Depois do Adeus é uma rubrica lançada no Maisfutebol em junho de 2013 e dedicada à vida de ex-jogadores após o final das suas carreiras. O que acontece quando penduram as chuteiras? Como subsistem aqueles que não continuam ligados ao futebol? Críticas e sugestões para valvarenga@mediacapital.pt.

«Sou adepto do FC Porto, ferrenho, estive lá de 1993 a 2004, foi sempre a minha vida. No dia em que saí, o sonho do futebol começou a morrer. Os outros clubes não me diziam nada.»

Vítor Rodrigues nem hesita. Quando tem de escolher um ponto de viragem na carreira, recua até 2004 e a um empréstimo inesperado ao modesto Tourizense, da II Divisão B. Esperava um lugar no plantel do FC Porto e foi encaminhado para a pequena aldeia de Touriz.

O Maisfutebol encontra-o doze anos mais tarde, sem jogar desde 2012 (devido a uma grave lesão no joelho esquerdo) e à procura de um rumo claro para a sua vida. Esteve a morar na Turquia com o amigo Manuel Fernandes, regressou a Portugal e terminou uma formação na área comercial. O que se segue? Ainda não sabe.

O antigo jogador recebe-nos em casa dos pais, nos arredores do Porto, a cerca de três quilómetros do palco que sempre desejou: primeiro o Estádio das Antas, mais tarde o Dragão.

Antigo lateral esquerdo, Vítor Rodrigues começou como iniciado no Pedrouços AC e um ano depois estava a fazer captações no antigo pelado da Constituição.

«Lembro-me como se fosse hoje. Fui treinar com o equipamento do Pedrouços, vermelho e azul, e o histórico Sr. Teixeira veio logo ter comigo: ‘miúdo, aqui não podes usar vermelho’. Deu-me uma camisola que dizia FCP, escrito com caneta de feltro. No final da semana, de 150 miúdos só fiquei eu. Era o que mais queria na vida.»

Vítor Rodrigues entrou no clube do coração em 1993/94. Tinha pouco mais de dez anos. Um treinador perguntou-lhe se podia experimentar a posição de lateral esquerdo. Ele aceitou e pegou de estaca. Em pouco tempo assumiu-se como nome incontornável do FC Porto e da Seleção Nacional.

«Foi uma projeção muito rápida em pouco tempo, se calhar sem sustentação. Fui campeão em todos os escalões do FC Porto e ia à seleção, depois subi à equipa B do FC Porto e treinava várias vezes com a equipa principal. A direção dizia que queria apostar em mim.»

O jovem estava no céu. Tinha o que mais queria, a camisola do FC Porto no corpo, e vivia por dentro a realidade de um clube que transmitia identidade e sede de conquista. Algo que deixou de ver nos dias de hoje.

«Não consigo entender como é que o FC Porto chegou a este ponto e vamos de mal a pior. Tinha um miúdo que jogou comigo, de 15 anos, num torneio da Nike, que trocou de camisola com um jogador do Benfica, porque ele era benfiquista, vestiu a camisola e entrou no balneário. No dia seguinte mandaram-no embora. Pode ser radical, que é, mas havia identidade.»

A conversa muda de direção, prende-se com a atualidade com que convive como adepto, mas leva-o a traçar mais comparações com o seu tempo de jogador.

«Como é possível o Herrera ser capitão do FC Porto? No meu tempo era o Jorge Costa! No balneário havia cacifos de um lado, cacifos do outro, a entrada para a casa de banho e depois o armário do Jorge Costa, onde ele tinha um santinha. Eu equipava-me ao lado do Nuno Espírito Santo, agora treinador do FC Porto, Derlei, Ricardo Fernandes, César Peixoto. Depois havia Costinha, Vítor Baía, Secretário... Lembro-me que certo dia, estava o Carlos Alberto estava a jogar à bola no balneário com o Alenitchev, De repente, deu um chuto na direção da parede e a santa do Bicho começou a abanar. Ele estava a ler o jornal, levantou os olhos e ficou tudo calado. Se a santa cai…felizmente não caiu, mas ele mandou um berro e os outros fugiram logo. Era uma questão de respeito.»

Voltemos à história de Vitor Rodrigues. O Torneio de Toulon de 2003 contribuiu para o reforço da confiança num futuro brilhante. Vítor Rodrigues ajuda a Seleção Nacional a vencer a competição pela última vez.

«O primeiro jogo foi contra a Inglaterra e tínhamos o Cristiano Ronaldo, que era o mais novo do torneio. Ninguém o conhecia! Mas mal começou o jogo ele, magricela, pegou na bola e fintou quatro ou cinco! O Mascherano foi considerado o melhor jogador do torneio, o segundo foi Raul Meireles, mas nós até vencemos a Argentina por 3-0.»

Portugal garante a presença na final e tem pela frente a Itália.

«Aos 60 minutos, estávamos a perder 0-1 e a jogar com menos um por expulsão do Hugo Almeida. Pensei: já fomos! De repente, entra o João Paiva que ainda não tinha jogado no torneio e marca! Pouco depois, o Ronaldo recebe a bola, eu vou à linha e ele por milagre faz o passe. Cruzei para o Danny marcar de cabeça. E o João Paiva ainda foi a tempo de fazer o 3-1. Foi inesquecível.»

Vítor Rodrigues regressa ao FC Porto com moral em alta. Para além da euforia pela conquista ao serviço da Seleção Nacional, José Mourinho possibilita a sua estreia num jogo amigável frente ao Groningen (1-0). O lateral fica na equipa B mas sonha com o passo seguinte.

«Foi o ano em que conquistaram a Liga dos Campeões. Lembro-me de várias vezes em que o Nuno Valente estava condicionado, não treinava a semana toda e eu começava a acreditar. Mas depois ele jogava e jogava sempre bem. Para além disso ainda havia o Ricardo Costa como recurso. Na equipa B estava eu e Evaldo.»

O jovem lateral português espera. Tem apenas 20 anos e o sonho a curta distância. Nunca se iria concretizar, ainda assim. No final da temporada 2003/04, José Mourinho sai do FC Porto para o Chelsea, chega Victor Fernández.

«Estava de férias e chamaram-me, até pensei que fosse boa notícia, que fosse a hora, mas nada. Quiseram emprestar-me ao Tourizense…tudo morreu um pouco para mim. O meu sonho era jogar ali e ter um contrato vitalício com o FC Porto»

Vítor Rodrigues sai pela primeira vez de casa e segue para a pequena aldeia de Touriz, disputando a Zona Centro da II Divisão B. Ainda assim, participa na qualificação da Seleção Sub-21 para o Campeonato da Europa de 2006, a realizar em Portugal.

«Vivia num apartamento com seis quartos, comíamos todos juntos, tudo era diferente. Foi muito difícil para mim. Lembro-me de fazerem uma notícia porque pela primeira vez um jogador do Tourizense foi à Seleção.»

A relação com o FC Porto deteriorou-se com a cedência ao Tourizense. Em final de contrato, Vítor Rodrigues diz adeus ao seu clube de sempre e procura a felicidade com outras cores. Assina um pré-contrato com o V. Setúbal mas o União da Madeira apresentou uma proposta irrecusável.

«Eu não queria ir, pedi um valor absurdo mas eles aceitaram e fui mesmo. Tinha 21 anos, muito dinheiro, cometi alguns erros. Eram quase 4 mil euros do União, mais 500 euros por presença na Seleção e 2.500 por vitória. No apuramento para o Euro sub-21 conseguimos 10 vitórias em 10 jogos! Não era de grandes maluquices, mas deitava-me tarde, muitas mulheres, perdi-me um pouco. Entretanto, o Mérida de Espanha demonstrou interesse. Convenceram-me a tentar rescindir com o União, mas o presidente não achou piada nenhuma.»

Chega o dia que pinta a negro o quadro da sua carreira.

«Foi num jogo amigável com o Camacha, sozinho. Fiz uma rotação e o joelho esquerdo cedeu. O presidente do União, como eu estava a forçar a saída, não se responsabilizou. Ainda fui para o Mérida, mas não tinha condições de jogar. Paguei a operação do meu bolso, não fiz recuperação e acabei no Sp. Espinho, por convite do Vítor Pereira.»

Vítor Rodrigues falhou o Euro sub-21 em Portugal e a transferência para o Mérida. Jogou em Espinho sem recuperar por completo da lesão e rumou ao futebol cipriota.

«Sempre tive um teto salarial acima da média, de dois mil euros para cima, e em Chipre podiam pagar-me isso. Fui em 2007, voltei em 2009, mas já desiludido com o futebol, tive problemas em receber, muito dinheiro por baixo da mesa, foi um período mau.»

Já com 26 anos, o lateral esquerdo faz uma época no Pedras Rubras e muda-se para a Alemanha com a ajuda do amigo Hugo Almeida. Após uma bela época no TSV Ottersberg, do quarto escalão, assina pelo FC Oberneuland, da divisão superior.

«Gostavam muito de mim na Alemanha, era o futebol ideal para mim. Senti que podia relançar a carreira. Porém, depois de alguns jogos no Oberneuland, voltei a ter problemas graves no joelho esquerdo. Não tinha plano de saúde, porque não tinha contrato profissional, o clube não ajudava e fiquei num beco sem saída. Andei nessa luta mais de um ano, a tentar recuperar e perceber o que tinha.»

A ajuda de antigos companheiros de seleção voltou a fazer-se sentir. Sobretudo de Manuel Fernandes, à época jogador do Besiktas.

«É um grande amigo e nem lhe consigo agradecer por toda a ajuda que me deu. Amigos como Manuel Fernandes, Hugo Almeida e Ricardo Quaresma foram muito importantes. Disse ao Manuel que ia terminar a carreira mas convenceu-me a ir para Istambul e ser visto por médicos que ele conhecia. Foi aí que me disseram: não havia nada a fazer porque simplesmente já não tinha cartilagem no joelho esquerdo.»

A carreira de Vítor Rodrigues terminaria assim no FC Oberneuland, em 2012. Aos 29 anos.

«Acabar a carreira normalmente, aos 33 ou 34 anos já é difícil. Muito pior é ter algo que te impede, ainda com 29 anos. Fiquei sem chão, não sabia bem o que fazer. Fiquei cerca de ano e meio a viver com o Manuel Fernandes na Turquia, mas a certa altura percebi que não podia depender dele, que não era justo.»

Já como ex-jogador de futebol, Vítor Rodrigues regressou a Portugal há um par de anos e teve de se adaptar a uma nova realidade. Um processo complexo para quem se habituara a viver com muito.

«Fazes sempre vida mediante o que ganhas. Se ganhas 1000, gastas 600 ou 700. Se ganhas 2000, gastas 1400 ou 1500. De repente, deixas de receber, já não podes ir ao restaurante a que te habituaste, gastar 50 ou 100 euros. Não tinha vícios mas sempre gostei de vestir bem, de comer bem, de fazer férias em sítios bons (só vais para o Algarve como última solução…)»

Vítor Rodrigues tem atualmente 33 anos e uma página em branco à sua frente. Não está propriamente desesperado porque resta algum dinheiro que foi acumulando ao longo da carreira. Vive com os pais e o irmão, não tem filhos, chegou a casar mas separou-se rapidamente.

«Desde que regressei colaborei com alguns empresários, na abordagem a jogadores a que tenho acesso, mas preciso de ter algo concreto e seguro para o futuro. Foi por isso que fiz as formações na área comercial, para me preparar e alargar horizontes.»

Será que Vítor Rodrigues está preparado? Será que consegue afastar a imagem de jogador ou ex-jogador de futebol, sem capacidade para fazer outra coisa qualquer?

«Se estou preparado, só vou saber quando começar. Mas tenho de estar. Claro que ir ganhar 500 ou 600 euros pode parecer pouco para quem jogou futebol, mas que vou fazer? Não vou roubar, pedir dinheiro emprestado também não. A minha vida agora é esta. Quero trabalhar, encontrar um chão e um rumo, sobretudo isso. Se fosse no futebol, perfeito, mas já não dá muito para escolher. Quero definir a minha vida.»

OUTROS TESTEMUNHOS NA RUBRICA DEPOIS DO ADEUS:

O outro mundo de Ricardo: a venda de casas no Algarve

Sem a família: as noites geladas num mercado do Luxemburgo

Gaspar: um histórico da Liga na metalomecânica de precisão

José Soares, do Benfica para a moda

Morato, com ele não há inseguranças 

João Paulo Brito, o mediador imobiliário

Diogo Luís, primeira aposta de Mourinho foi parar ao Banco 

Edgar Caseiro, o promotor de eventos 

Heitor, o Perfeito de Laranjal Paulista 

George Jardel: o vendedor que ouviu o aviso do coração

Campeão no Benfica é mestre do padel em Salamanca

O funcionário do pão quente com 42 internacionalizações

Ivo Damas: a segunda vida como comercial de automóveis

Um funcionário público pentacampeão pelo FC Porto

Mawete: hotelaria, agropecuária e piscicultura em Angola

Ivo: do choque com Mantorras à distribuição de encomendas

Hélder Calvino: segurança, barman e animador noturno

Cavaco: dos golos com Pauleta à segurança num centro comercial

Mauro mudou de rota: FC Porto, Chelsea e a TAP aos 24 anos

Vasco Firmino: o médico que marcava golos pelo Benfica

O jovem engenheiro que foi da Liga à reforma em dois anos

Aos 20 anos saiu do Benfica e trocou o futebol pela Fisioterapia

Idalécio: a nova carreira num famoso restaurante de Londres

Ex-goleador português remove amianto nos Alpes suíços

João Alves tem novo clube: uma comunidade de compras

Da baliza do Benfica ao trabalho em centrais nucleares

Nélson: um faz-tudo na gestão de espaços desportivos

Da dobradinha no Sporting a cultura, surf e skate em Sagres

«Gastei 200 mil euros em carros, agora nem 200 euros tenho»