Estreou-se no Jogos Olímpicos apenas em 2016. De imediato, arrecadou quatro medalhas de ouro e uma de bronze. Em 2020, o cenário foi diferente.

Um erro, na prova de equipa, expôs algo maior. A fragilidade da mente humana que transcende toda a raça, do cidadão comum aos mais medalhado dos atletas. O mundo parou impávido a ver a menina que derrubou um escândalo sexual, a atleta mais brilhante neste momento na ginástica olímpica, a dar um passo atrás em prol de um adversário maior, a saúde mental.

Senti que era melhor retirar-me da prova e trabalhar na minha saúde mental. (…) Não quis sacrificar uma medalha pelos meus problemas. Estas miúdas trabalharam demasiado, por isso decidi que deviam continuar e terminar a competição”, explicou Simone Biles.

 

Comecemos pelo princípio, que para Biles também não foi cor-de-rosa. Nasceu em Colombo, uma cidade no Ohio. A mãe era uma mulher viciada em álcool e drogas. Biles acabou por ser acolhida pelos avós. Cresceu nos subúrbios de Houston, num dos estados mais conservadores dos Estados Unidos, o Texas.

Em 2016, Biles chegou aos Olímpicos do Rio de Janeiro como a potencial revelação dos jogos. Escusado será de dizer que cumpriu. Simone conquistou quatro medalhas de ouro, uma de bronze, com uma performance que comprovou as previsões.

Depois, fez-se ouvir. Biles juntou-se às colegas e ex-colegas que denunciaram o médico da seleção de ginástica dos EUA, Larry Nassar, por crimes de natureza sexual. A campeã olímpica revelou que também tinha sido uma das vítimas, juntamente com Aly Raisman, McKayla Maroney, Gabby Douglas, Jordyn Wieber, Kyla Ross e Madison Kocian.

A maioria de vocês conhece-me como uma rapariga divertida, risonha e energética. Mas, ultimamente, sinto-me despedaçada e quanto mais me tento calar, mais a minha cabeça grita. Deixei de ter medo para vos contar a minha história“, partilhou Biles no Instagram, em 2018.

 

A sentença acabou por incidir apenas sobre os crimes cometidos contra Jordyn Wieber, medalha de ouro olímpica em Londres2012, as colegas na equipa Aly Raisman, Gabby Douglas e McKayla Maroney, e três outras atletas. Muitas destas vítimas eram menores de idade à altura dos crimes.

Alguns de nós que passámos por este momento difícil somos muito boas a compartimentar as coisas. Acho que continuamos a tentar convencer-nos que não aconteceu conosco”, contou, na altura, Simone Biles, na NBC.

 

Aos oito anos de idade, Simone já treinava com treinadores de renome. Aos 14, entrou para o programa de elite da ginástica norte-americana. Desde cedo, Simone foi desde o primeiro dia apontada como um dos mais proeminentes talentos da ginástica dos EUA. Na terça-feira, todos estes fantasmas pesaram. No pior dos momentos. Quando milhares de objetivas se focavam na campeã olímpica a tentar fazer o que melhor sabe.

A menina de 1,42 metros e 47 kg agigantou-se e deu um passo atrás. Por ela, pela medalha, pelas colegas, por tantos que sofrem em silêncio e pela saúde mental.

Devíamos estar aqui a divertirmo-nos e por vezes isso não acontece. (…) Digo saúde mental primeiro. Se não o fizerem, não vão desfrutar do vosso desporto e nunca terão tanto sucesso como poderiam”, referiu Simone Biles.

Apesar de tudo, ainda não é certo que Simone esteja fora destes Jogos Olímpicos. Biles está qualificada para todas as quatro categorias de ginástica individual e Comité Olímpico dos Estados Unidos já anunciou que vai avaliar o estado psicológico da atleta. A decisão deverá ser revelada nos próximos dias. Biles está apurada para as finais de chão e cavalo, que se realizam no domingo.

A psicóloga Cécile Domingues esteve, em direto na TVI24. A especialista acredita que esta “pausa” foi uma “atitude de louvar” e todos nós devemos refletir com a decisão da atleta norte-americana.

Esta pausa é de louvar. Escolher a saúde mental, o bem estar psicológico, em prol de todos os fatores externos é uma atitude muito importante. Todos nós devíamos refletir relativamente à nossa saúde mental. É importante. (...) Existe quase uma obrigação em não falhar. Esta pressão, quando se sobrepõe à alegria e ao gosto pelo que se faz, a determinada altura trava-nos. Ficamos presos ao medo de errar, falhar e de não conseguirmos. Tudo isso vai criando inseguranças. Tanto nestes atletas como em qualquer outra pessoa”, afirmou Cécile Domingues.

 

O presidente da Associação de Atletas Olímpicos de Portugal, Luís Alves Monteiro salientou a elevada pressão a que os atletas estão sujeitos em competições como os Jogos Olímpicos.

A saúde mental intimamente ligada ao desporto de alto rendimento. (…) Com todo o mediatismo e pressão é óbvio que pode acontecer uma situação de burnout”, referiu o presidente da Associação de Atletas Olímpicos de Portugal.

Portugal não é exceção, Luís Alves Monteiro lembrou os casos de atletas como Fernando Mamede, Vanessa Fernandes ou Célio Dias que tiveram contratempos ao longo da carreira. 

O convidado realçou que é imperativo que a saúde mental deixe de ser um "tabu" no universo da competição de alto rendimento e alerta para necessidade de acompanhamento psicológico ainda nos escalões de formação.

A educação mental é fundamental, mas a saúde psíquica continua a ser tabu. Já avançámos muito, mas continuamos a léguas das grandes potências desportivas”, acrescentou Luís Alves Monteiro.

Vicente Moura, antigo presidente do Comité Olímpico de Portugal, reitera que antes da competição e dos objetivos competitivos tem de estar sempre a saúde física e mental dos atletas.

Acho que está em primeiro lugar a saúde mental da Simone, a pessoa, e em segundo lugar está o desporto, que é importante, mas não é tudo. (…) Na vida, os resultados não são tudo”, disse Vicente Moura.

O especialista lembra também os Jogos Olímpicos de Los Angeles, em que Fernando Mamede sofreu um episódio semelhante ao da ginasta norte-americana.

Acompanhei de perto situações similares. É difícil. (…) Recordo-me, em 84, Fernando Mamede era nessa altura recordista do mundo dos 10 mil metros e na final desistiu, porque não suportava a responsabilidade de ter de ganhar a medalha de ouro. Foi o que aconteceu à Simone Biles, sentiu-se perdida quando fez o salto e isso é altamente perigoso. Teve a coragem de parar”, confidenciou o  antigo presidente do Comité Olímpico.

 

O caso de Fernando Mamede

Em 1984, nos Olímpicos de Los Angeles, Portugal também assistiu a uma desistência relacionada com a saúde mental. Fernando Mamede chegou à pista como recordista dos 10 mil metros, mas foi incapaz de terminar a prova. Desistiu aos cinco mil metros, a meio, sem nenhuma lesão e sem motivo aparente.

Em 2018, à TVI, Mamede explicou o sucedido. O que sentiu, em que pensou, como não foi capaz de arcar com a pressão de corresponder às expectativas e como um campeão pode quebrar psicologicamente, em silêncio e sem que nem quem lhe é mais próximo perceba.

Ficou em mim uma mágoa. Um atleta que bate o recorde do mundo um mês e meio antes, logicamente, que naquela altura era o melhor do mundo. (…) Vou para o autocarro tudo bem, chego à pista tudo bem, faço o aquecimento tudo bem… depois, foi uma negação terrível. Já não queria entrar. (…) A força negativa foi mais forte do que eu. Acabei por desistir a meio da corrida, aos cinco mil metros”, confidencia Fernando Mamede.