As manifestações no Brasil contra a realização do Campeonato do Mundo de futebol têm repartido as atenções do fenómeno desportivo global que acontece a cada quatro anos. Por isso mesmo (por essa visibilidade global), os protestos no país do futebol têm também ganho especial atenção.

«Não vai ter Copa» dizem os movimentos já organizados com ações na rua e presença nas redes sociais. A expectativa entre o que se espera de um Mundial na terra do «penta» Brasil passou a ser (mais) dividida com uma agitação social que protesta contra os gastos de milhões de reais no futebol passando ao lado das necessidades básicas da educação ou da saúde, por exemplo.




As seleções já estão a começar a chegar ao Brasil. A comunicação social de todo o mundo também já não tardará a fazer diariamente os diretos do local. E seguir-se-ão também os adeptos... Falta pouco mais de uma semana para o pontapé de saída. O que vai acontecer, de facto, quando o Mundial tiver começado, ninguém sabe ainda. A questão vai-se dividindo entre quando o Mundial começar as coisas acalmam e o que será que isto vai dar?...

O tema lançado é de caráter duplo e é por isso mesmo também deixado em aberto. Essa duplicidade lançada aqui sobre um Campeonato do Mundo que vai acontecer foi aproveitada depois de escutada a conferência do presidente do Comité Olímpico de Portugal (COP) no Congresso de História e Desporto, cuja terceira edição se dedicou ao tema «Desporto e Guerra».

O presidente do COP dissertou sobre a violência dentro e fora do desporto sob o ponto de vista do «paradoxo» em que este fenómeno existe: o desporto como palco de violência, mas também na sua possibilidade de intervir como pacificador.

«A violência associada ao desporto é tão antiga quanto o próprio desporto», afirma José Manuel Constantino ressalvando que o grau de violência depende de modalidade para modalidade e dando os exemplos do râguebi e do basquetebol para diferenciar os graus de uma violência que «só é legitimada naquele contexto» de cada um.

Mas a questão não se esgota aqui, pois, se «na matriz do desporto há um grau de violência que está lá» há também «a violência que vai para além» e que «muitas vezes se reflete no comportamento dos espectadores» e até «dos intervenientes». Neste contexto, o presidente do COP recorda o « hooliganismo» que «veio alterar o funcionamento e obrigar a outro procedimento no espetáculo desportivo». «A violência deslocou-se do espaço de jogo para o percurso do espaço de jogo», analisa José Manuel Constantino.



O hooliganismo passou a ser uma realidade presente com a qual foi preciso lidar. E esta evolução de procedimentos tornou-se também numa nova realidade. Atualmente, os comportamentos são mais controlados do que eliminados. O presidente do COP considera, numa análise à realidade portuguesa, que «o posicionamento [das autoridades] não foi e não tem sido o melhor», pois, «os polícias trabalham também na lógica do espetáculo» - nomeadamente, referindo-se às conferências de imprensa que agora se tornaram hábito na explicação dos procedimentos de segurança previstos para os jogos de futebol.

As críticas são extensíveis aos meios de comunicação, pois, « media e polícia facilitam a cultura de agressão ao darem atenção». E, assim, «o que devia ser motivo de preocupação banaliza-se». «A violência está longe de estará erradicada», garante o dirigente português referindo que a violência gestual, de linguagem, gráfica, estão «banalizadas». «Tudo isso, hoje, já não incomoda».

«Aceita-se a linguagem [agressiva] como fazendo parte dos tempos que correm» e «a polícia não se incomoda com este tipo de coisas. Também, se o fizesse, não fazia mais nada. É, nos dias de hoje, [um comportamento] impossível de conter», diz José Manuel Constantino lembrando ao mesmo tempo que «o desporto não pode ser lido fora da sociedade em que opera».

Assim, no que respeita ao futebol em concreto, «é difícil encontrarmos outra atividade social tratada do ponto de vista militar». Mas a violência, dentro e fora do espaço desportivo, «não é um exclusivo do futebol. Como a violência não acontece em todas as modalidades é mais frequente «nas que geram mais audiência e têm mais visibilidade».



David Seabra investiga há vários anos os comportamentos das claques de futebol e só para a sua tese de doutoramento fez mais de 90 entrevistas a membros destes grupos organizados. E deu na sua intervenção vários exemplos de linguagem agressiva que vai ao ponto de alguns falarem em «matá-los».

Mas o investigador português faz, por outro lado, um alerta: «Não posso considerar que as claques sejam os principais agentes da violência no futebol português.» As claques, diz, «são responsáveis pela violência mais visível», mas, lembra David Seabra, há mais violência «nas divisões secundárias ou distritais».

Uma espécie de esperanto

O palco oposto em que o fenómeno desportivo se pode manifestar é o da «pacificação». O presidente do COP frisa que «o desporto não é um milagre que resolva problemas, mas pode ajudar porque é de facto aglutinador». «Foi possível juntar países que têm conflitos», dá o dirigente português como exemplo.

Ekain Rojo Labaien recordou na sua intervenção a trégua de Natal entre ingleses e alemães durante a I Guerra Mundial que não passou sem um jogo de futebol entre inimigos que puseram, por momentos, as armas de lado. O investigador espanhol recuperou também como exemplo o mais próximo Mundial 2002, organizado conjuntamente por Japão e Coreia do sul, como reflexo de «aproximação e intercâmbio cultural».

A dupla de investigadores Leonardo Maturana-dos-Santos e Karina Cancella dedicou a sua interveção ao «peacebuilding» promovido pelas Nações Unidas em zonas de conflito e, no seu caso especial, ao deporto cujo papel «é utilizado pela ONU há mais de 20 anos como veículo para a paz». Em 2004, o Brasil foi jogar ao Haiti para ajudar ao fim da guerra civil. O resultado foi este:



«O desporto é uma espécie de esperanto», conclui José Manuel Constantino sobre esta sua vertente pacificadora. Mas há que ter atenção, lembra o presidente do COP. É também uma faca de dois gumes». «Porque também é utilizado para legitimar países, políticas, organizações, ou abrir países ao mundo», como aconteceu com os Jogos Olímpicos de 2008, em Pequim, na China, pois as questões dos «direitos humanos e do Tibete ficaram suspensas perante o deslumbrar do mundo».

[Artigo feito a partir das intervenções no III Congresso de História e Desporto
«As violências: no desporto e fora dele»
José Manuel Constantino (Presidente do Comité Olímpico de Portugal)
«El evento del fútbol como expresión de conflicto y vector de pacificación)
Ekain Rojo Labaien (Universidad del País Vasco)
«Só os mais fortes sobrevivem. Nós seremos eternos.
O mimetismo da guerra nas claques de futebol»
Daniel Seabra (Universidade Fernando Pessoa)
«Suor poupa sangue: uma análise de reportagens televisivas sobre o uso de exporte como ferramenta de peacebuilding nas Missões de Paz da Organização das Nações Unidas»
Leonardo José Maturaba-dos-Santos e Karina Cancella]