Depois do Adeus é uma rubrica do Maisfutebol dedicada à vida de ex-jogadores após o final das carreiras. O que acontece quando penduram as chuteiras? Como sobrevivem aqueles que não continuam ligados ao futebol? Críticas e sugestões para spereira@mediacapital.pt

São quatro horas da tarde, está sol e Gisvi recebe o Maisfutebol na varanda da moradia na margem sul. Há um ambiente bucólico em todo aquele cenário que seduz: apetece ficar ali, a saborear o café, a conversar e a deixar o tempo correr suavemente.

«Não me posso queixar. Tenho uma família maravilhosa, dois filhos e uma mulher que amo», atira. «Hoje em dia não me falta nada e não falta nada aos meus.»

Gisvi é comissário de bordo na TAP. Tal como a mulher, de resto. Está há nove anos na companhia, o que lhe permitiu progredir na carreira: agora está com os voos de médio e longo curso, o último patamar antes das viagens de longo curso e dos cargos de chefia.

A vida corre-lhe bem, portanto. O que não quer dizer que seja perfeita.

«Sim, posso dizer que sou feliz. Mas ainda penso muito no futebol. Tenho tentado deixar de pensar mas não consigo. É uma terapia que tenho feito e vou ter de continuar a fazer comigo mesmo, até que uma dia consiga de facto ultrapassar esta mágoa que sinto.»

Nesta altura convém lembrar que Gisvi foi uma grande promessa do Sporting. Formado no Alcanenense, ali ao lado de Santarém, chegou a Alvalade para jogar nos juniores.

Vivia debaixo da bancada do antigo estádio, com mais algumas dezenas de miúdos, e dava nas vistas dos principais responsáveis leoninos. Por isso foi chamado aos seniores com apenas 19 anos, ao lado de outra grande promessa: um tal de Cristiano Ronaldo.

«No primeiro ano de júnior, quando cheguei ao Sporting, já tinha sido chamado pelo Materazzi. Ele disse-me que queria que ficasse na equipa principal. Até estava lesionado e recuperei com os seniores. Comecei a trabalhar, tudo normal, e um dia ele diz-me: a partir de hoje fica atento à lista de convocados. Mas nessa semana ele foi despedido. Veio o Augusto Inácio e disse-me logo para voltar para os juniores.»

Voltou para os juniores, na época seguinte integrou a equipa B e dois anos depois, então sim, cumpriu com Cristiano Ronaldo um velho sonho: a estreia pela equipa principal.

«Fiz dois jogos para a Taça de Portugal, um deles como titular. Fui chamado porque o Niculae estava lesionado e o Jardel estava a passar uma fase esquisita. Mas depois voltei para a equipa B e a verdade é que nem a equipa B era titular, ou quando era jogava a trinco ou a médio centro. Porquê? Não sei. Nunca percebi», acrescenta.

«Mas foi aí que a minha carreira começou a cair. Tanto que a equipa B acabou, saí do Sporting e foi difícil encontrar um clube. Não tinha empresário e o telefone não tocava.»

Mas voltando atrás, importa dizer que Gisvi não sente um pingo de dor quando vê Cristiano Ronaldo brilhar nos maiores palcos do futebol mundial.

«Em relação ao Ronaldo não, o Ronaldo é outro mundo», admite.

«Mas quando vejo alguns jogadores do meu tempo jogar na seleção ou na Liga dos Campeões, penso que podia ser eu. Quando vejo o José Fonte, o Bruno Alves, ou até o Rui Patrício e o Adrien, que eram mais novos mas também andavam por lá, penso nisso.»

Os olhos de Gisvi brilham, naquele brilho melancólico, quando puxa o fio do novelo das memórias: afinal sempre acreditou que o futebol ia ser mais que apenas memórias.

«Foi um sonho integrar o plantel principal do Sporting, mas eu sinto que não aproveitei aqueles tempos como devia. Não estava preparado para aquilo, não tinha a maturidade necessária. Era calado, calado de mais. Estava sempre no meu canto, muito introvertido. Não entrava nas brincadeiras, não conseguia ser eu próprio. Os mais velhos eram impecáveis comigo. O Pedro Barbosa era um senhor, o João Pinto era um senhor. Mas eu nao me libertava e não aproveitava aquele sonho como devia.»

Gisvi é um homem sincero, que não quer vender para a reportagem a imagem de alguém que não é. Fala com uma honestidade desarmante: e essa é a maior virtude que um ser humano pode ter.

Reconhece que sempre foi muito tímido e só o trabalho na TAP o obrigou a tornar-se mais extrovertido. Por isso sentia-se intimidado com as hierarquias.

«Mesmo nos juniores havia hierarquias, jogadores como o Lourenço, o Carlos Martins ou o Beto tinham um peso grande. Eram internacionais e tinham contrato profissional. Quando fui chamado ao plantel principal o Sporting também me fez contrato profissional e houve alguns desses jogadores que não gostaram. Não aceitaram que eu fosse ter um contrato a ganhar tanto quanto eles. Foram tempos difíceis para mim no balneário.»

Gisvi aprendeu a viver com isso e correu atrás do sonho de ser jogador. Mas chegou a uma altura em que não aguentou mais: aos 26 anos pendurou as chuteiras. Na origem dessa decisão esteve uma série de azares, e um desencanto profundo com o futebol.

A sucessão de acasos infelizes começou quando o Sporting acabou com a equipa B. Gisvi ficou sem clube, sem empresário, à espera que o telefone tocasse. Através de um amigo, encontrou lugar no Lousada, do Campeonato de Portugal.

«Mas queria uma equipa mais perto de casa e pedi para sair. Fui para o Fátima e as coisas correram bem. No ano seguinte, outra vez através do meu amigo José Fonte, que falou com o empresário dele, fui para ao Felgueiras. Fiquei contente, era um clube bom, bons jogadores, boas condições, sim senhor. Até que uma semana antes do início da época, o Felgueiras acabou. Foi o fim e foi um plantel inteiro para o desemprego», conta.

«Acabei por ir para a Ovarense, também de II Liga, mas aquilo não estava bem. O clube não tinha dinheiro, não pagava e havia jogadores a passar a fome. Inclusivamente quando a minha mulhe ia ter comigo, pegávamos em um ou dois colegas e levavamo-los a jantar ou a almoçar, porque eles não comiam. Isso não dava para mim.»

Seguiu-se a Grécia, para onde viajou porque o dinheiro falou mais alto.

«Tinha um contrato muito bom. Cinco mil euros limpos por mês, mais carro, casa, comida, tinha um restaurante à minha disposição, e viagens a Portugal. Só gastava dinheiro para meter gasolina no carro. Até viagens à minha mulher pagavam.»

Uma época demasiado longe da família, chegou-lhe. Há coisas que o dinheiro não paga. Por isso voltou a Portugal e assinou pelo Lixa, onde fez uma boa época. Seguiu-se então o futebol espanhol, o Zamora e o início do fim.

Gisvi tinha chegado pouco antes do fim do período de transferências, contraiu uma entorse no joelho que o obrigava a parar vários meses e já não foi inscrito.

«Eles portaram-se mal comigo. Queriam anular o contrato e fizeram tudo para me mandar embora. Fiquei até dezembro, meio ano, sem ajuda de ninguém. Não tive um médico, um enfermeiro, um fisioterapeuta. Disseram-me que podia frequentar o posto médico e o ginásio, e só isso. Ia todos os dias à hora do treino, picava o ponto e ficava lá sem fazer nada. Lembro-me que na altura liguei ao meu amigo José Fonte, para ele falar com alguém do departamento médico do Benfica que me pudesse ajudar. Ele colocou-me em contacto com o Rodolfo Moura, falei-lhe das dores e eles fez uma espécie de diagnóstico», conta.

«Então eu sozinho, todos os dias ia ao posto médico, fazia o meu gelo, fazia-me uma massagem, enfim, tentava fazer o que tinha visto que os médicos faziam com os lesionados. Passado um mês comecei a correr, depois comecei a trabalhar com bola, sempre sozinho. Pedi ao treinador para treinar com a equipa, ele integrou-me no plantel só para treinar. Em dezembro quis inscrever-me, mas não havia vagas e vim-me embora.»

Voltou para Portugal e o telefone tocou. Era o presidente do Olhanense: apresentou-lhe as condições e chamou-o para uma reunião após o treino do dia seguinte.

«No dia a seguir de madrugada fui de carro para Olhão, treinei, o presidente não pôde falar comigo nesse dia, fiquei numa pensãozita e no dia a seguir participei num jogo treino. Infelizmente nesse jogo treino tive um choque de cabeças, senti náuseas, estava a perder a visão e vomitei. Fui para o hospital, fiz uma TAC, acusou um traumatismo craniano e fui obrigado a fazer repouso», recorda.

«A minha mulher apanhou um avião para Faro e foi-me buscar, porque não podia conduzir. Tinha de fazer 48 horas de repouso, mas nem as fiz. Liguei novamente ao presidente, que me disse para ir ao treino do dia a seguir e depois falávamos. Fui de madrugada, treinei e no final do treino aparece um diretor a dizer que não tinha nada a ver com isso, só vinha transmitir a mensagem, mas que o treinador me tinha dispensado.»

Nessa altura o mundo de Gisvi desabou. O ponta de lança sentiu o chão fugir-lhe debaixo dos pés e fez o caminho de regresso a Lisboa com uma mágoa enorme dentro do peito.

«Fiquei desiludidíssimo. Estava sem clube e com a mulher grávida. Decidi parar. Ficar sem jogar, limpar a cabeça e na época seguinte arranjar um bom projeto. Só que pouco depois surgiu uma hipótese de concorrer para a TAP. Era uma coisa que me via a fazer, embora não fosse isso que queria. Mas depois pensei que o futebol não é para sempre, ia a caminho do segundo filho e tinha de pensar na família. Decidi tentar», refere.

«No primeiro dia ainda estava a pensar desistir, cheguei à entrevista a pensar se ficava ou se me ia embora. Mas não tive tempo para digerir aquilo. Fiz a primeira entrevista, fui à segunda e quando dei por mim estava na TAP. Se me tivesse aparecido um clube bom, tinha desistido, mas comecei a voar em agosto e não apareceu nada que valesse a pena.»

Gisvi foi ficando e já lá vão nove anos. Entretanto cresceu dentro da empresa e hoje tem uma carreira de sucesso. Mas o início, confessa, foi muito difícil: muito, muito difícil.

«Sei que alguns o mundo da aviação é um mar de rosas, para mim não foi. Sentia-me sempre enjoado, tinha náuseas, vomitava. Na primeira semana não consegui comer. Lembro-me que quando chegava ao destino ia para o hotel, deitava-me e só me levantava no dia a seguir. Mas era sempre um sacrifício sair da cama: não tinha forças.»

Chegou a falar com a mulher, que o aconselhou a desistir e a voltar ao futebol, mas Gisvi não aceitou: não ia deixar que as dificuldades o derrotassem. O tempo curou tudo: por isso confessa que hoje até gosta de voar. É feliz quando anda pelos ares.

Só lhe falta uma coisa: o futebol. A tal paixão que deixou sem ser uma escolha dele.

«Pensava que ia ser mais fácil deixar de pensar no futebol. Mas não foi. Por isso imaginava que se aparecesse uma boa proposta podia meter uma licença e voltar a fazer o que realmente sonhei fazer. Tinha 26 anos, era novo. Tinha esperanças que o futebol ia dar-me a mão. O tempo foi passando. Quis esquecer o futebol, mas não conseguia.»

Por isso tomou uma decisão radical.

«Fui jogar no Montijo, nos distritais, para matar o bichinho. Com muito esforço consegui conciliar as duas coisas. Faltei a muitos treinos, mas fiz as duas coisas. Acordava às seis da manhã, ia a Copenhaga, voltava, à noite ia treinar e no dia a seguir voltava a acordar às seis para ir a Paris ou outro sítio», recorda.

«Tinha voos noturnos e cheguei a sair às 19 horas para ir a Cabo Verde ou a Dakar, chegava a Lisboa às sete da manhã, descansava um bocadinho e ia jogar. Completamente de rastos, mas ia. E aquilo fez-me realmente bem. Mas ao fim de dois anos não deu mais, a bebé precisava mais de mim, enfim. Deixei o futebol e foi muito difícil. Muito difícil.»

Tão difícil mas tão difícil, que Gisvi este ano decidiu voltar a jogar. Vai fazê-lo no Alcochetense, outras vez nos distritais, apenas para matar o bichinho. Aos 35 anos, com uma carreira de sucesso na TAP e uma vida boa ao lado dos que ama, o comissário de bordo espera matá-lo mesmo.

Até o bichinho não respirar mais.

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