«Depois do Adeus» é uma rubrica dedicada à vida de ex-jogadores após o final das carreiras. O que acontece quando penduram as chuteiras? Como subsistem os que não ficam ligados ao futebol? Críticas e sugestões para o email vhalvarenga@tvi.pt.

31 de janeiro de 1998. O líder FC Porto, de Mário Jardel, Sérgio Conceição ou Capucho, futuro tetracampeão nacional (e penta no ano seguinte), visitava um Belenenses mergulhado no fundo da tabela classificativa da Liga. Na baliza da equipa do Restelo estava um jovem guarda-redes formado no clube: Marco Botelho, de 21 anos.

Nesse dia, contra todas as previsões, o Belenenses vergou um Super Porto à primeira derrota no campeonato 1997/98. Paulo Dias, que trabalha atualmente como rigger, marcou para a equipa da casa ao minuto 14. Depois, foi sofrer até ao fim e travar as inúmeras investidas da formação portista (1-0).

Marco Botelho assinou uma exibição memorável, num dos 19 jogos que realizou nessa temporada, a melhor no escalão principal do futebol português. O guardião teve outros motivos para sorrir ao longo da carreira, sobretudo nas passagens por Portimonense ou Atlético, e pendurou as luvas em 2014, com 38 anos, na baliza do Oriental.

Entre as vivências como treinador de guarda-redes no Pinhalnovense, no Amora e no Cova da Piedade, o filho de António Botelho – um nome histórico entre os postes – lançou-se em experiências profissionais longe do futebol, em busca de um rendimento fixo.

«Abri uma pastelaria com a minha mulher, mas infelizmente tivemos de a fechar. Desde então, fui ajudante de pladur, ajudante de serralheiro, distribuidor de pão. Enfim, já fiz muita coisa. Agora, trabalho há cerca de dois anos como empregado de mesa num restaurante, onde me sinto bem», começa por exemplar, ao Maisfutebol.

Botelho partilha um cenário com que se deparam centenas de jogadores portugueses após o final das respetivas carreiras. «Foi bastante difícil a transição. Nas gerações atuais há mais consciência disso, mas no meu tempo não havia essa mentalidade, de estudar tento em vista o futuro. Com a idade avançada que tinha, sem formação, sendo ex-jogador, foi muito complicado entrar no mercado de trabalho.»

«Tive de me fazer à vida. Não fui pago de forma a ter uma reforma que me permitisse não fazer nada e mesmo as experiências que tive como treinador de guarda-redes foram mais por carolice, ou para ajudar amigos. O único local onde desempenhei a função com estatuto mais profissional foi no Cova da Piedade. Não descarto voltar ao futebol, mas a equipa técnica a que estou ligado, do João Barbosa, não tem tido projetos e tenho recusado alguns convites, porque aqui no restaurante recebo a horas e eu e a minha família precisamos dessa estabilidade», frisa.

O antigo guarda-redes trocou as luvas pelas bandejas e garante que deu esse passo sem qualquer tipo de complexo. «Já na distribuição de pão era muito reconhecido pelas pessoas, mas sempre tive facilidade em lidar com isso. Quando era jogador, procurava respeitar toda a gente, ser o mesmo Marco que cresceu nesta zona. E agora é a mesma coisa. As pessoas sabem ver isso. Esta nova etapa faz parte da vida, não podemos ser todos doutores.»

«Gosto do que faço atualmente, se bem que a restauração é exigente, trabalhar aos fins de semana, fazer atendimento, etc. Sinto que tenho melhorado, embora não me considere ainda um empregado de mesa de primeira. Trabalho no restaurante Cantinho do Afonso, aqui no Seixal, e normalmente servimos almoços a pessoal das obras, ou outros, que querem comer rápido, nem sempre é fácil, mas é um trabalho gratificante», remata Marco Botelho.

O antigo guarda-redes nasceu no Porto, em 1976, numa altura em que o seu pai representava um clube da cidade. António Botelho, um senhor das balizas, foi internacional português e defendeu as redes de clubes como Benfica, Sporting, Boavista ou Atlético.

«A família da minha mãe é do Porto, eu nasci lá, sou portuense e portista de gema. Mas vim para a Margem Sul com cinco/seis anos e cresci aqui, no concelho do Seixal», explica.

Marco Botelho passou por Seixal, Amora e Belenenses ao longo do percurso na formação. O clube do Restelo seria, de resto, o mais marcante na sua carreira: «Cheguei como juvenil e tive contrato com o Belenenses durante 16 anos, até aos 30. A ligação só terminou quando fui para o Maia, em 2005.»

O jovem guardião foi cedido pelo Belenenses a Oriental e Santa Clara antes de lutar pelo seu espaço na baliza azul. A temporada 1997/98 foi de afirmação no escalão principal, a nível individual, com 18 jogos no campeonato e um na Taça de Portugal.

A tal receção ao FC Porto ficou na história e até o pai de Marco elege esse como o jogo mais entusiasmante a que assistiu: «Percebo que foi o jogo com maior impacto, que me deu maior destaque, mas olhe que até acho que não foi o meu melhor jogo. Teve foi maior exposição, até porque nós íamos em último e o FC Porto ainda não tinha perdido. Conseguimos marcar e depois eles meteram a carne toda no assador.»

«A certa altura, pareciam índios em direção à nossa baliza, foi uma pressão imensa. Mas curiosamente, não me recordo de fazer assim tantas defesas difíceis. O FC Porto nessa altura apostava demasiado nos cruzamentos, à procura do Mário Jardel, e eu fui conseguindo anular quase todos. Houve um lance em que quase comprometi, mas aí fui bafejado pela sorte. Curiosamente, acabei por nunca sofrer um golo do Jardel, coisa rara, em três jogos em que o defrontei», diz.

Botelho despontou na Liga com 21 anos, mas não conseguiu evitar a descida de divisão. No verão de 1998, o Belenenses apostou num guarda-redes experiente que viria a marcar a caminhada do jovem português: Marco Aurélio.

«O Marco Aurélio foi um excelente guarda-redes, é uma excelente pessoa e um grande amigo. Mas sei que se tivesse tido um adversário diferente na luta da baliza do Belenenses, a história podia ter sido outra.  Foi uma luta renhida com ele, embora um pouco desigual pelo estatuto que o Marco tinha e eu não. Em caso de dúvida, jogava ele. De qualquer forma, tive o privilégio de trabalhar com um grande profissional», salienta.

A baliza do Belenenses passou para Marco Aurélio, que fez 30 jogos na época 1998/99, na caminhada de regresso da equipa do Restelo ao escalão principal. Marco Botelho jogou apenas uma vez. No ano seguinte, o português ainda disputou nove jogos no campeonato nacional, mas perdeu a batalha para o experiente Marco Aurélio, que viria a inscrever o seu nome na história do clube.

«Acabei por ser emprestado ao V. Setúbal a meio da temporada 2000/01, subimos de divisão com o Jorge Jesus, e depois duas épocas ao Portimonense, onde fui muito feliz», explica.

Seguiram-se Santa Clara e Louletano, ainda por cedência do Belenenses, antes do fim de uma ligação de 16 anos ao emblema da Cruz de Cristo, o único que representou no escalão principal.

«A partir daí foi sempre a descer», atalha Marco Botelho, com boa disposição. Maia, Lagoa, Pinhalnovense, Atlético e Oriental para a despedida, em 2014: «Conseguimos subir no Oriental, foi uma forma bonita de terminar a carreira. Ainda fui inscrito no Amora, no ano seguinte, mas já estava como treinador de guarda-redes. Deixei de jogar porque me diagnosticaram duas hérnias na cervical e o neurocirurgião avisou-me que corria o risco de ter grandes problemas no futuro.»

Apesar de ter estado apenas duas temporadas no escalão principal do futebol português, o guarda-redes faz um balanço de carreira extremamente positivo: «Cumpri o meu sonho, sempre quis ser profissional de futebol e sobretudo ser igual. Ou seja, sair do futebol com a mesma humildade com que entrei, com respeito pelas pessoas. De resto, uns são Ronaldos e outros não.»

«Podia ter chegado mais longe, também cometi erros, mas isso faz parte do crescimento das pessoas. Talvez tenha percebido isso um bocado tarde, mas no fundo, acabei por sair com o meu objetivo cumprido. Fui profissional e joguei em todas as divisões do país», frisa.

Marco Botelho destaca três clubes ao longo do seu percurso, sem negligenciar os restantes. «Onde me senti mais em casa foi no Atlético e no Portimonense, sem esquecer o Belenenses, claro, clube onde me formei, onde me fiz homem. Não esqueço as subidas de divisão em clubes históricos como o Atlético ou o Oriental, mas destacaria o Atlético», ressalva.

«O meu pai tinha jogado no Atlético e foi bonito eu ter jogado igualmente lá. É um clube diferente, muito bairrista e as pessoas estavam com saudades de viverem momentos históricos. Possibilitar o regresso aos campeonatos profissionais foi inesquecível, é algo que dificilmente nos sai da memória. Hoje em dia, até posso dizer que me sinto mais Atlético que Belenenses», remata o antigo guarda-redes.