Depois do Adeus é uma rubrica dedicada à vida de ex-jogadores após o final das carreiras. O que acontece quando penduram as chuteiras? Como sobrevivem os que não ficam ligados ao futebol? Críticas e sugestões para spereira@mediacapital.pt

artigo atualizado: hora original 23:52, 17-05-2018

Gonçalo Costa atende o telefonema com extrema simpatia e vontade de contar a história dele: uma história que pode até servir de lição para os mais jovens.

«Deixei o futebol aos 23 anos. No momento inicial foi uma dor. Custa mesmo muito. Construímos a ideia de ser jogadores desde muito cedo. Por isso custa-me ver rubricas como o Depois do Adeus, que o Maisfutebol faz, ou o Reportv», começa por dizer.

«Os miúdos constroem uma ideia desde muito novos, constroem sonhos e não vivem para mais nada: treinos todos os dias, o círculo de amigos são jogadores, enfim, toda a vida está orientada num sentido. Quando saímos do futebol a dor é imensa. Tudo em nós foi pensado para aquilo.»

Gonçalo Costa diz que só uns meses mais tarde é que percebeu que tinha tomado a decisão certa quando resolveu mudar de vida. Hoje lamenta sobretudo que a formação de jogadores não tenha o cuidado de pensar no ser humano que há por detrás do jovem: no adulto que ele pode ser.

«Joguei no Sporting com William, com o Cedric, com o Renato Santos, com o Nuno Reis, tínhamos uma geração de ouro, mas só quatro ou cinco é que estão num nível alto. É difícil chegar lá. Muito, muito difícil. Só uma ínfima parte é que consegue», conta.

«Hoje sinto falta do desafio, do stress, daquela coisa de semana após semana termos um objetivo e construirmos o espírito de luta. É uma ferida que fica para sempre. Ainda sigo o futebol, e sigo o meu clube, o Sporting, mas muito menos do que fazia. Mantenho algum contacto com os meus colegas, particularmente com o William, mas a minha prioridade já não é ver e viver futebol.»

A prioridade dele é a carreira que começou a construir fora das quatro linhas: nos relvados da vida.

Antes de chegarmos a essa parte, porém, convém recuar um pouco mais para perceber como Gonçalo Costa sentiu que o melhor era deixar os relvados.

Gonçalo Costa, convém dizê-lo, nasceu em 1991, pelo que tem 27 anos.

Chegou à Academia de Alcochete depois de ter sido chamado à seleção de Lisboa e de ter brilhado num torneio Lopes da Silva. Tinha 14 anos.

Saiu duas temporadas depois para o Belenenses, onde completou a formação e chegou a integrar o plantel principal. Até que depois disso a carreira não evoluiu.

«Fiz o primeiro ano de sénior no Mafra, com o treinador Jorge Paixão, ao lado do Joãozinho, que está no Tondela, e com o João Afonso, que foi comigo para o Belenenses. Nessa altura senti que podia chegar a uma II Liga, mas esse convite não chegou e surgiu a possibilidade de ir para o Chipre. Com 19 anos fui experimentar», refere.

«Depois tive uma hipótese de regressar ao Belenenses com o Marco Paulo, mas ele acabou por sair, veio o Van der Gaag e essa hipótese caiu. Acabo por ir para a U. Leiria, enfrento algumas dificuldades com muitos salários em atraso, muitas notícias nos jornais, greves, enfim, um ano complicado. Depois vou para o Torreense, onde encontro um bom grupo mas muitas limitações financeiras, e então sigo para o Loures, com a intenção de ficar em Lisboa e organizar a vida para voltar a estudar.»

Básica e reduzidamente foi assim que Gonçalo Costa chegou à conclusão que tinha de parar e fazer um ponto da situação. Precisava de perceber como podia ter estabilidade.

«Não dava para fazer vida, eram ordenados muito baixos: valores a rondar o ordenado mínimo. Dizer que se é profissional de futebol e ganhar 400, 500 ou 600 euros não faz sentido. Não podemos treinar de manhã e ganhar isso. Ninguém consegue estruturar a vida com 500 euros», refere.

«Chegámos aos 23 ou 24 anos, queremos avançar para o nosso carro, para a nossa casa, construir família e percebemos que o futebol não nos dá estabilidade para isso. São os ordenados muito baixos, contratos a dez meses, no final da época nunca sabemos para que onde vamos, enfim, tudo isso faz-nos pensar e obriga-nos a abdicar desse sonho que alimentámos desde os 4 ou 5 anos.»

Foi nessa altura que surgiu a Zara na vida de Gonçalo.

«Nós queremos sempre arrastar a carreira mais um ano e mais outro, mas depois nunca surge aquele salto que nos faz sonhar. Acaba por ser pela paixão que nos mantemos. Tinha feito uma formação boa e tinha ambições, mas percebi que era um risco muito grande continuar no futebol.»

Ora por isso, quando um amigo que trabalhava na Zara lhe disse que podia ganhar o mesmo que ganhava no Loures, mas em part-time, Gonçalo sentiu que era altura de dar um passo ao lado. Até porque ficava com tempo para voltar a estudar, como queria fazer.

«Gostava de moda, fui a uma entrevista e a diretora da Zara que me entrevistou disse que tinha grandes ambições para mim. Por acaso nunca me esqueci, ela disse-me mesmo que tinha o objetivo de me fazer desistir do futebol. A verdade é que três meses depois de começar a trabalhar fui promovido e seis meses depois cheguei a um cargo de chefia. Nessa altura consegui um contrato mais sério, com um bom ordenado e responsabilidades. Decidi deixar o futebol.»

Começou como lojista no Vasco da Gama, na secção de roupa feminina, na qual gostou de trabalhar pelo desafio. Ao fim de seis meses, e depois de uma entrevista com o diretor da marca em Portugal, foi proposto para gestor de produto no Cascais Shopping.

Hoje até já deixou a roupa, para se dedicar à aviação.

«Entretanto surgiu a possibilidade de ir para a TAP. Fiz o meu curso em setembro, entrei na empresa em dezembro e estou lá desde essa altura», conta.

«Sou comissário de bordo. Faço voos de médio curso, para toda a Europa e para África. Outro dia até me aconteceu uma situação curiosa. Eu trabalhei dois anos com Rui Jorge, nos juniores do Belenenses, e calhou-me levar a seleção sub-21 para Zurique. Estive meia hora a falar com ele e a trocar umas impressões com a melhor equipa técnica que tive.»

O futebol, hoje em dia, é isso para Gonçalo Costa: passado. E como passado que é, está depositado no canto do cérebro onde se guardam as memórias.

Por falar em memórias, o rapaz de 27 anos tem muitas. Não esquece, por exemplo, o dia em que o Sporting foi jogar a Sintra.

«Fomos defrontar o Mira Sintra, onde jogava o William Carvalho. Ele fez um jogão, marcou dois golos. No dia seguinte, quando nos estávamos a preparar para treinar, apareceu o William também para treinar. Foi curioso e mostra como o Sporting era forte a segurar os melhores», recorda.

«Houve outro momento, numa época de juniores do Belenenses, em que estávamos a disputar o primeiro lugar com Sporting e Benfica. No balneário, antes de entrarmos para um jogo, a equipa técnica mostrou-nos um vídeo com os nossos melhores momentos. Lembro-me de ver na cara dos colegas uma união e uma força incríveis. O Rui Jorge é impressionante em termos de liderança.»

Gonçalo Costa sorri: o futebol traz-lhe gratas memórias.

A vida, essa, é que não pára.

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