[artigo originalmente publicado a 04-04-2018 23:50]
Depois do Adeus é uma rubrica do Maisfutebol dedicada à vida de ex-jogadores após o final das carreiras. O que acontece quando penduram as chuteiras? Como sobrevivem aqueles que não continuam ligados ao futebol? Críticas e sugestões para spereira@mediacapital.p
Ribeiro, lembra-se?
Lateral direito, franzino mas alto, meio loiro, viveu toda uma vida no Beira Mar. Natural de Aveiro, começou a jogar no clube com nove anos e só saiu quando já tinha 28.
Foram praticamente vinte anos naquela casa, portanto.
Depois ainda passou pelo Boavista e pelo modesto Alba, até que disse que para ele estava bom, obrigado. Foi com a camisola do Beira Mar, porém, que viveu os dias mais cheios. Estava no plantel quando os aveirenses venceram a Taça de Portugal, por exemplo. Participou numa vitória histórica no Estádio da Luz e não esquece também o dia em que foi campeão da II Liga.
Foi várias épocas capitão da equipa e ainda não há muito tempo foi homenageado pelos adeptos, juntamente com Fary, outro histórico do Beira Mar: no Mário Duarte, um estádio que lhe diz tanto.
Hoje está totalmente afastado do futebol.
«Acabei a carreira em 2013, no Alba, na terceira divisão. Quando pendurei as chuteiras não sabia minimamente o que ia fazer a seguir. Tinha terminado os estudos, tinha a minha licenciatura em Ciências da Comunicação finalizada, mas não sabia o que ia fazer», conta.
«Isto custa sempre. A melhor vida que existe é ser jogador de futebol. Depois de terminar a carreira passamos ali um período complicado. Sentimos falta do balneário, do estádio, do cheiro da relva, dos estágios, do convívio com os colegas e sobretudo da competição. A competição é que deixa mais saudades. É aquele bichinho, aquela ansiedade boa que se sente na pré-competição. É um frenesim que nos alimenta semana a semana.»
Ribeiro não é o típico jogador de futebol. Estudou, licenciou-se, fala com um discurso fluído, sabe exatamente os terrenos que pisa.
Ainda com 18 anos entrou na Universidade de Aveiro, no curso de Novas Tecnologias da Comunicação, mas nessa altura já era profissional e não conseguiu fazer mais do que seis cadeiras. Suspendeu os estudos, que retomou mais tarde: já depois de deixar o futebol profissional, pediu equivalências às cadeiras feitas e, então sim, licenciou-se em Ciências da Comunicação.
A vida, no entanto, levou-o para outros caminhos.
«Estudei para trabalhar em comunicação, marketing ou publicidade e era o que gostava de fazer. Mas nesta altura isso está posto de parte. Quando terminamos a carreira, temos de ser pragmáticos e agarrar o que aparece. Surgiu esta possibilidade e agarrei-a com unhas e dentes, porque é também uma boa solução para seguir a minha vida e ter uma atividade normal.»
Mas o que faz afinal Ribeiro?
«Vendo consumíveis de soldadura. É material de adição para a indústria. Por exemplo, uma arca frigorífica: na parte traseira há cabos de cobre por onde passa a água, o gás, enfim. Para unir esses cabos, tens de usar materiais de adição. É isso que eu vendo. Mas a expressão que melhor define esses materiais é consumíveis de soldadura.»
Ribeiro diz, de resto, que a oportunidade de trabalhar com consumíveis de soldadura surgiu por um acaso, como acontece com praticamente tudo na vida.
«Quando terminei a carreira não sabia o que ia fazer. Passei um período sem atividade profissional. Até que recebi um convite para trabalhar nesta área. Um ano depois surgiu a possibilidade de abrir uma empresa com um sócio, que é o que estou a fazer desde então. Já lá vão cinco anos», diz.
«Temos uma casa que está aberta das 8.30 horas às 18 horas, com um período de almoço pelo meio. Parte do meu tempo é passada no escritório, a outra parte é passada em reuniões com clientes, no país todo e no estrangeiro. O que obriga a viagens e por vezes passar um tempo fora de casa. Se gosto disto? Aprendi a gostar. Se calhar demorou um ano até me adaptar, mas depois percebi que a vida continua e que tinha de me dedicar a esta atividade da mesma maneira.»
Passar do futebol para os consumíveis de soldadura é praticamente uma revolução, e em todos os níveis. Até no aspeto financeiro, obviamente. Mas Ribeiro não se assustou com essa parte.
«Nós começámos a ganhar de facto dinheiro quando encarámos a vida como ela é. Eu já ganhei 600 e já ganhei 6. Naturalmente quando isso acontece tenho de fazer os ajustes necessários e tenho de me contentar com menos. Temos de encarar a realidade, temos de saber que vamos ganhar menos e temos de aceitar que mesmo assim podemos ser felizes», refere.
«Mas o que eu noto, e notei durante muitos anos, é que o jogador da bola depois de acabar a carreira tem uma grande dificuldade em se adaptar à nova realidade financeira. Se eu ganhei 600 e agora ganho 60, faço a vida em função de 60. Tem de se fazer algumas reservas em relação às férias ou em relação a compras, mas eu consigo viver com isso. Consigo ser feliz sem essas coisas.»
Ribeiro garante que estava totalmente consciente: sabia que a vida de jogador de futebol não ia durar para sempre. Havia que se preparar para o dia em que essa fatalidade chegasse.
«Quando estamos expostos à imprensa aproximam-se algumas pessoas, ou porque gostam de nós ou por interesse. Depois quando perdes o protagonismo, afastam-se. Mas nós temos de saber disso. Temos de saber que há pessoas que se aproximam para tirar proveito. Isso faz parte», acrescenta.
«Mas que há grandes diferenças, há. Quando jogamos futebol há muita gente a gravitar à nossa volta, quando deixamos a carreira paramos de ter tanta preponderância no meio social. Temos de saber quem esteve sempre connosco, porque esses é que importam.»
Ribeiro diz que vive bem com isso, porque só quer ser feliz com o que a vida lhe dá. Durante vinte anos deu-lhe o futebol, e por isso guarda excelentes memórias. Agora dá-lhe outra coisa.
«O Alba, por exemplo, foi uma descoberta. Treinava-se ao final do dia e era normal após os treinos o plantel juntar-se para comer e beber. Isso no início metia-me muita confusão. Fi-lo duas ou três vezes, não mais. Mas depois acabei por me habituar. No fundo vive-se a paixão do futebol na mesma. Aquelas pessoas trabalham e ao final do dia juntam-se para jogar cheias de adrenalina.»
É o futebol em estado puro.
Ribeiro é, de resto, um contador de histórias. E são tantas as que lhe vêm à cabeça. Histórias que nos piscam o olho, histórias que trazem um sorriso no canto da boca.
«Na altura do Manuel Cajuda estávamos a ganhar 1-0 no Dragão e o FC Porto a carregar, a pressionar. Estava a ser complicado para nós. No intervalo recolhemos ao balneário, completamente desfeitos, cansados, com a respiração ofegante, à espera que o treinador dissesse umas palavras. As palestras do Manuel Cajuda geralmente eram longas, ele falava muito, naquela retórica dele. Então ele chega, tudo à espera de um discurso e diz-nos: Ai vocês meteram-se nela? Agora desenrasquem-se. Virou costas e voltou para o relvado», sorri.
O que é certo é que os jogadores se safaram mesmo: venceram no Dragão por 1-0. Golo de Beto, de livre. Beto é aliás, ele próprio, um manancial de histórias.
«Uma vez, na Choupana, num jogo com o Nacional, perdeu um dente da frente e andou lá pelo relvado à procura dele. Era uma personagem», conta Ribeiro.
«Noutra altura falava-se do interesse do Benfica no Beto. Falou-se, falou-se, mas depois esse assunto morreu. Entretanto um dia fomos para um estágio num hotel de Santo Tirso, deixámos o Beto sozinho no quarto, foi a equipa toda para outro quarto e já não me lembro quem ligou para a receção, a pedir para passar ao quarto do Beto. Fez-se passar por jornalista e fez-lhe uma entrevista sobre ele ir para o Benfica. O Beto sempre muito a sério, a responder a tudo. Fartamo-nos de rir. O certo é que uns tempos depois ele foi mesmo para o Benfica.»
Ribeiro não esquece também outra história, que até mete Eusébio.
«Fomos jogar ao Estádio da Luz para a Taça. No fim do jogo, sempre cordial, o Eusébio foi ao nosso balneário cumprimentar-nos. Nessa altura, o Eusébio do Beira Mar, que jogou também no Tirsense e era de São Martinho do Campo, aproveitou e pediu ao King se lhe podia arranjar uma camisola do João Pinto. Viemos embora e tal, a camisola nunca mais chegou. Aquilo passou a ser tema de balneário, sempre a gozar com ele», lembra
«O Fusco e o Jorge Neves eram de Lisboa, um dia vão a uma feira de rua, compram uma camisola falsa do Benfica e de criança, com o nome do João Pinto. Mandaram aquilo com o código postal de Lisboa, pelo correio. Reunimo-nos todos para ver a camisola no dia em que chegou. Ele recebe-a e todos nós às gargalhadas com a camisola estampada da feira para criança. Ele sempre muito sério ainda responde: vocês pensavam que era para mim? Não, eu pedi-lhe para o meu filho.»
Ribeiro guarda uma carreira cheia, sim, que lhe permitiu até ser internacional sub-20 por Portugal, mas guarda também muitas histórias da vida dedicada ao futebol.
Hoje está afastado desse mundo, e não se arrepende. É apenas adepto do Beira Mar, clube que continua a acompanhar, sem nenhuma intenção de ser mais do que isso.
«Nunca tirei um curso de treinador, por exemplo. Não tenho perfil para ser treinador de futebol. Já estive num balneário, fui muitos anos capitão, e sei que não é fácil gerir personalidades. Fui capitão de um balneário que tinha treze nacionalidades. São muitas cabeças a pensar, muitos egos que é preciso gerir, é complicado. Acho que não teria perfil para ser treinador profissional.»
Deixar o futebol foi deixar um universo paralelo, e o antigo jogador não se arrepende disso. Afinal também sabe bem viver no mundo real, exatamente como ele é.
A vida continua já a seguir.
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