«Depois do Adeus» é uma rubrica dedicada à vida de ex-jogadores após o final das carreiras. O que acontece quando penduram as chuteiras? Como sobrevivem os que não ficam ligados ao futebol? Críticas e sugestões para spereira@medicapital.pt

«O doutor Nélson está cinco minutos atrasado.» O recado na receção da clínica pecou por excesso. Nélson Morais chegou logo a seguir, bem a tempo de uma conversa feita de muitas histórias e algumas gargalhadas a olhar para o passado e para o presente do antigo lateral que aos 14 anos se cruzou com José Mourinho, que um dia teve Mário Coluna à porta para o levar para o Benfica, jogou um Mundial sub-20, foi referência no Alverca e teve um azar que acabou por ser também sorte.

Nélson Morais fala com o Maisfutebol no espaço onde exerce como osteopata, uma vida muito diferente do futebol. O fim da carreira chegou cedo, por causa de uma lesão complicada. E forçou-o a abrir outro caminho. «Com 27 anos estava a jogar no Seixal. Fui operado ao ligamento do tendão rotuliano. O médico perguntou-me como ia ser a minha vida a partir dali, porque o futebol em princípio ia acabar. Fiquei assustado, claro.» Partiu de um amigo a sugestão de fazer formação em fisioterapia. «Fui pedir informações, perguntaram-me se tinha o 12º ano e sugeriram-me fazer um curso superior. Lá me inscrevi, mas sempre com a cabeça no futebol. Fui operado uma, duas, três vezes. Tentei retomar, mas treinava e tinha imensas dores. Não valia a pena estar a martirizar-me. Lá teve que ser.»

Mourinho como treinador por uns dias e Coluna para acabar com a conversa

Nélson Morais começou a jogar no Corroios e chamou cedo a atenção do Benfica. Depois de ser treinado por… José Mourinho, no torneio inter-associações que é hoje o Torneio Lopes da Silva. «Fiz parte da equipa de Setúbal. O adjunto era o Mourinho, então treinador dos juvenis do V. Setúbal. O treinador principal era o José Augusto, mas quem nos acompanhava era o Mourinho.» «Já se via» que esse jovem Mourinho «era muito metódico e percebia daquilo»: «Ele é que era o treinador de campo, acompanhava-nos no centro de estágio, nos jogos. Tudo o que ele dizia era muito bem assimilado.»

A partir daí tudo mudou para Nélson Morais. «A seguir ao torneio fui abordado para ir para o V. Setúbal. Estava convencido que ia para lá. Mas entretanto há um convite do Benfica. E quem é que aparece em minha casa a fazer o convite? O Mário Coluna. O meu pai, que já faleceu, era benfiquista ferrenho. Nem houve conversa», sorri: «Quando aparece o Coluna à frente do meu pai ele nem deve ter respirado. Disse logo: ‘Onde é que o meu filho vai assinar?’»

Fez quatro temporadas na formação do Benfica, até ao primeiro empréstimo: o Gil Vicente, a primeira divisão aos 18 anos. «De um momento para o outro apanhei-me em Barcelos, muito longe de casa. Mas adorei. Acho que todo o ensinamento que tive em termos de bola foram aqueles dois anos. Todos os meus colegas tinham sido estrelas de cinema, como costumo dizer. Cacioli, Laureta, Mangonga, Tueba, Sousa… Tudo jogadores mais velhos e eu com 18 aninhos. Eu e o Hugo Costa, fomos os dois para Barcelos.»

O Mundial sub-20, jet lag e um acidente

Pelo meio, Nélson chegou às seleções nacionais. No verão de 1992 fez parte da equipa que chegou à final do Europeu sub-18. E no ano seguinte foi ao Mundial sub-20. 1993, na Austrália. Fez dois dos três jogos de Portugal numa campanha que começou com as expectativas no céu, depois dos títulos mundiais de 1989 e 1991, mas acabou com a eliminação na primeira fase. Olhando para trás, Nélson Morais lamenta «as expectativas criadas e o próprio planeamento»: «Chegámos a três, quatro dias do primeiro jogo, quando havia equipas que lá estavam há 15 dias ou um mês. Tínhamos uma equipa um pouco rebelde, mas nem por isso o talento e a vontade de ganhar deixavam de estar lá. Lembro-me de atletas que foram acordados para ir jogar. Quando nos adaptámos, estávamos a voltar.»

A Austrália trouxe consequências mais sérias para Nélson Morais. «No regresso, eu e o Hugo Costa quisemos ficar mais um dia em Lisboa, com a família. Na viagem para cima tivemos um acidente de carro. Adormecemos na estrada. Ele fraturou o braço. Eu nem sei por onde saí do carro. Nessa noite acabei a dormir em casa do treinador, o Vítor Oliveira. Isto ainda na ressaca dos sonos trocados da Austrália.»

Nélson Morais ainda chegou aos sub-21, mas a carreira na seleção acabou aí. «Na convocatória para os Jogos Olímpicos o Nelo Vingada já não me chamou e perdi o comboio da seleção.»

Ao fim de duas épocas deixou Barcelos. Virou costas, mesmo. «No primeiro ano vivíamos numa moradia perto do campo, sozinhos. No segundo ano fiquei lá sozinho. Já namorava mas a minha namorada não podia lá ir … Tentei ir descendo para mais perto de casa», conta: «No terceiro ano o diretor desportivo veio falar comigo, a perguntar como era. Disse que depois falávamos, que ia lá. E fugi. Era miúdo…»

Alverca e as instruções para Deco

Seguiu-se Leiria, durante uma época. E depois o Alverca, na altura clube-satélite do Benfica, com Luís Filipe Vieira na liderança e ponto de passagem de muitos nomes que seriam o futuro do futebol português: Deco, Maniche, Ricardo Carvalho, tantos. «Apanhei toda aquela panóplia de estrelas, recorda. «O Deco quando lá esteve tinha 18 anos. Já se via que era um caso fenomenal.» E a equipa tentava tirar partido disso: «O técnico passava as indicações, que o Deco tinha de descer, e nós dizíamos: ‘Deco, tu desces só até ao meio-campo. Do meio-campo para trás nós tratamos.’ Ele era mesmo muito bom tecnicamente e nós queríamos a diferença. Tínhamos de estar sempre atentos, porque se a bola chegasse aos pés dele do nada podia chegar a qualquer um de nós.»

Foram anos felizes para o Alverca, que subiu à Liga de Honra em 1995/96 e três anos depois estava na primeira divisão. «Foi sempre um grupo jovem. As ideias eram muito próximas. Eram miúdos que queriam vencer.» E ficaram muitas amizades. «Aqui há uns tempos fui a um convívio do Alverca. Eu para os convívios sou rei, apareço em todas», ri-se: «Para comer e beber estou lá.»

A história do único jogo pelo Benfica

Nélson Morais estava em Alverca quando surgiu a primeira – e única – oportunidade de jogar no Benfica. «Fiz o estágio de pré-temporada com o Paulo Autuori. Pensei que me tinha corrido mais ou menos, mas depois informaram-me que ia para Alverca e lá fui, resignado.» Entretanto Autuori saiu e chegou Manuel José. E em maio é chamado à Luz. «Fiz um jogo no domingo em Alverca para o campeonato, na terça-feira disseram que havia uma série de lesões no Benfica e precisavam de um lateral para completar um jogo-treino. Fiz esse treino, o Manuel José gostou, fui convocado. Sexta-feira fiz o jogo com o V. Guimarães. Perdemos. O jogo não me correu muito mal, mas voltei à base. E no domingo ainda joguei pelo Alverca. Fiz quatro jogos numa semana…»

Campo Maior e «amigos em todo o lado»

Foi o fim da ligação ao Benfica. «Mais uma vez pensei que tivesse alguma continuidade. Mas voltei outra vez à minha casa-mãe. A partir daí comecei a ver que o Benfica já não seria para mim. Estava meio danado, rescindi com o Benfica, acabei a ligação ao Alverca e fui para o Campomaiorense. Fiquei lá seis meses, que adorei, tenho lá bons amigos. Eu faço amigos em todo o lado… Aliás, fui até a uma reunião de antigos atletas do Campomaiorense.»

Só ficou até dezembro. A insistência de Mário Wilson e a perspetiva de voltar para perto de casa levaram-no a regressar a Alverca, já na primeira divisão. Ficou até 2001, quando se deu a saída. «Estranha», diz: «Se não me queriam lá podiam ter dito, tinha seis anos de casa, era um dos capitães. Fomos fazer um torneio a Cabo Verde no final da época. A minha mulher é angolana, nas férias íamos sempre a Angola e eu fui dizer que ia viajar e precisava de saber como era a minha vida. O diretor, que era o José Couceiro, disse para ir tranquilo que depois falávamos. Falei com o meu empresário, que era o Paulo Barbosa, e disse: ‘Se não me disseram nada, é melhor esquecer.’ Já não era parvo, andava naquilo há dez anos. Cheguei a Angola e disse à minha mulher que não ia jogar mais à bola.»

«Voltei de Angola em setembro. Já completamente desligado.» Mas aí apareceu nova oportunidade, um convite do Seixal por intermédio de João Santos, seu ex-treinador: «Cheguei lá, fiz uns jogos-treino e o presidente do Seixal fez-me uma proposta. Nem pestanejei, fui ganhar mais do que ganhava em Alverca. O Seixal nessa altura tinha umas condições belíssimas.»

«Fiz a época até dezembro, quando aparece a primeira lesão. Depois foi um calvário.» Até se convencer que não dava mais: «Custou, porque era muito novo. O auge de um atleta profissional deve rondar os 28 anos. Eu achava que estava na minha plenitude.»

Conciliar escola e futebol, foi complicado mas fez a diferença

«A minha ideia já era continuar os estudos.» O facto de ter conciliado o futebol com a escola fez a diferença. Mas não era fácil. «No meu tempo era complicado. Uma ou duas vezes por semana tinha de treinar com os mais velhos por causa dos horários. Tinha muitas idas às seleções, estágios. Os colegas iam tentando ajudar, os professores também. Na primeira vez que fui para Campo Maior tinha exame marcado de biologia. E tinha estágio em Lamego. Não fui ao exame. Só em Alverca, que estava perto de casa, é que retomei. Até porque eu gostava daquilo.»

Lá está, o azar que apesar de tudo lhe deu vantagem em relação a tantos outros ex-jogadores. «Tenho pena de ver alguns ex-atletas do meu tempo que podiam ter outro tipo de acompanhamento. Eu tive o azar de ter terminado cedo, mas tive a sorte de ter conseguido estudar e passar para uma vida de trabalho cedo. Os meus colegas ainda jogaram mais 10 anos. A transição aos 38, 40 anos, não é a mesma.»

A osteopatia que ajuda a perceber muita coisa

A osteopatia apareceu «como sugestão», mas Nélson Morais foi-se interessando pela área. «Achava muita piada porque identificava-me com tudo. Quando jogava andei uma época inteira com uma dor, estava sempre a levar injeções. Depois de começar a estudar percebi que andava com uma ciática sem saber.»

Fez a formação e várias especializações numa área de saúde que não define como alternativa, mas «complementar»: «Na minha área tenho de tentar restaurar, fortalecer e manter a integridade de todo o sistema muscular-esquelético. Pensar no corpo humano como um todo. Em vez de trabalhar só no cotovelo, tenho de ver porque é que a lesão aparece. Tento ser sempre proativo com ortopedia, neurologia...»

É muito diferente do futebol, de certa forma até antagónico. «Trabalhei com miúdos durante uns tempos, na Amora, ajudava no posto médico. Tendo eu passado por uma série de lesões a pior coisa que um treinador me podia dizer era: ‘Preciso deste miúdo para domingo.’ Por isso é que eu nunca tive o bichinho de trabalhar num clube. Com o feitio que tenho mandava todos para outro sítio…»

«Eu acabei prematuramente se calhar por essa acumulação de erros», continua Nélson: «São muitos anos de muito stress físico, muita carga, maus alongamentos, maus hábitos alimentares. Se tivesse tido um osteopata a acompanhar-me numa equipa, iria pensar de outra forma. E se calhar muitas das lesões eram evitáveis.»

A carreira no futebol passou, Nélson Morais seguiu em frente. De bem com a vida, e apenas uma mágoa do tempo que jogou: «Só aquela mágoa sentimental, mais pelo meu pai. Ele vivia muito o Benfica. Quando joguei pelo Benfica gostava que ele tivesse visto. Já não viu, já tinha falecido.»

Sport Lisboa e Saudade: «Se há jantar, eu vou»

Nélson Morais não está completamente desligado do futebol. Há uma ligação que mantém há muito. «Em Barcelos tive boa ligação com o Laureta e o Dito. Quando estava a estudar, eles apresentaram-me os atuais administradores da Lacatoni. Trabalhei com eles, durante uns tempos andava de malinha a ir aos clubes. Ainda agora, sempre que precisam de uma ajuda lá estou eu. Foram as pessoas que me ajudaram na altura.»

Também se mantém ativo. «Tento jogar uma, duas vezes por mês futebol de 11 para matar a saudade, e fazer outros desportos. BTT, corrida… Já não é pela competitividade, é para me sentir bem. Porque eu tenho um vício tremendo, que é comer», ri-se. Jogou nos veteranos do Corroios e joga no Sport Lisboa e Saudade, entre as antigas glórias do Benfica. Lá está, seduzido pelo bichinho do futebol, pelo convívio e… pelo estômago. Última gargalhada: «Se há jantar, eu vou.»

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