso, e quando vivia ainda no Brasil, o antigo ponta de lança aventurou-se numa transportadora.

«Acabei a carreira no Brasil e fiquei a viver lá. Montei uma transportadora e fique por lá sete anos. Mas há uns três anos a minha mulher perguntou-me: os nossos filhos estão a chegar à idade de ir para a faculdade, como é? Ficamos ou voltamos para Portugal?», recorda.

«Eu disse logo que o melhor de facto era voltarmos, porque o Brasil está muito complicado em termos de segurança. Por isso decidimos voltar de vez para cá. Queríamos que os nossos filhos entrassem cá na faculdade e graças a Deus está tudo a correr bem. O meu filho está a tirar Osteopatia, no Porto, e a minha filha vai para o ano tirar Direito. Hoje em dia pensamos mais nos nossos filhos. Trabalhamos para eles. Vim para Portugal por causa dos meus filhos e agora a nossa vida é cá. Não estamos a pensar sair de Portugal.»

A empresa de transportes, de resto, fechou pouco depois de abrir.

«No Brasil não há condições para se ter uma transportadora. São assaltos a toda a hora, prejuízos enormes, por isso tivemos mesmo de desistir. O Brasil está muito, muito complicado.»

Gaúcho disse então a frase que cada vez mais brasileiros dizem. Não dá mais, Brasil.

Para trás deixou o país natal, um salão de cabeleireiro que ficou entregue a um sócio, uma escolinha de futebol que ficou com um amigo e a memória de um final da carreira que não foi fácil.

«Nada fácil. Foi muito complicado mesmo. Estamos habituados aos treinos, aos estágios, aos jogos, de repente tudo isso acaba. Passa um mês, passam dois meses e se uma pessoa não tem uma cabeça forte, acaba por se perder. Porque é mesmo muito duro. É um vazio muito grande», diz.

«Eu preparei-me para parar, preparei-me mesmo. Quando saí de Portugal, em 2009, tinha 36 anos. Ainda tinha até contrato com o Moreirense, mas não queria jogar mais. Recebi a notícia muito triste de que o meu irmão tinha sofrido um acidente de mota e tinha falecido. Fiquei muito em baixo. O meu irmão era muito próximo, por exemplo nas férias passávamos os trinta dias juntos. Então perdi a alegria de jogar.»

Depois de passar por clubes como o Sport Recife, o Estrela da Amadora, o Marítimo, o Rio Ave, o Feirense, o Beira Mar e o Moreirense, com saltos breves ao Orense, de Espanha, e ao Busan, da Coreia do Sul, Gaúcho decidiu que era a altura de parar de jogar.

«Fui para o Brasil e comecei a tratar das coisas para arranjar a minha vida de outra forma, mas aí um antigo jogador chamado Nivaldo, que jogou no Benfica e no V. Guimarães, viu-me jogar à bola com os amigos e perguntou-me se queria jogar mais uns dois anos. Disse que não, que nem pensar. Não queria mesmo. Mas ele insistiu, que ia falar com o presidente do Santa Cruz, que é um clube grande no Recife, mete 60 ou 80 mil pessoas no estádio», refere.

«Numa segunda-feira, às dez da manhã, o Nivaldo ligou-me a dizer que a minha apresentação no Santa Cruz estava marcada para as três da tarde. Não queria, mas apresentei-me e acabei por fazer mais dois anos, até que depois me retirei em definitivo. Com 38 anos ainda fui o melhor marcador da equipa, como é possível...? Mas nessa época decidi que no final me ia retirar e comecei a montar a transportadora, o que me ocupou a mente e me ajudou a afastar-me do futebol.»

Para trás deixou uma carreira que garante que o enche de orgulho. Afinal de contas Gaúcho foi um dos nomes grandes do futebol português nos anos noventa, e até no início do novo século, mesmo sem ter nunca jogado num grande: esteve sempre condenado a lutar pela permanência.

«Não me arrependo de nada do que fiz. Não sei se joguei na época errada, mas a verdade é que chegava ao final das épocas e num clube como o E. Amadora eu fazia 18 golos, 20 golos, 21 golos. Isto é muito difícil, não é para qualquer um», sublinha.

«Mas eu fiz isso. Fiz isso no Estrela e fiz isso no Marítimo. Hoje em dia, um ponta de lança faz cinco ou dez golos e vai para uma equipa grande com uma enorme facilidade, eu fazia 20 golos por época e nunca aconteceu.»

Mas nunca houve sequer essa possibilidade?, insiste-se.

«Houve uma possibilidade muito grande de ir para o Benfica, quando o Nelo Vingada era adjunto do Souness. Eles falaram comigo no verão, acertámos o contrato, tudo direitinho, mas, antes de assinar, o Souness chegou a acordo para sair e a minha transferência acaba por cair», responde.

«Também houve a possibilidade de ir para o FC Porto, quando o Fernando Santos era o treinador. Inclusivamente uma vez o Jorge Andrade ligou-me antes de um jogo do E. Amadora contra o FC Porto, a dizer-me que se fizesse um golo nesse jogo para não comemorar porque no clube se falava muito no meu nome. Fiquei todo contente. Curiosamente a primeira vez que toquei na bola, fiz golo: 1-0 para o Estrela. Não comemorei, como o Jorge Andrade me tinha dito. Mas depois disso o Fernando Santos disse que o clube precisa de um ponta de lança com nome na Europa e o FC Porto vai buscar o Pizzi, que tinha jogado no Barcelona. Veio já com 33 anos. Ele fez quatro golos no campeonato pelo FC Porto e eu fiz 21 golos pelo Estrela. É assim a vida...»

Não ter conseguido jogar num grande não o inibiu, porém, de juntar um pé de meia, o qual utilizou após o final da carreira para se lançar noutros negócios.

«Não me queixo, sempre tive bons contratos. Não dava para viver toda a vida do dinheiro que ganhei, mas dava para gerir o meu futuro após pendurar as chuteiras.»

No entanto, e apesar de agora ter a vida estabilizada com os dois salões de cabeleireiro, Gaúcho não desiste de querer voltar um dia ao futebol.

«Para já estou na equipa B do União de Lamas. Joga na distrital e treina só quatro dias à noite, mas dá para ir conhecendo pessoas e para mostrar o meu trabalho. Convidaram-me a ajudar e para já estou ali, mas quero algo melhor», refere.

«Quando jogava em Portugal tirei o segundo nível do curso de treinadores e espero no próximo ano terminar o terceiro nível. Depois disso vamos ver o que acontece. Mas não tenho dúvidas que quero ser treinador e tomar conta de um bom projeto. O meu mundo é o futebol.»

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