Depois do Adeus é uma rubrica lançada no Maisfutebol em junho de 2013 e dedicada à vida de ex-jogadores após o final das suas carreiras. O que acontece quando penduram as chuteiras? Como subsistem aqueles que não continuam ligados ao futebol? Acompanhe os testemunhos no Maisfutebol e na Maisfutebol Total. Críticas e sugestões para valvarenga@mediacapital.pt.

Gaspar tem atualmente 40 anos e um currículo de enorme respeito no futebol. Pode ser considerado uma figura histórica da Liga, já que fez 322 jogos na competição entre 1995 e 2012.

O antigo defesa-central terminou a carreira profissional em 2014, ao serviço do Varzim. Rumou ao sul de Espanha, onde esteve durante alguns meses, mas regressou entretanto ao norte de Portugal e alargou horizontes.

Recusando-se a ficar em casa, enquanto aguardava por uma oportunidade como treinador, Gaspar reinventou-se como técnico de CNC numa empresa de metalomecânica de precisão.

O quê?

De forma sucinta, o ex-jogador produz peças para diversas indústrias com o auxílio de um moderno centro de maquinação. Hélder Silva, patrão da Bonotec e pessoa próxima do antigo central, explica a situação.

«Falei-lhe em vir uma semana, à experiência, mas o Gaspar surpreendeu-me pela positiva e não estou nada arrependido. É uma pessoa com bastante rigor e responsabilidade e muitas vezes estes ex-jogadores também precisam de oportunidades»

Ao longo da carreira Gaspar representou 13 clubes. Aqui vão eles, por ordem cronológica: Trofense, Tirsense, V. Setúbal, FC Porto, Leça, Alverca, P. Ferreira, Gil Vicente, Ajaccio (França), Belenenses, Rio Ave, Sp. Covilhã e Varzim.

Atualmente, a semana é passada na fábrica que se situa nos arredores da Trofa, onde habita. Os turnos podem começar às 6 da manhã, o salário não se compara aos rendimentos como jogador mas nem isso faz o quarentão perder o sorriso fácil.

«Foi algo que surgiu por acaso, como em tudo na vida, mas foi amor à primeira vista. É a minha cara, adoro aquilo que faço e costumo dizer que só tenho enormes saudades do futebol quando chega o final do mês.»

Gaspar não ganha o que ganhava, longe disso, mas beneficia de outras coisas que lhe foram sendo negadas ao longo da carreira de jogador.

«Entre estágios, pré-época, jogos no estrangeiro, são meses sem estar com a família, sem estar com os amigos. Ganhei muito com o futebol mas também perdi muito. Quem andou no futebol chorou ao ouvir o que disse o Quinito recentemente, porque sentimo-nos ali.»

O curso de informática foi extremamente útil na nova carreira do antigo central, embora seja ainda um aprendiz no seu setor. Entrou na Bonotec em outubro de 2015.

«Vou procurando aprender e fazer o possível. Mas se as peças forem muito complicadas, aí já entra o João, o responsável pelas bolas paradas. O Gaspar só bate pontapés de baliza.»

Nos tempos livres, Gaspar vai participando em jogos de veteranos do FC Porto e do Trofense.

Naquele contexto industrial, Gaspar nem parece um antigo jogador de FC Porto, de Belenenses, de Rio Ave. Um homem que fez 322 jogos na Liga. Não deveria estar a gozar uma reforma dourada, com os rendimentos acumulados?

«Quando se pensa em jogadores profissionais, pensa-se em Cristiano Ronaldo, em Messi. E os outros? Conseguem viver depois apenas dos rendimentos? Nós ex-jogadores costumámos dizer que o nosso baú também tem fundo.»

Frontal e determinado, aponta com rigor os valores que são pagos, em média, nos campeonatos profissionais em Portugal. Ou seja, Liga e II Liga.

«A média dos jogadores profissionais andará nos 2 mil, 2.500 euros, até 3 mil euros, fora da realidade dos grandes. Durante dez ou quinze anos. Como é? Acabando uma carreira aos 35, dá para viver mais 30 anos à custa desses rendimentos? Impossível.»

Gaspar lembra ainda que, como nas restantes áreas da sociedade, um rendimento superior no futebol origina despesas invariavelmente superiores.

«É natural. Se ganhas 100, gastas 70 ou 80. Mas se ganhas 200, vais gastar 120 ou 130. Felizmente nunca tive esse problema, tenho as coisas bem resolvidas e sem problema nenhum em as assumir.»

Natural de Santo Tirso, Gaspar Azevedo fez a estreia no campeonato principal pelo Tirsense, na época 1995/96. Internacional pelas camadas jovens da seleção, o central foi contratado pelo FC Porto e integrou o plantel em 1997/98.

De dragão ao peito o defesa fez apenas 13 jogos mas esteve em três competições. Defrontou por exemplo o Real Madrid na Liga dos Campeões e recorda com particular saudade dois golos frente ao FC Maia (4-5) na Taça de Portugal. O FC Porto conquistou o tetracampeonato e a dobradinha.

«A única pré-época que me deixaram fazer no FC Porto foi a época que fiz. Ainda fiz alguns jogos e claro que foi espetacular a conquista de troféus, mas tive outros momentos muitos bons. A subida de divisão do Rio Ave, por exemplo. Quando vejo o Rio Ave de hoje, o Rio Ave europeu, penso que tudo começou ali.»

Gaspar considera que teve uma carreira boa, uma história com vários capítulos felizes, e não lamenta os passos em falso. Ao observar o futebol atual, porém, sente alguma tristeza.

«É triste ver o meu futebol português morrer como está a morrer. Olhe, vou abrir uma empresa: uma empresa com jogadores. Se o treinador de um clube não os quiser, também terei treinadores; e presidentes; e sócios. O pacote completo!»

A ironia evidente no discurso de Gaspas não o desvia do essencial: nesta altura, o seu foco é a Bonotec. O curso de treinador vai ficando na gaveta. Até quando?

«Costumo dizer que treinadores há muitos, mas ‘ensinadores’, pessoas que ensinam, há poucas. É assim que me sinto. Tenho o curso e tenho a certeza que irei ser treinador, só não sei quando e se será juntamente com esta profissão, ou apenas uma das coisas.»

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