Depois do Adeus é uma rubrica do Maisfutebol dedicada à vida de ex-jogadores após o final das carreiras. O que acontece quando penduram as chuteiras? Como sobrevivem aqueles que não continuam ligados ao futebol? Críticas e sugestões para spereira@mediacapital.pt

No mundo do futebol era o Zé Maria, mas o nome está incompleto: falta a alcunha familiar, herdada do pai, que apesar de analfabeto tinha uma paixão por acompanhar bandas filarmónicas.

Zé Maria da Música. Assim é que está bem.

Afinal é este o nome pelo qual os amigos o conhecem. Mas Zé Maria da Música não é só conhecido pela alcunha: é uma figura acarinhada e estimada na Póvoa de Varzim, pela honestidade do homem e pela paixão do jogador. Paixão pelo futebol, e pelo clube.

Para além disso, tem uma vida no mar. Foi nos barcos de pesca que se fez homem e foi a eles que regressou quando a carreira de jogador de futebol chegou ao fim.

Uma história deliciosa.

«Comecei a ser pescador aos oito anos. Estava na escola e pescava. Andei no mar até ser profissional de futebol, aos 21 anos, quando assinei pelo Famalicão. Depois acabei a carreira, em 1992/93, e por força das circunstâncias voltei à vida da pesca», conta.

«Na qual ainda hoje estou. Nesta maravilhosa profissão.»

Nascido num berço humilde, Zé Maria teve de se fazer à vida. Não teve tempo para ser criança, nem sequer para estudar: só completou a quarta classe aos 14 anos e no ensino noturno. A maior parte do dia era dedicado à pesca, o que deixava pouco tempo livre.

«A minha família é toda oriunda da pesca. Eu sou pescador, o meu irmão que agora trabalha nos têxtis em Moreira de Cónegos também era pescador, o meu irmão mais velho era pescador e infelizmente morreu num naufrágio em Labruge em 1980», refere.

«O meu pai era pescador e depois ficou como funcionário municipal. Aqueles eram tempo difíceis, era preciso ajudar os pais e eu entrei muito cedo para o mar. Mas gostava do desporto, a vida sorriu-me e atingi altos patamares. Fiquei muito agradecido ao futebol, permitiu-me conhecer muita gente, fazer muitos amigos e viver tempos felizes.»

Por partes, porém.

Zé Maria começou a ser pescador ainda criança: pescava sardinha nos barcos gasoleiros. Quando tinha 16 anos, participou num torneio de captações do Varzim: agradou e ficou.

«Só que eu tinha de ir para o mar, faltei a dois ou três treinos e disseram-me que não contavam mais comigo. Fiquei desmotivado e fiquei só na pesca.»

Entretanto, aos 18 anos, começou a jogar futebol de salão, apenas por paixão, no Desportivo da Póvoa. Foi visto pela União Desportiva Fajozes e convidado a juntar-se ao pequeno clube de Vila do Conde. Assim o fez: pescava durante a madrugada, dormia à tarde e treinava ao fim do dia.

Deu nas vistas ao ponto de chamar a atenção do Famalicão, então na II Divisão. Chegou ao clube como ponta de lança e saiu de lá como médio defensivo.

«Eu era ponta de lança, sempre fui ponta de lança. Mas num jogo do Famalicão no terreno do Riopele ficámos sem dois jogadores de combate, que se lesionaram, logo aos vinte minutos: um central e um médio. O treinador era o Fernando Tomé, chamou-me ao banco e disse que só tinha um recurso: tinha de me meter a central. Acabámos por ganhar. A partir daí joguei como trinco, embora às vezes pudesse ser central ou lateral-direito. Mas era trinco. O número seis era meu.»

Logo no final dessa época transferiu-se para o Varzim: o clube da terra, o clube de Zé Maria. Na Póvoa faz cinco épocas, antes de sair para o Tirsense, para fazer três anos, antes e voltar ao Varzim para mais dois anos que  serviram para colocar um ponto final.

«No Famalicão faltavam dois meses para acabar a época e recebi convites do Varzim e do Nacional. Comprometi-me com o Varzim. Veio o Domingos Lopes de Castro para presidente, um poveiro, e queria que eu ficasse no Famalicão. Mas eu sou um homem honesto, tinha dado a minha palavra ao Varzim e fui. O Domingos Lopes de Castro ficou zangado e nunca mais me pagou. Por isso fui mais cedo: passei os últimos dois meses a treinar na Póvoa, sem poder jogar.»

Ficou cinco anos no Varzim até que teve de sair: diz que não podia ficar mais no clube.

«O Domingos Lopes de Castro foi para presidente do Varzim. Eu disse que com ele não ficava, já me tinha tratado mal uma vez e por isso não ficava. Tinha convites do Penafiel, do Marítimo e do Tirsense, acabei por ir para o Tirsense porque era perto de casa. Mais tarde as pessoas deram o braço a torcer, reconheceram que tinha agido mal e eu regressei ao Varzim para acabar a carreira.»

Entretanto tornou-se um trinco de referência no campeonato português. A imprensa apelidava-o de durinho, dizia que ao pé dele até Washington, pai de Bruno Alves, era um menino. Era daqueles jogadores que levava tudo à frente, o que Zé Maria até aceita: só não lhe digam que era desleal.

«Eu durinho era, não digo que não. Quando batia a porta de casa, esquecia a família, esquecia os amigos, só pensava que tinha de dar tudo dentro de campo. Fosse nos jogos ou nos treinos. Era agressivo, mas posso orgulhar-me de nunca ter lesionado um colega de profissão. Já a mim partiram-me a perna duas vezes», sublinha.

«A primeira vez num jogo com o Benfica, a 5 de janeiro de 1985. A segunda vez, ao serviço do Tirsense, num jogo com o Salgueiros: o Carvalho partiu-me o perónio. Mas depois disso mandou-me um faxe a lamentar o que tinha acontecido. Já o Veloso partiu-me a perna e um clube da dimensão do Sport Lisboa e Benfica nunca me disse uma palavra. Mais tarde, num jogo com o Marítimo, rasgaram-me a língua. Deram-me uma cotovelada e rasguei a língua, levei 40 pontos, veja lá como a língua ficou. E aguentei até ao fim do jogo. As pessoas diziam que era caceteiro, mas era a minha maneira de jogar: quando ia à bola dava tudo.»

As lesões são aliás a maior mágoa que tem. Até porque o impediram de ter um futuro mais brilhante: se não fosse a primeira lesão, provavelmente tinha chegado a um grande.

«Na altura em que parti a perna com o Benfica, estava apalavrado para ir para o Sporting. O presidente era o João Rocha e depois acabaram por ir buscar o Oceano ao Nacional. Comigo o Sporting não falou, mas uma pessoa da direção falou comigo a dizer que estavam a negociar e para me preparar para ir para Lisboa. Era um clube que gostava de ter representado, porque sou sócio do Sporting, toda a minha família era sportinguista, sempre foi o meu clube desde miúdo: uma paixão que me foi passada pelo meu pai. Mas o sonho não se concretizou», lamenta.

«Mais tarde também tive as coisas tratadas para ir para o Boavista, era o Valentim Loureiro o presidente. Mas voltei a partir a perna e as coisas foram por água abaixo.»

Apesar de não ter chegado a um grande, Zé Maria da Música orgulha-se da carreira que construiu. Tem motivos para isso, aliás. Fez praticamente 150 jogos na primeira divisão, foi titular em todos os clubes pelos quais passou, deixou uma marca no campeonato português dos anos 80.

Para um rapaz de origens pobres, que teve grandes dificuldades em completar a quarta classe e que teve de começar a trabalhar aos oito anos, provavelmente fez muito mais do que teria imaginado.

«Vou dizer-lhe, no primeiro ano no Famalicão ganhava 25 contos, que era muito dinheiro, no segundo ano 35 contos. No Varzim ganhei 70 contos, depois 90 e depois 120 contos. Nos últimos dois anos ganhei 300 contos. No Tirsense fui ganhar mais 50 contos», conta.

«Portanto ainda ganhei algum dinheiro, mas quando acabou a carreira não quis abrir um negócio, porque não percebia disso. Só tenho a quarta classe, não percebo nada de negócios. Voltei para o mar. O dinheiro que ganhara permitiu comprar um apartamento e um carro. Não deu para ir mais além e estou feliz da vida, com a minha família.»

O regresso ao mar aconteceu há mais de vinte anos: em 1994.

Zé Maria da Música tinha 33 anos, quando os dirigentes do Varzim foram falar com ele: era um homem importante para o clube e por isso devia preservar a imagem. Convidaram-no a pendurar as chuteiras e a tornar-se adjunto da equipa principal.

Ficou como auxiliar de Ruben Cunha, primeiro, Nicolau Vaqueiro, depois, e Horácio Gonçalves, por fim, num ano anormalmente agitado no clube da Póvoa.

«No ano a seguir disseram-me que me iam arranjar um emprego na câmara municipal e que ia ficar como treinador dos juniores. Gostava da ideia. Mas a promessa nunca foi cumprida. Tive de deixar o futebol e aí só tinha uma solução: voltar ao mar», frisa.

Foi o que fez.

Afinal de contas, o mar era também a casa dele. Desde os oito anos que se habituara a andar na água, entre a turbulência das ondas, a pescar tudo o que viesse à rede.

A vida perdeu o conforto que o futebol lhe permitia ter, mas Zé Maria da Música nunca teve medo de trabalhar. Olhou em frente e fez-se ao mar: para dobrar as adversidades.

«Primeiro fui para os Açores. Andava três dias no mar e depois vínhamos descarregar e ficava três dias em casa. Depois fui para a pesca do bacalhau negro no Polo Sul, primeiro no Uruguai, depois na Argentina, depois no Chile. Nessa altura andávamos seis meses no mar, vínhamos descarregar e ficava um mês em casa. Como era muito tempo fora de casa, regressei para a Europa», conta.

«Andei a trabalhar depois em Espanha, na Inglaterra e na Escócia, a apanhar pescada. Andávamos mês e meio ou dois meses no mar e ficava uma semana em casa. Agora estou em casa, estou a trabalhar em Matosinhos na pesca da sardinha. Em janeiro deixei a pesca em alto mar e vim para casa. Mas já meti os papeis para a reforma e estou à espera. Entretanto vou continuar na sardinha.»

Curiosamente regressou ao exato ponto onde tinha começado: à pesca da sardinha. Passaram 53 anos desde então, durante os quais o menino se tornou homem. Um homem de trabalho. Ganhou o respeito do futebol e do mar, num sinal de tenacidade que lhe permitiu olhar para trás com orgulho.

Foi um prazer, Zé Maria da Música.

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