«Depois do Adeus» é uma rubrica dedicada à vida de ex-jogadores após o final das carreiras. O que acontece quando penduram as chuteiras? Como sobrevivem os que não ficam ligados ao futebol? Críticas e sugestões para o email vhalvarenga@mediacapital.pt.

Miguel Xavier demonstrou qualidade nos escalões profissionais do futebol português entre 2001 e 2005, representando Paços de Ferreira (Liga), Farense, Desp. Chaves e Feirense (II Liga). Por essa altura, porém, já estava a suportar o trauma que acompanhou o seu percurso como sénior.

O médio revelado pela União de Leiria tinha argumentos para chegar mais longe. Aliás, estreou-se na Liga ainda com 17 anos, pela equipa leiriense. O sonho viria a transformar-se em pesadelo na transição para a idade adulta.

O Maisfutebol reencontra Miguel Xavier em Leiria, atualmente com 42 anos e uma carreira consolidada como professor. Pela primeira vez, o antigo jogador decide falar publicamente sobre o atropelamento trágico de janeiro de 2000, com impacto tremendo na sua vida.

«Depois de sair da União de Leiria, fui para o Beneditense. Certa noite, ao vir da Benedita para Leiria pela estrada nacional, um senhor que vinha a pé atravessou-se à frente do meu carro e não tive hipótese de me desviar. Infelizmente, ele acabou por falecer», começa por contar.

Miguel Xavier tinha apenas 19 anos e nunca mais esqueceu esse dia: «Aqui em Leiria difamaram-me um pouco, disseram que eu vinha da noite e tal. Era de noite, sim, mas eu vinha do treino. Concluiu-se que o senhor estava alcoolizado, que eu não tive qualquer responsabilidade, mas fiquei traumatizado. Eu era apenas um miúdo.»

«Derivado a esse trauma, pouco tempo depois, caiu-me de repente o cabelo. Foi num instante, no espaço de um mês, fiquei sem cabelo, sobrancelhas, etc. Tudo derivado ao sistema nervoso. Percebi mais tarde que era alopécia areata, o mesmo problema que o Pierluigi Collina tem», explica. E se o antigo árbitro nunca soube qual foi o gatilho emocional para perder o cabelo aos 24 anos, Miguel Xavier não tem qualquer tipo de dúvida: «Sei que foi isso, atropelei uma pessoa que infelizmente faleceu, sem eu ter tido qualquer culpa, mas ficou-me marcado e caiu-me o cabelo todo com o trauma.»

O médio resistiu à tormenta física e psicológica para fazer ainda uma carreira de bom nível, regressando à Liga já com a calvície total que ficou na memória dos adeptos: «Joguei pelo Paços de Ferreira, um clube que me apoiou bastante. O mister José Mota é dos melhores seres humanos que apanhei, ele tinha um amigo com a mesma doença e foi um grande apoio para mim. No Paços, até falámos de fazer um transplante de sobrancelhas, porque eu sofria muito com o suor.»

Miguel Xavier passou depois por Farense, Desp. Chaves e Feirense, sempre na II Liga. «No Feirense, encontrei o doutor Ângelo, que tinha muitos conhecimentos de medicina alternativa e conseguiu que me voltasse a crescer o cabelo e a barba. Só que durou pouco e voltou a cair de novo. Foi muito difícil superar psicologicamente o que me aconteceu com 19 anos. Tive de procurar ajuda e, felizmente, hoje já consigo falar melhor dessa situação. Ao longo da minha carreira, nunca falei disto», salienta.

«Tenho de agradecer sobretudo à minha mulher, que sempre me apoiou. Começou a namorar com um rapaz bonito, cheio de cabelo, e depois ficou com um careca completo. E aqui estamos, após 25 anos de casamento e com dois filhos», desabafa o antigo jogador.

Para além da alopécia areata, Miguel Xavier lidou ainda com sucessivas lesões, outro fator que impediu a afirmação ao mais alto nível: «Tive a primeira lesão aos 16 anos e terminei a carreira com quatro operações no joelho direito e quatro operações no joelho esquerdo. Felizmente, penso que as operações correram bem, senão nem tinha conseguido jogar futebol até aos 37 anos.»

Do futebol ao xadrez: a nova vida do Professor Xavier

Voltaremos à carreira futebolística daqui a pouco. Por agora, abordemos o Depois do Adeus, o que o antigo médio fez depois de pendurar a chuteiras em 2014, após nova lesão grave. «Eu nunca deixei de pagar propinas e, quando regressei ao Fátima em 2005, voltei à faculdade e esforcei-me para concluir o curso de Professor do Ensino Básico, com variante de Educação Física.»

«Atualmente, dou aulas e sou coordenador de uma CAF – Componente da Apoio à Família. Para além disso, sou professor de xadrez nos Corvos do Lis, uma equipa que está na primeira divisão e que foi criada por amigos meus.»

Xadrez? Sim, leu bem.

«Eu sempre gostei de xadrez e tenho o curso de 1.º nível, que é difícil de tirar, porque são cerca de 500 horas. Treino o nível mais básico, normalmente a miúdos até aos 12 anos, depois eles evoluem e passam para outro treinador. A nossa equipa de primeira divisão é treinada por um mestre de Lisboa», explica.

O futebol, garante o Professor Xavier (não confundir com o famoso mentor dos X-Men), não saiu definitivamente de cena: «Tenho o 1.º e o 2.º níveis do curso de treinador. Acabei de jogar no GRAP, aqui perto de casa, e treinei os juniores desse clube durante três anos. Aceitei entretanto um convite para assumir os juniores do Marrazes mas, como já se previa que a formação ia parar por causa da covid-19, desafiaram-me para ser adjunto da equipa principal do GRAP e decidi aceitar.»

«Formámos uma equipa para disputar o Campeonato de Portugal, uma boa equipa, mas entretanto a direção saiu, entrou outro presidente e decidiu mudar tudo, apresentando ideias nas quais não nos revíamos. Foi pena o que se passou depois, com notícias de agressões do presidente ao novo treinador e a desistência do Campeonato de Portugal. Portanto, neste momento estou sem treinar, mas gostava muito de continuar no futebol. Recentemente, também me federei e disputei alguns jogos de Teqball», remata o multifacetado Miguel Xavier, sem sinais de cansaço.

De França a Leiria, passando pelo FC Porto

Para trás ficou, então, uma carreira de jogador profissional que prometia muito. Miguel Xavier nasceu em França em 1978 e, por lá, o seu talento já estava a ser reconhecido.

«Fiquei em França até aos 15 anos e estava lá num centro de formação, na região de Paris, um dos projetos de formação que lançaram para serem Campeões do Mundo em 1998. Entretanto, estava a jogar pela seleção, o FC Porto viu-me e convidou-me», relata o antigo médio.

Os registos não apresentam essa passagem pelo FC Porto e explicação é simples. Simples e caricata. «Eu não sabia falar, ler e escrever português e não havia vaga no lar onde moram os jovens do clube que vêm de fora. Queriam meter-me num apartamento sozinho, mas os meus pais não concordaram, acharam que eu ficaria muito isolado e acabei por vir para Leiria, de onde são os meus pais», recorda.

Miguel Xavier cresce nas camadas jovens da União de Leiria e, ainda como júnior, começa a treinar com o plantel principal. A 12 de maio de 1996, faz a estreia na última jornada do campeonato frente ao Felgueiras de Jorge Jesus, que vence esse jogo (3-0, com um dos golos a ser apontado por Sérgio Conceição) mas não consegue evitar a despromoção: «Entrei ao intervalo, estava com 17 anos e nessa altura ainda tinha cabelo.»

«Nessa altura do Leiria ainda fui a alguns estágios da seleção portuguesa. No ano seguinte fiz mais um jogo pela equipa sénior na Liga mas a vida em Leiria, com o João Bartolomeu, não era fácil para os jovens da formação. Quis emprestar-me, desentendi-me com ele e fui para o Beneditense, que era o segundo maior clube da zona e estava na 2.ª Divisão B», explica.

O médio atravessa então a fase mais negra, com o atropelamento mortal, e luta para preservar a estabilidade emocional. Recupera algum fulgor em 2000, com a camisola do Fátima, e assina pelo Paços de Ferreira na época seguinte para regressar à Liga com 23 anos. Já sem cabelo e a carregar o peso das sucessivas lesões.

Após 11 jogos na Liga pelo Paços, Miguel Xavier ruma ao Farense e faz uma grande época: «Estava a correr-me bem, estava a despertar o interesse de vários clubes até que, na penúltima jornada, um jogador do FC Marco partiu-me o joelho. Foi literalmente assim. O que vale é que, mesmo lesionado, o José Alberto Costa quis levar-me para o Desp. Chaves. No ano seguinte, fui para o Feirense com o mister Francisco Chaló.»

«Nessa altura, tinha 26 anos e já cinco operações aos joelhos. Voltei para o Fátima em 2005, foi quando apostei em terminar o meu curso superior, e ainda fizemos boas épocas. Subimos à II Liga com o Rui Vitória, no ano seguinte vencemos o FC Porto e um jogo com o Sporting na Taça da Liga, mas descemos de divisão. Em 2008/09, voltámos a subir e fomos campeões, frente ao Desp. Chaves do Leonardo Jardim», sintetiza o antigo jogador.

Já na reta final da carreira e a par do início da experiência como professor, Miguel Xavier representa União da Serra, Akritas Chiorakas (Chipre) e Sp. Pombal. «No Sp. Pombal, ainda fui campeão e ganhei a Taça distrital. Depois, em 2014, a minha mulher engravidou e acabei por vir jogar para o GRAP, para perto de casa. Foi quando tive nova lesão grave, com arrancamento da rótula, fui operado duas vezes e terminei a carreira, aos 37 anos.»

«Quem acompanhou o meu percurso e a minha história, como os meus ex-colegas, valorizou sempre o meu sacrifício, a minha capacidade de luta. Eu dava tudo em campo. Se não fosse o que me aconteceu, sei que podia ter chegado muito mais longe. Mas tentei sempre resistir e tive um percurso que me orgulha», remata o antigo médio.