«Depois do Adeus» é uma rubrica dedicada à vida de ex-jogadores após o final das carreiras. O que acontece quando penduram as chuteiras? Como subsistem os que não ficam ligados ao futebol? Críticas e sugestões para o email vhalvarenga@mediacapital.pt.

A 18 outubro de 2021, poucos dias depois de Rúben Dias surgir na lista de 30 nomeados para a Bola de Ouro, o seu antigo parceiro de defesa nos juvenis e juniores do Benfica chegava ao fim do contrato com a Emporio Armani, após um ano de trabalho na loja da marca no Vila do Conde Porto Fashion Outlet.

João Lima terminou a carreira de jogador a 10 de fevereiro de 2019, ainda com 22 anos. Após cinco épocas no Benfica e duas operações ao joelho esquerdo, entre vários treinos com o plantel principal dos encarnados, o defesa-central iniciou um percurso descendente que o fez passar por União de Leiria, Leixões e Felgueiras. Foi na equipa B do clube felgueirense, aliás, que pisou os relvados pela última vez.

Campeão nacional de juvenis (2013) e finalista da UEFA Youth League pelo Benfica (2014), João Lima foi igualmente internacional português pelas seleções sub-17, sub-18 e sub-19. Fez dupla com Rúben Dias nos juvenis e juniores do clube encarnado, jogando ainda ao lado de nomes como Renato Sanches ou Gonçalo Guedes. O futuro era deles.

Na transição para a equipa B do Benfica, e após a segunda operação ao joelho esquerdo, o defesa natural do Porto começou a perder confiança. Relegado para segundo plano por Hélder Cristóvão, tentou sair para um clube da sua região mas foi parar à União de Leiria, como sexto central. Depois veio o regresso amargo ao Leixões, o empréstimo infrutífero ao Felgueiras, uma desmotivação contínua, as dores que voltaram e uma decisão abrupta: o fim da carreira.

«Não estava feliz, o futebol não me estava a deixar feliz. As coisas começaram a cair e eu psicologicamente comecei a cair também. Quando fui para a equipa B do Felgueiras, o joelho voltou a manifestar-se muito, porque eles jogavam num sintético não muito bom. Nem conseguia treinar. Chegou a um momento em que disse que tinha de parar», começa por explicar João Lima.

A 8 de março de 2016, num Real Madrid-Benfica para os quartos-de-final da UEFA Youth League, o jovem defesa fez o último jogo com a camisola encarnada, ainda como uma esperança do futebol português. Menos de três anos depois, pendurou as chuteiras: «Fiquei triste porque cresci no futebol, entrei para o futebol aos quatro anos e sempre imaginei atingir outros níveis, outros patamares, porque tinha mais do que condições para estar lá. Infelizmente, não aconteceu.»

«Depois de terminar a carreira e após um ano de luto de futebol, como lhe chamo, fui trabalhar. Estive um mês e meio a trabalhar na Nike e depois um ano na Armani, igualmente no Outlet de Vila do Conde. O contrato acabou agora em outubro. Nesta altura, estou à procura de uma nova situação e vou tirar o curso de nível 1 de treinador», frisa.

O Maisfutebol senta-se com o antigo jogador para uma longa conversa no bar Lais de Guia, na praia de Matosinhos, o refúgio para João Lima no período de luto do futebol. Foi ali bem perto, no Leixões, que o sonho começou a ganhar forma.

«Entrei aos quatro anos para o Pasteleira, que eram as escolinhas do Boavista. Depois estive nove anos no Leixões, aos 14/15 anos fui para o Benfica e estive lá até aos 20. No melhor período do Leixões, tive propostas do Benfica, do FC Porto, do Sp. Braga e de Espanha. Foi uma decisão muito ponderada, entre mim e os meus pais. Optei pelo Benfica por ser uma experiência diferente, por sair de casa, da zona de conforto, para viver apenas para o futebol e crescer. Vivi os melhores anos da minha vida no Seixal», salienta.

João Lima deixou a sua cidade e apresentou-se no centro de estágio do Seixal com 15 anos, longe da família e dos amigos. Os primeiros tempos não foram fáceis: «Quando cheguei lá, perceberam que eu tinha uma diferença muscular muito grande nas pernas e tive de fazer reforço. Não podia treinar nem jogar assim. Para além disso, passadas duas semanas, faleceu o meu melhor amigo, o Pedro Sousa. Jogava comigo no Leixões e faleceu de morte súbita, aos 15 anos. Ainda hoje sinto muita falta dele. Foi tudo junto e nesse momento pensei se valia a pena estar ali.»


 

Pedro Sousa jogava no Leixões e faleceu aos 15 anos

«É quando aparece a figura do que chamo de meu pai no futebol, o mister Renato Paiva, foi a melhor pessoa que conheci no futebol. Tratava-nos como filhos. Ele e o mister Nuno Cardoso eram uma equipa técnica incrível. Foi com ele que fomos campeões de juvenis, no Olival, depois de empatar com o FC Porto num livre do Gonçalo Guedes. Foi engraçado porque antes do livre o Andorinha estava a bater no peito, a dizer 'está aqui o escudo de campeão', mas o Guedes marcou e nesse dia ele teve de nos ir entregar o escudo ao balneário», brinca.

O Benfica empatou com o FC Porto no Olival (1-1) e garantiu a conquista do título, na penúltima jornada do campeonato de 2012/13. Seguiram-se confrontos no relvado, uma festa imensa no regresso a Lisboa e uma receção inesquecível na Luz. «Fomos festejar para Lisboa, ainda passámos por Fátima para acender uma velinha e chegámos ao pavilhão da Luz por volta da meia-noite. O pavilhão estava cheio, penso que a equipa de voleibol ou andebol também tinha sido campeã e ficámos juntos a festejar, com os adeptos eufóricos. Foi incrível.»

«Depois, foi no primeiro ano de júnior do Benfica que tive o primeiro problema no joelho esquerdo, no menisco externo. Fui operado mas recuperei totalmente e fiz uma grande época de júnior de segundo ano, onde voltei a fazer dupla de centrais com o Rúben Dias, com quem já tinha jogado nos sub-17. Estive bem no clube e na seleção e também o devo ao mister João Tralhão, que me ajudou muito», refere.

A propósito de Rúben Dias, um dos melhores centrais do mundo na atualidade, a opinião de quem alinhou ao seu lado no eixo da defesa: «Ele tinha a sua qualidade, destacava-se também por estar sempre a dar indicações durante o jogo, mas era sobretudo muito forte fora do campo. Trabalhava muito, era uma besta, nós até olhávamos de lado quando o víamos a sair de um jogo e a ir para o ginásio. Dizíamos que era ele a puxar o saco, mas não, o Rúben é mesmo assim. O Rúben é trabalho. Tem todo o mérito do mundo em ter chegado onde chegou.»

«O próprio pai do Rúben dizia que eu tinha mais qualidade que ele, dizia-me que eu tinha de levar o futebol mais a sério, porque tinha todo o potencial para chegar lá. Da geração deles, que são um ano mais novos, se calhar preferia o Ferro ao Rúben, o Ferro era mais elegante, tinha mais talento. Mas o Rúben venceu o talento com o trabalho. Trabalhou muito e venceu pelo trabalho», completa João Lima.

Renato Sanches e Gonçalo Guedes são outros dos grandes talentos dessa geração. Dois exemplos de qualidade inata, sem a capacidade de trabalho de Rúben Dias. «O Renato era mais traquina, era mais brincalhão. Mas o Renato tinha lá o talento. Era trabalhador mas estava mais tranquilo porque sabia que o talento estava lá. Quanto ao Guedes, é dos meus melhores amigos no futebol. Tirámos a carta juntos, vivíamos juntos, ele era muito traquina, muito deixa andar, esteve muitas vezes de castigo no Benfica porque era maluco, era fora da linha. O Guedes é alegria, é palhaçada. Tinha o talento, não tinha cabeça, mas lá atinou na hora certa e fico muito feliz por ele.»

Por cada nome que chegou ao mais alto nível, quatro ou cinco ficaram pelo caminho. O Maisfutebol desafiou João Lima a eleger três promessas que não singraram no Benfica e a escolha não foi difícil.

«Eu sou um deles (ndr. risos). Lembro-me do Isaac Fernandes, muito bom lateral direito. Já deixou de jogar, a cabeça às vezes não ajuda, tinha todos os atributos para chegar lá. O Pipo, Filipe Ferreira, um médio que agora está no Cova da Piedade, foi dos melhores jogadores que vi na formação do Benfica. Jogava muito. Por último, o Romário Baldé. Agora está em Chipre. Poucas vezes aproveitou as qualidades que tinha, era focado, mas havia ali qualquer coisa que não o deixava progredir. Pode escrever aí que nunca o vou perdoar por ter falhado aquele Panenka frente ao Shakthar para a Youth League», faz questão de salientar.

O defesa-central não esquece o Benfica-Shakthar Donetsk para os quartos de final da UEFA Youth League, na época 2014/15. Na temporada anterior, a formação encarnada tinha chegado ao jogo decisivo da competição, perdendo frente ao Barcelona (0-3). Dessa vez, caiu nos quartos de final.

«Ele podia ter marcado o 2-0 mas picou a bola no penálti, à Panenka, e falhou. O Shakthar fez depois o 1-1 e ganhou nos penáltis. Foi muito triste porque uma das melhores experiências que tive foi quando fomos à semana final da Youth League, na Suíça. Escreva mesmo aí que nunca o vou perdoar», insiste João Lima, entre sorrisos.

Por essa altura, o defesa-central já tinha experimentado a sensação de treinar com o plantel principal do Benfica: «A primeira vez que fui chamado para um treino da equipa principal, eu ainda era sub-17. Fiz o treino como lateral esquerdo, com o Nolito à minha frente. Mais tarde, estive lá uma semana com o Rui Vitória antes de um jogo com o Estoril e foi a única vez que treinei no Estádio da Luz. Esses momentos são os que mais me custam. Estava mesmo ali à porta e depois as coisas não aconteceram.»

Depois da primeira operação ao joelho esquerdo, João Lima recuperou a forma e o estatuto, arrancando para um segundo ano de juniores ao mais alto nível. Porém, quando transitou para a equipa B do Benfica, em 2015, o corpo voltou a ceder. «Voltei a sentir problemas no joelho, num jogo da Youth League frente ao At. Madrid em dezembro. Dois ou três dias depois, fui novamente operado ao menisco externo», recorda.

A segunda intervenção cirúrgica, a meio de uma temporada em que não era opção para Hélder Cristóvão na formação secundária dos encarnados, alterou o rumo da carreira do jogador: «Eu era muito tranquilo porque sabia que jogava, que ia ser titular, sabia que tinha qualidade e relaxava um pouco em cima disso. Se calhar fazia o suficiente porque sabia que chegava.»

«Quando digo que devia ter dado mais de mim, foi sobretudo na equipa B, quando tive a primeira adversidade. Não tive uma boa relação com a equipa técnica, com o Hélder. Eu se fosse treinador de uma equipa B, mesmo estando numa Liga profissional, tinha a sensibilidade de pensar que estava a lidar com jovens e preocupava-me com todos, não apenas com os titulares. Sem querer lavar roupa suja, o acompanhamento devia ter sido melhor. Não falo só por mim. Sentia-se muito o afastamento entre o treinador e os jogadores que não jogavam», lamenta.

No final da temporada 2015/16, perante a falta de oportunidades no Benfica B com Hélder Cristóvão, o defesa-central fez as malas: «Percebi que não contavam comigo na equipa B mas achava que tinha qualidade para uma II Liga. No último dia do mercado, fui de manhã para o Estádio da Luz, porque tinha tudo acertado com um clube do Norte, mas o presidente Luís Filipe Vieira não apareceu para assinar os papéis. A Associação de Futebol do Porto fechava às 16h00 e percebemos que já não ia dar tempo. Tivemos de arranjar uma solução à pressa e a solução foi a União de Leiria, do Campeonato de Portugal.»

«A nível pessoal, fiz muitas amizades, mas do ponto de vista desportivo foi mau, porque joguei pouco. Quando fui para o Leiria tinham o plantel fechado, com cinco centrais, eu era o sexto. No final da época surgiu a oportunidade de voltar para o Leixões, o meu clube, que estava na II Liga. Infelizmente, a pré-época não correu bem, eu já não estava no meu melhor, e fui emprestado ao Felgueiras. Os meus colegas diziam-me que tinha qualidade para mais, mas depois por motivos externos isso não aconteceu. São coisas que me ultrapassam», desabafa João Lima.

Por essa altura, o defesa-central já sentia que estava a desviar-se do rumo que tinha traçado para a sua carreira. Ia perdendo progressivamente o prazer de jogar futebol: «No Felgueiras, não começou bem e, quando fui falar sobre a minha situação, mandaram-me para a equipa B. Queriam-me mandar de volta para o Leixões, eu não quis, então mandaram-me para a B, que jogava num sintético. O joelho voltou a doer-me bastante. Tínhamos um grupo incrível, o balneário ajudava-me a esquecer um pouco a minha situação, mas eu estava fisicamente debilitado e mentalmente também não estava bem.»

«O meu maior problema foi o joelho mas também há ali uma parte em que mentalmente não fui suficientemente forte para superar as adversidades. A ajuda psicológica que tive foi da minha família, que nunca me faltou com nada. Quando parei, eles já estavam à espera, porque as coisas não estavam a correr como eu queria. Eles sabiam que eu não estava bem, não estava feliz», admite.

João Lima disputa o último jogo da carreira a poucos meses de celebrar o 23.º aniversário. Despede-se num modesto Folgosa Maia-Felgueiras B, para a Divisão de Honra da Associação de Futebol do Porto: «Voltei para Matosinhos, para casa, e estive um ano sem fazer nada. Muitos dias, chorava sozinho no meu quarto a ver vídeos de futebol. Senti um bocado de alívio mas também muita tristeza por deixar o futebol.»

«Em 2020, fui trabalhar em part time para a Nike, uma marca que sempre adorei. Ia trabalhar bem disposto, havia lá um bom espírito coletivo. Um mês e meio depois, surgiu a proposta da Armani, para um full time, também no Outlet de Vila do Conde. É uma loja muito mais parada, os clientes também são outros, com atendimento personalizado. Um futebolista que gosta de falar com todos, à vontade, de dizer uns palavrões, de repente estar ali de fato e gravata, a falar num tom cordial, num ambiente muito mais formal, custou-me. Até gostei, mas lá senti mais a falta do futebol. Aquela alegria de acordar para ir para um treino não é a alegria de acordar para ir trabalhar, como é natural», frisa.

Nesta altura, aos 25 anos, João Lima procura um novo sentido para a sua vida. A solução, acredita, estará no regresso ao futebol, em outras funções: «Depois destas experiências, percebi que tenho de voltar ao futebol, é a única coisa que me faz feliz. Estou à procura de outras coisas que me tragam felicidade, mas cada vez mais percebo que quero estar no futebol.»

«Acredito que vou voltar, agora de outra forma, também para passar um pouco da minha experiência aos jovens. Ainda pensei tirar o curso de diretor, mas prefiro o de treinador. Quero estar lá dentro, quero estar no balneário, é uma das coisas de que sinto mais saudades. O que levo do futebol, como jogador, são as amizades e as experiências. Em relação a isso, estou muito grato», remata o antigo defesa-central.