Plenários de jogadores, plenários de treinadores, ameaças de greve, ocupações. Funcionários da Federação barricados, jogadores a fazerem política. Os clubes em crise, gritava-se que o Benfica podia acabar. Jogadores, muitos, de saída. O país na rua e a votos naquelas primeiras eleições livres. O processo revolucionário estava em curso, quente quente, quando o Benfica venceu aquele que é até agora o seu único título matematicamente ganho em Alvalade. Pode voltar a acontecer neste domingo. Naquele 4 de maio de 1975 foi bonita a festa. O jogo nem tanto. Foram aliás duas festas, porque antes do pontapé de saída o Sporting recebeu a Taça de campeão… da época anterior.

Esta é uma viagem por esses dias alucinantes através das páginas dos jornais da época. Os dias do PREC (o Processo Revolucionário em Curso), da agitação do Verão Quente que durou de março a novembro, quando os ventos revolucionários varriam o país. E os jornais, também os desportivos, onde as notícias da bola dividiam espaços com manifestos políticos, às voltas com o papel do desporto, para muitos alienante e instrumentalizado pelo antigo regime, no «Portugal novo». E com coisas daquele tempo. Como a Assembleia Geral da CUF que decidiu que os jogadores passavam a ser funcionários da empresa e a receber um subsídio para jogar futebol. Ou o cinema em Sintra que foi ocupado pela secção de judo do Sintrense. Ou a luta do «povo de Alhandra», que ocupou terrenos para instalar o clube de futebol da terra.

«O Benfica pode acabar»

Havia crise na Luz e o alarme foi dado no início de abril numa Assembleia Geral, quando um sócio e dirigente deixou uma frase bombástica a toda a largura de página n’A Bola: «O Benfica pode acabar dentro de dois ou três meses.» Ao Record, Hélder Viegas explicava que o clube tinha «40 mil contos em dívidas». Em plenário, os funcionários do Benfica debatiam a sua vida e também admitiam ajudar o clube, associando-se a uma iniciativa a que chamavam «Núcleo dos mil», segundo a qual cada sócio que doasse mil escudos teria o seu nome inscrito no estádio. Uma espécie de antecessor da Operação Coração dos anos 90.

As coisas não estavam fáceis para os clubes. João Rocha, presidente do Sporting, punha o assunto nestes termos por esses dias, numa entrevista ao Record: «Sobrevivência impossível se não for encontrada solução fora das fontes de receita tradicionais.» Uma delas seria a distribuição de verbas do Totobola, que começava então a discutir-se.

Octávio no... At. Madrid, Pedroto a dizer não ao FC Porto

No meio disto falava-se de muitas saídas de jogadores, entre a necessidade de tesouraria dos clubes e o mundo novo que se abria para os futebolistas, apesar de a luta pelo fim da lei do direito de opção, que condenava os jogadores à vontade dos clubes, ainda não estar totalmente ganha.

No Benfica estavam iminentes as despedidas dos veteranos Simões e Eusébio, a caminho das Américas, mas também já se antecipava a transferência de Humberto Coelho, um pilar da equipa, que seguiria para o PSG no final da época. No Bonfim, Jacinto João deixava Setúbal rumo ao Brasil e Octávio Machado, o então guedelhudo médio que era também emblema do Vitória, chegava a acordo com o… Atlético Madrid. Até veio vê-lo o treinador Luis Aragonés e disse que dava um bom suplente, o que não caiu lá muito bem. No fim das contas, Octávio saiu, sim, mas rumo ao FC Porto.

Nas Antas também havia muita coisa a acontecer. A tentativa de voltar a contratar Pedroto, amnistiado em Assembleia Geral, falhara. Pedroto, que acumulava como treinador do Boavista e da seleção nacional, decidiu continuar no Bessa a liderar o Boavistão que no final da época ganhou a Taça de Portugal ao Benfica. O «Zé do Boné» só voltaria às Antas um ano mais tarde. Então, o FC Porto virou-se para um treinador estrangeiro e escolheu o jugoslavo Branko Stankovic.

Contra treinadores estrangeiros, «nem que vá lavar pratos»

«Atitude reacionária», gritaram os treinadores portugueses, que estavam nessa altura empenhados precisamente numa batalha contra os estrangeiros e os seus salários mais altos que levavam dinheiro para fora do país. Num plenário de treinadores, o futuro veterano Manuel Oliveira não fazia a coisa por menos: «Nem que vá lavar pratos, mas estrangeiros, não!»

Este era o tempo em que na mesma página do jornal A Bola se fazia o lançamento do FC Porto-União de Santiago do Cacém da Taça com o título «Alentejo trabalhador versus futebol profissional», e se reproduzia o programa do PCP para o desporto - o jornal dava em cada edição voz a um partido a caminho das eleições de 25 de abril para a Assembleia Constituinte. «O que fez falta foi acordar a malta», era o título da crónica desse jogo de Taça, que o FC Porto venceu por 6-0.

Em meados de abril, a jornada 28 esteve para não acontecer. Os funcionários da Federação fecharam portas e barricaram-se lá dentro, a reagir à intenção da maioria dos clubes de proibir os cartões de acesso livre aos estádios a jogadores, treinadores e jornalistas, bem como de deixar de pagar a percentagem das receitas dos jogos que cabiam à Federação e às Associações. A coisa prolongou-se madrugada dentro e lá se resolveu. «FPF já trabalha e haverá futebol!», exclamava o Record.

Houve futebol, o Benfica venceu o Atlético por 3-0 e ficou a precisar apenas de um ponto para ser campeão, quando faltavam duas jornadas para o fim. A seguir o campeonato parou várias semanas, para jogar a seleção.

Artur Jorge: jogador, sindicalista e político

Pelo meio o país foi a votos. Com jogadores de futebol nos boletins. Artur Jorge, presidente do Sindicato e jogador do Benfica, era candidato pelo partido de esquerda MDP/CDE e comentava como a sua atividade política nem sempre foi bem vista nas bancadas da Luz. «Quando marcava era do Benfica, quando falhava era o presidente do Sindicato», dizia à Bola, ele que esteve boa parte dessa época de fora por lesão e havia de sair no final da temporada para o Belenenses.

«A jogada é votar»

A 25 de abril, as eleições eram manchete também nos desportivos. «A jogada é votar», dizia A Bola, numa primeira página decorada com cravos vermelhos. «Eleições: o povo seleciona», titulava o Mundo Desportivo. «6 milhões de portugueses disseram sim à Revolução», contava o Record no pós-eleições.

A seleção jogou no dia seguinte, um particular com a França em Colombes. Venceu por 2-0. Não acontecia muito por essa altura, foi a primeira vitória de Portugal em oito jogos. Nas bancadas o que mais ordenava era o espírito revolucionário. «Os milhares de portugueses que afluíram ao Estádio de Colombes entoaram em coro (antes do jogo) ‘o povo unido jamais será vencido’, numa extraordinária manifestação de patriotismo e de apoio ao 25 de abril e à revolução social que a libertação do povo português está a permitir», contava A Bola.

Quatro dias mais tarde, a exibição da seleção não inspirou ninguém. Portugal foi cilindrado em Praga pela Checoslováquia, um 5-0 que deitou por terra as ilusões na corrida ao Europeu de 1976.

No dia seguinte o país celebrou o 1º de maio, houve muita gente nas ruas, houve agitação política e houve desporto para assinalar o momento, com eventos nas Antas ou no Estádio da Luz. O Sindicato de jogadores aproveitou o Dia do Trabalhador para mais uma jornada de luta, a tentar arrumar de vez a lei de opção: «Deve acabar o futebol profissional, se não se modificarem radicalmente as relações que ligam os clubes e os jogadores.»

Eusébio e Simões: casa, automóvel e seguro de saúde nas Américas

No meio disto aproximava-se o dérbi. Na Luz, era de transferências que se falava. O Mundo Desportivo dizia que Eusébio ia ganhar 200 contos por mês nas Américas, o Pantera Negra dizia que ainda não estava feito mas não eram os valores de que se falava. Simões, que também ele andava na política e seria aliás eleito deputado pelo CDS um ano mais tarde, já assumia que o Benfica lhe tinha dado a «carta» e era livre para sair. Não escondia a amargura, no fim de uma longa ligação ao Benfica. «O público está saturado de mim e não quero incomodar ninguém», dizia à Bola. Mas o horizonte era animador, contava, a falar das condições que ele e Eusébio teriam nas «Américas»: «Escusado seria dizer que o Eusébio receberia mais do que eu… Mas ambos teremos casa, automóvel e impostos pagos e ainda teremos um seguro de acidentes pessoais no valor de duzentos mil dólares.» O destino de ambos acabou por ser o Boston Minutemen.

O treinador do Benfica, o jugoslavo Miroslav Pavic, também tinha o destino traçado, sairia no final da época. Mas para já não abria o jogo. «Tudo se aclarará entre mim e o Benfica», dizia, enquanto antecipava o dérbi sem grande pressão. «Para o Benfica é mais uma questão de prestígio. Mesmo que a gente perca, bastar-nos-á depois empatar em casa.» O último jogo do Benfica era na Luz, com o União de Tomar.

Do lado do Sporting, em estágio no Estoril a dois dias do jogo, o adjunto Juca também não alimentava muita ilusão, a avaliar pelo que dizia ao Record: «Qualquer que seja o resultado de Alvalade, não podemos deixar de considerar o Benfica, desde já, como campeão nacional. Em todo o caso, vamos fazer o melhor possível.»

Ainda assim, o povo foi ao estádio. «Alvalade vai encher! Sporting e Benfica naquele jogo espetacular de sempre», exultava o Record em vésperas do dérbi.

Assim foi. «O que terá arrastado tantos milhares de pessoas, numa tarde esplendorosa de sol, de calor mesmo, a presenciar o encontro? Ora, a explicação não tem qualquer dificuldade e toda a gente a conhece: a espantosa força do futebol e a extraordinária projeção popular dos dois clubes em presença», elaborava a crónica do Diário Popular.

Dois mil contos de receita numa tarde de «amizade»

Alvalade teve uma bela moldura para o dérbi e também deu uma receita valente ao Sporting. A Bola falava em dois mil contos e 50 mil pagantes, estimando que estivessem 65 mil pessoas no estádio.

A tarde começou com um espetáculo de ginástica e com a cerimónia de entrega de troféus de 1973/74: a Bola de Prata para Yazalde e a Taça de campeão nacional para o Sporting. O jogo começou com seis minutos de atraso, mas não houve problema nenhum, como notava o Diário Popular, a destacar «a amizade entre os dois clubes, personificada na permanente convivência entre os respetivos presidentes». «Não foi uma guerra, foi uma luta boa, uma luta só de vida, foi um jogo à boa paz do Desporto», dizia A Bola na legenda de uma grande imagem com o público em fundo.

Em campo, Fraguito marcou o primeiro do Sporting pouco antes da meia-hora de jogo, a aproveitar um erro da defesa do Benfica. Na segunda parte, Diamantino Costa apareceu a marcar de pé direito o golo de que o Benfica precisava para arrumar a questão do título. 1-1, num jogo que não foi grande coisa, disseram os cronistas.

«Gigantes? Que gigantes?»

«Jogar ‘só’ para o título, a preocupação dos campeões», escrevia A Bola, enquanto O Diário de Notícias falava num «Render de campeões emocionante e renhido». «Novo campeão nacional foi só o que o jogo deu», resumia o Record. «Gigantes? Que gigantes?», titulava o Mundo Desportivo, cujo cronista escreveu aliás que o estádio não estava mesmo cheio, enquanto fazia uma ligação entre o dérbi e o descalabro recente da seleção: «O jogo de Alvalade ‘explicou’ o de Praga.» O jornal República também falava de um «mau jogo», mas fazia um título mais político, a observar a reação aos golos dos membros do Governo presentes em Alvalade: «O ‘governo’ estava com o Sporting, e perdeu…»

«Esta 'coisa' do 25 de abril» que tornou as festas «mais normais»

No fim o Benfica fez a festa, mas sem grandes euforias. «Dantes, aqui há meia dúzia de anos, ganhar o campeonato ali nas barbas do rival era motivo para festa e ‘pagode dos grandes’. Agora, esta ‘coisa’ do 25 de abril tornou estas vitórias acontecimentos mais normais, em que há menos braços no ar, abraços, foguetes e gritos», contava também o República, o jornal que duas semanas mais tarde seria ocupado pela comissão de trabalhadores, um dos episódios mais marcantes da luta política naqueles meses do PREC e que teve como consequência direta o abandono do Governo pelo PS.

De volta à bola, depois do dérbi ouviram-se os protagonistas, no tempo em que os jornalistas iam no fim do jogo às cabinas - aos balneários -, falar com eles. O treinador do Benfica dizia que tinha sido «um campeonato muito difícil de conquistar», a lembrar como a época tinha sido marcada por baixas prolongadas de craques como Jordão, Eusébio, Artur Jorge, Vítor Baptista, Vítor Martins ou Nené.

Eusébio e a crise do Benfica, Riera a antever o que aí vinha

Nas cabinas, Humberto Coelho assumia que estava a falar com o PSG – o negócio ficou confirmado dois dias depois. Eusébio dizia que ainda estava à espera de um telefonema para decidir o futuro, enquanto comentava a situação do Benfica: «Lamento a crise financeira do meu clube, mas tanto eu como os meus colegas compreendemos o assunto. Apesar de tudo estou convencido de que o futebol profissional não acabará em Portugal.»

Artur Jorge, por seu lado, mantinha vestido o fato de político. «O futebol, como espetáculo, tem lugar na sociedade.»

Do lado do Sporting, o goleador Yazalde dava os parabéns ao Benfica, ele que voltou a ser o melhor marcador da Liga e que no fim da época deixou Alvalade para rumar ao Marselha. O treinador Fernando Riera olhava em frente e notava que as coisas no campeonato se tinham complicado: «No fundo, o pior desta tarde foi a vitória do FC Porto.»

A luta continua

De facto, o FC Porto venceu nesse domingo o dérbi com o Boavista e ficou a apenas um ponto do Sporting. Acabou por garantir mesmo o segundo lugar na última jornada, depois de vencer o Sp. Espinho e da derrota do Sporting na visita ao Belenenses.

Essa última jornada esteve para não acontecer. Para o Sindicato dos jogadores, a luta continuava. E fez-se ouvir. «O Sindicato considera que não é livre uma sociedade que consente escravos no seu seio», dizia um comunicado que ameaçava greve à última jornada, em protesto pelo impasse nas negociações na nova regulamentação do trabalho. Conseguiram uma reunião com o ministério, que se comprometeu a publicar a portaria que acabaria em definitivo com o direito de opção.