«Depois do Adeus» é uma rubrica dedicada à vida de ex-jogadores após o final das carreiras. O que acontece quando penduram as chuteiras? Como sobrevivem os que não ficam ligados ao futebol? Críticas e sugestões para o email vhalvarenga@mediacapital.pt.

«Eu também joguei com o Cristiano Ronaldo e agora estou nos autocarros.»

Um comentário de Ricardo Pinto na página do Maisfutebol no Facebook despertou a nossa curiosidade. Alguns leitores brincaram com a situação - «No FIFA não conta» -, mas nada melhor que um contacto direto para esclarecer o tema.

De facto, Ricardo jogou com Cristiano Ronaldo no Sporting. Foi um de muitos jovens dos escalões de formação a não chegar ao futebol profissional, ao contrário do atual avançado da Juventus e de outras exceções, apresentando-se como um exemplo do que geralmente acontece com fornadas e fornadas de jovens talentos, um pouco por toda a parte.

Ricardo Pinto era guarda-redes, passou pelas camadas jovens do Sporting e do Alverca, ainda jogou na antiga II Divisão B mas depressa percebeu que esse não seria um caminho viável para o seu futuro.

Após outras experiências profissionais, o antigo companheiro de equipa de Ronaldo está em Ponte da Barca e trabalha como motorista de transportes pesados de passageiros, fazendo viagens constantes entre o norte de Portugal e França.

Regressemos ao comentário de Ricardo Pinto do Facebook do Maisfutebol: «Eu apanhei o Ronaldo logo no primeiro ano de infantis, o meu segundo ano no Sporting. Comecei nas escolinhas, com 9 anos, fui treinar à experiência na frente mas não dava uma para a caixa. O meu pai puxou-me para a baliza porque eu era alto – agora tenho 1,91 metros – e correu bem, fiquei logo.»

«Quando o Ronaldo chegou ao Sporting (ndr. 1997), gozámos um pouco com ele por causa da pronúncia, às vezes nem percebíamos o que ele dizia. Mas o que me ficou mais marcado foi a falta que a família lhe fazia. Por outro lado, ele era muito focado naquilo que queria», frisa Ricardo Pinto.

O antigo guarda-redes considera, porém, que a distância em relação à família permitiu a Cristiano Ronaldo concentrar-se totalmente no seu objetivo: «Íamos todos sair mas ele raramente ia connosco, dava-se com toda a gente mas não se desviava do objetivo. Uma das coisas que fez a diferença foi mesmo não ter a família por perto. Havia mais jogadores acima da média, como ele, mas o Ronaldo tinha foco total no objetivo.»

«Outro aspeto dele é que sempre foi supercompetitivo. Lembro-me de irmos para casa de um amigo em Caneças, de jogarmos ping-pong e até nisso ele querer ganhar sempre. Por isso é que aos 35 anos continua obcecado, a sua ambição não tem limites. Um dos grandes amigos que ele tinha era o José Semedo. Ficava sempre ao lado dele nas fotos da equipa e normalmente a olhar para baixo», recorda Ricardo.

Ricardo Pinto ficou três anos com Cristiano Ronaldo no Sporting. Entretanto, saiu para o Alverca, mas o contacto com o atual jogador da Juventus manteve-se: «Andámos na Escola Básica de Telheiras n.º 2. Ele sempre foi atinado nas aulas, mas aquele não era um ambiente dele, era mais uma formalidade. Penso que eram o Paulo Dias e o Leonel Pontes que iam lá à escola saber informações, mas no caso do Ronaldo nem lhe diziam grande coisa, porque ele já ia lançado, já era o projeto de um jogador de topo.»

«Depois de sair do Sporting, ainda apanhei algumas vezes o Ronaldo como adversário. Lembro-me que fui jogar pelo Alverca ao antigo campo nº2 do Sporting, estava 0-0 ao intervalo, ele entrou para a segunda parte e fez três golos. Ficou 3-0», desabafa, explicando o processo que originou a fim da ligação ao clube leonino: «Percebi que ia faltar espaço no Sporting, que por essa altura estava a constituir SAD, e o mister Carlos Pereira, irmão do Aurélio Pereira, convidou-me para ir para o Alverca, que na altura tinha Luís Filipe Vieira como presidente.»

Ricardo Pinto percorreu os escalões de formação do Alverca até chegar a sénior, em 2004. «Fui o guarda-redes com menos golos sofridos no nacional de juniores, no último ano de júnior já ia treinar ao plantel principal com o José Couceiro e disseram-me que ia subir para ocupar a vaga do Yannick (Quesnel), que ia sair para o Benfica», refere.

De repente, tudo mudou para o jovem guarda-redes. «O Alverca desceu, começou a dar sinais de crise financeira e depois até acabou. Foi uma crise um pouco estranha, porque o Alverca tinha muitos jogadores emprestados, fez alguns bons negócios, mas enfim. Foi aí que tudo começou a mudar para mim», desabafa.

«Fiquei com um empresário que não foi honesto. Eu estava nos cinco/seis melhores guarda-redes da minha geração, mas como não era o Cristiano Ronaldo das balizas, precisava de um bom empresário. Acabei por ir para o Vilafranquense, que estava na II Divisão B. No jogo de apresentação com o Belenenses, lesionei-me e fiquei três meses de fora. Para além disso, estive lá seis meses e nunca pagaram a ninguém. Comecei a desmoralizar».

A meio da temporada 2004/05, o jovem guarda-redes muda-se para o Odivelas, igualmente na II Divisão B. Depois, desce para o Loures, da III Divisão. Depois para o Vialonga, do campeonato regional. O sonho estava condenado.

«Nos campeonatos regionais ganhava alguma coisa, mas só dava praticamente para o gasóleo. Nessa altura já tinha percebido que o futuro não passava pelo futebol e tinha começado a trabalhar. Ainda ganhei novo entusiasmo em 2015, quando joguei no Catujalense, um clube espetacular, uma verdadeira família, com muitos adeptos. Joguei também no Sintra Football e n’Os Bucelenses, mas sempre a trabalhar», enumera.

Por volta dessa altura, em 2018, Ricardo Pinto fixa-se na função que desempenha atualmente: «Passei por um call-center, trabalhei também na Ordem de Advogados, na SIBS, andei a tentar perceber o que poderia fazer na minha vida. Até que comecei nos autocarros, percebi que tinha jeito, sempre gostei de conduzir e apostei nisso.»

O antigo guarda-redes não encontrou apenas um novo emprego. Definiu ainda uma mudança radical na vida. «Eu sou de Lisboa e comecei a trabalhar por lá. Cheguei a levar o Benfica na Barraqueiro, fiz várias viagens a Fátima, excursões, etc. Só que entretanto cansei-me do ambiente esgotante de Lisboa, da confusão, do trânsito, e agora estou a morar em Ponte da Barca, de onde são os pais da minha namorada», revela.

Aos 35 anos, Ricardo Pinto habituou-se a um estilo de vida completamente diferente: «Aqui é mais difícil encontrar trabalho mas há mais qualidade de vida. Estou a trabalhar atualmente na BarcaExpress, uma empresa familiar mas de muita qualidade e só tenho feito transporte internacional porque tudo o resto está parado, já que não há turismo. Tenho feito as ligações entre Ponte da Barca e Paris, Mónaco e Lyon.»

«Vamos sempre dois motoristas e mesmo assim é complicado gerir. Não percebo como há pessoas que fazem essa viagem seguida, de carro, só um a conduzir, é um perigo. Já vi muitos acidentes pelo caminho, infelizmente. De resto, é uma viagem de emoções, o transporte da saudade entre Portugal e França», salienta.

O antigo guarda-redes chegou na segunda-feira de mais uma viagem entre Paris e Ponte da Barca: «Foi complicado passar nos Pirinéus, apanhei neve, chuva, vento, mas gosto do que faço. Gosto de pegar no autocarro, levar e trazer as pessoas em segurança. Não faço aquilo que sonhei, porque sonhava ser jogador profissional de futebol, não atingi esse objetivo mas pelo menos faço algo que me dá prazer.»

«O meu grande desejo para o futuro, e pode ser já em 2021, é transportar a equipa do FC Porto. Faria isso de borla, as vezes que fossem precisas. Ao crescer, eu era o único portista em Lisboa, influenciado pelo meu pai que nasceu no Porto. Na altura, eu dizer que era do FC Porto era como dizer que tinha alguma doença, olhavam-me com estranheza, mas ao crescer apanhei uma fase em que o FC Porto ganhou tudo e eu é que ficava a rir», remata Ricardo Pinto.