«Depois do Adeus» é uma rubrica dedicada à vida de ex-jogadores após o final das carreiras. O que acontece quando penduram as chuteiras? Como sobrevivem os que não ficam ligados ao futebol? Críticas e sugestões para o email vhalvarenga@mediacapital.pt.

«Já sei que alguns vão gozar-me: ‘olha este, era uma grande promessa, agora é camionista’. Mas se este testemunho ajudar algum jovem que esteja agora a começar a carreira, já valerá a pena.»

Mário Carlos foi uma das grandes promessas da sua geração e sagrou-se campeão europeu de sub-16 em 2000, a par de nomes como Custódio, Raúl Meireles, Hugo Viana ou Ricardo Quaresma, companheiro de quarto nos escalões jovens da seleção nacional e jogador da mesma posição.

Produto da formação do Vitória de Setúbal, o talentoso extremo estreou-se na Liga aos 19 anos, terminando a época 2002/03 com 25 jogos e três golos marcados. Nessa altura, parecia destinado ao topo. Mário Carlos não chegou ao patamar mais elevado e foi perdendo o encanto pelo futebol. Tanto que em 2012, com 29 anos, abandonou a carreira.

«Estou feliz por ter deixado de jogar, o futebol quase acabou com a minha vida. Ainda recentemente, disse ao meu pai que a minha salvação foi ter deixado o futebol, senão tinha batido no fundo. Se tivesse continuado, não sei o que seria de mim.»

Mário Carlos representou Vitória de Setúbal, Nacional, União de Leiria, Sporting de Espinho, Barreirense, novamente Vitória de Setúbal, Zamora (Espanha), Alki Larnaca (Chipre), Ermis Aradippou (Chipre) e Chalkanoras Idaliou (Chipre).

O Maisfutebol descobre o antigo jogador em Inglaterra, após um incrível processo de transformação, mental e física. Outrora um franzino extremo, Mário Carlos é agora um corpulento camionista, depois de ter descarregado contentores, de ter sido lutador profissional de Thai boxing e segurança privado em eventos. Venha daí para um relato puro e duro, a merecer produnda reflexão.



Maisfutebol - Mário, qual foi a razão para ter terminado a carreira de jogador tão cedo?

Mário Carlos – Quando fui jogar para Chipre, em 2007, ainda se ganhava bem, mas a partir do momento em que Chipre adotou o euro como principal moeda, os ordenados começaram a descer bastante. Em 2012, estava com três meses de salários em atraso e fartei-me, decidi fazer algo diferente.

MF – Esse cenário de salários em atraso estava a colocá-lo perante dificuldades financeiras?

MC – Exato. Tinha problemas financeiros, devido aos salários em atraso, e estava a fugir das situações. E nem foi a primeira vez na carreira. Num clube, que prefiro não nomear, cheguei a ter sete meses de salários em atraso! E chegava aos jogos e era insultado a torto e a direito pelos adeptos, para correr mais, para dar mais. E receber, nada. Nessa época em Chipre, a paixão pelo futebol já tinha morrido há algum tempo, naquela fase já só me mantinha pelo ordenado, mas não iria arrastar a situação só para dizer que era jogador. Isso nunca foi importante para mim.

MF – Tinha algo preparado para o final da carreira?

MC - Tinha amigos em Inglaterra e decidi ir para lá. Cheguei a Inglaterra no dia 16 de novembro e a 19 ou 20 já estava a trabalhar, a descarregar contentores num grande armazém, chamado Argos, uma espécie de Rádio Popular, a ganhar o salário mínimo, seis libras por hora.

MF – Essa transição não deve ter sido nada fácil.

MC - Estava onde nunca imaginei que iria estar. De internacional sub-21, campeão europeu de sub-16, a descarregar contentores. Os primeiros seis meses foram muito duros. A minha mãe chegou a dizer-me para eu voltar para casa, mas não podia voltar a viver à custa dos meus pais, tinha de ser independente. Muitas vezes perguntavam-me o que eu fazia antes e nem dizia. Aqui a realidade é bem diferente, porque os jogadores da segunda divisão ganham 15 mil libras por mês.

MF – Qual foi o segredo para superar essa fase?

MC – Fui trabalhando, fui conhecendo pessoas aqui, mas faltava-me a competição. Tudo mudou quando me inscrevi numa academia de Thai boxing. Fui melhorando e comecei a entrar em combates. Comecei a treinar num ginásio aqui perto e tinha um treinador, chamado Dennis, que tinha sido campeão inglês. Foi ele que a certa altura me desafiou para competir. Cheguei a número 12 no ranking do Reino Unido! Mas tive várias lesões, vários cortes, cheguei a cortar um tendão de uma mão e fiquei três meses sem trabalhar. Decidi que já não dava para continuar. Agora dedico-me mais ao boxe.



MF – Quando é que passou a segurança privado?

MC – Já tinha esse objetivo bem presente, tirei cursos de segurança e comecei a trabalhar em eventos de DJ’s famosos, de rappers, de VIP’s. Foi quando senti que precisava de ganhar corpo. Quando cheguei a Inglaterra tinha 68-70 quilos. Entretanto cheguei aos 98! Começou a ser quase uma obsessão, mas também foi útil porque no meu trabalho havia muita luta, muito contacto, e precisava de ter capacidade para tirar duas ou três pessoas do caminho, se fosse preciso. A minha mãe, quando me viu, disse que eu parecia um monstro.

MF – Gostava dessa profissão?

MC – Foi bom porque fiz segurança em concertos de vários nomes conhecidos aqui no Reino Unido, como o Stormzy, o Jay Kay, o Lil Dicky. Também tive a oportunidade de trabalhar em eventos em Espanha, na discoteca BCM de Maiorca por exemplo, na Croácia, etc, e cheguei a ganhar duas mil libras numa noite. Mas o trabalho era stressante. Aqui em Inglaterra não é como em Portugal, é mais duro. Temos de usar colete à prova de bala, são seis ou sete mil pessoas numa discoteca, há muitos gangs, muitos ataques à faca. O mais grave que me aconteceu foi terem-me partido uma garrafa no olho direito, cortou-me o sobrolho. Foi mesmo uma grande luta.



MF – Quando é que decidiu passar a conduzir camiões?

MC – Casei-me em julho e, também por influência da minha mulher, decidi seguir outro caminho. Aquilo era mesmo muito duro. Queria ter um ordenado aproximado do que ganhava como segurança, há cerca de três meses tirei a carta de pesados e arranjei trabalho perto de casa. Moro em Northamptonshire, a uma hora e vinte de Londres, porque aqui consigo ter casa por 700 libras e na capital custaria 4.000. Faço transportes diários pelo Reino Unido: Inglaterra, Escócia e Irlanda. Aqui um motorista ganha facilmente 1.200 libras por semana.

MF – Está feliz, portanto?

MC – Bastante. Estou feliz por ter deixado de jogar, o futebol quase acabou com a minha vida, estive quase a bater no fundo. Ainda recentemente, disse ao meu pai que a minha salvação foi ter deixado o futebol, senão tinha batido no fundo. Se não tivesse deixado, não sei o que seria de mim.

MF – Mas continua a jogar com amigos e a ver futebol?

MC - Atualmente, vejo pouco ou nada de futebol. Vejo o Vitória de Setúbal, o FC Porto e a seleção, por causa do Cristiano Ronaldo, com quem joguei nas seleções jovens. Fui sendo convidado ao longo destes anos para voltar a jogar, mesmo aqui em Inglaterra, mas não quero mais nada com o futebol. Há quatro anos que não toco numa bola. Mesmo quando amigos me convidam para ir ver jogos deles, digo que é melhor eu dar uma volta com a minha mulher e que nos encontramos depois do jogo.

MF – O desencanto em relação ao futebol é assim tão grande?

MC - Sinto que o futebol não me fez bem, as pessoas que estiveram à minha volta não me fizeram bem, prometeram mundos e fundos e não cumpriram. Falo de presidentes, empresários e houve mesmo colegas que me fizeram mal. Tenho memórias boas da minha carreira, mas 90 por cento das vezes o futebol é madrasto. Todos os jogadores querem ser o Cristiano Ronaldo e todos os pais querem ser o Jorge Mendes. Se tens 28 ou 29 anos, convence-te que já não vais ser o Cristiano Ronaldo, esquece. Trata do teu futuro porque a tua carreira não é o mais difícil. O grande desafio vem depois, vem quando o futebol acaba.

MF – Olhando para trás, o que mudou desde que foi campeão europeu de sub-16?

MC - O Europeu de sub-16 foi um momento bonito. Fomos à final sem saber como. Nos quartos de final, contra a Alemanha, empatámos com um golo do Carlos Marques do meio-campo (1-1). Depois, nos penáltis, a Alemanha teve 3 ou 4 hipóteses de resolver, mas falhou sempre. Nas meias-finais joguei eu de início e vencemos a Grécia (2-1), na final jogou o Quaresma e marcou os dois golos à República Checa (2-1). Depois ainda vencemos a Meredien Cup de sub-17.

MF – Nem todos dessa geração tiveram sucesso.

MC - Aquela geração tinha muito talento mas em Portugal ainda há muito a ideia de que os estrangeiros é que são bons. O Sílvio Nunes tinha um talento do outro mundo, o Valdir era mais novo e um portento, o João Paiva era um matador sem igual e ele, por exemplo, só teve oportunidades a sério na Suíça. Se aqui em Inglaterra surgisse uma geração igual, iriam seguramente todos jogar na Premier League, teriam tempo e espaço para crescer.

MF – No seu caso, o que teria feito de diferente?

MC - Um dos meus maiores erros foi não ter ouvido mais o meu pai, mas como se costumava dizer, era miúdo, ganhava bem e saía cedo. Diziam que eu era vaidoso mas não era isso, simplesmente sabia que tinha qualidade, que era bom. Com 19 anos fiz a estreia na Liga, pelo Vitória de Setúbal contra o Boavista campeão, e fui o melhor em campo. No final dessa época, o Vitória desceu e eu tinha duas propostas: do Nacional e do Wolverhampton.



MF – Decidiu ir para o Nacional da Madeira. Porquê?

Nessa altura falava-se muito que eu seria o sucessor do Quaresma no Sporting, porque tinha sido assim nas seleções jovens, ou jogava ele, ou jogava eu. O meu empresário era o Jorge Mendes, que nesse verão de 2003 meteu o Ronaldo no Manchester United e o Quaresma no Barcelona. A mim disse-me: ‘Vais para o Nacional que eu em dezembro ou no final da época meto-te no Sporting’.

MF – O que correu mal?

MC - Comecei muito bem a época no Nacional, marquei dois golos ao Estrela da Amadora e fui o melhor jogador do mês na Liga. Até se falava na seleção. Nessa altura, o Scolari chegou a ir ao nosso hotel ter com o Casemiro Mior, que era seu amigo, e esteve a falar comigo. Porém, na véspera do jogo com o Sporting, parti dois dedos do pé. Entretanto, o Alexandre Goulart entrou no onze, agarrou o lugar, o Nacional fez uma grande época, ficou no 4.º lugar, e a partir daí foi sempre a descer.

MF – A hipótese Sporting nunca se concretizou.

MC - Exato, não aconteceu. Aliás, quando saí do Nacional o meu empresário desapareceu, nunca mais deu notícias. Não devia ser assim. Pois bem, no final da época do Nacional fui para a União de Leiria do João Bartolomeu, um presidente que tinha uma panca enorme. Enfim, foi uma espiral de más escolhas. Mais tarde fui para a Roménia e entretanto recebo um telefonema do enorme Quinito a convidar-me para voltar ao Vitória. Forcei a rescisão com o clube romeno, cheguei ao Vitória, o clube do meu coração, e foi um descalabro. Em termos financeiros, o Vitória não era viável, foi muito mau mesmo. Tanto em que dezembro desse ano fui para Espanha, para o Zamora, onde estavam o Toni e o Ricardo Ramires.

MF – Em 2007 rumou a Chipre, onde viria a acabar a carreira.

MC – Sim, fui para o Alki e o primeiro ano em Chipre foi muito bom, foi bonito. Estive nesse clube com o Nandinho, o Chaínho, o Clayton, o Elpídeo Silva, etc. Ainda cheguei numa boa fase, em que se ganhava bom dinheiro em Chipre, mas tudo mudou quando eles adotaram o euro. Ainda joguei mais de cinco épocas lá, até abandonar a carreira em 2012.



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