DESTINO: 90's é uma rubrica do Maisfutebol: recupera personagens e memórias dessa década marcante do futebol. Viagens carregadas de nostalgia e saudosismo, sempre com bom humor e imagens inesquecíveis. DESTINO: 90's.
GARY CHARLES: Benfica (1998/99)
Ansiedade, depressão, adição. Gary Charles tudo sentiu, tudo viveu, tudo devorou. Até dizer ‘para mim, chega’. Está sóbrio há dez anos - «quase, desde abril de 2007» -, considera-se «um alcoólico em recuperação» e trocou o divã dos psicólogos que consultou por um lugar bem mais saudável.
O antigo lateral direito do Benfica, época 1998/99 já no declínio do reinado de Graeme Souness, é o mentor e um dos terapeutas de um projeto chamado GC Sports Care. De forma resumida, Gary ajuda todos os desportistas que passam pelo que ele já passou.
«Estive lá, sei o quão dolorosa pode ser a solidão de um futebolista profissional desequilibrado.»
A GC Sports Care, comandada por Gary Charles e a colega Lorna McClelland, recebe diariamente «dezenas de pedidos de ajuda». Chegam de toda a parte, de todas as modalidades desportivas, de atletas famosos e de absolutos anónimos.
«Promovemos programas individuais de aconselhamento e apoio. Há desportistas com graves problemas relacionados com o consumo de substâncias ilícitas e apostas desportivas. E casos mais leves, claro. Por exemplo, um atleta que está longe de casa, desamparado e não tem coragem de desabafar com os colegas e os responsáveis do seu clube. Estamos cá para eles e viajamos para onde for necessário.»
Um golo de Gary Charles no Aston Villa:
A conversa com Gary Charles é várias vezes interrompida. Compreensivelmente. «A minha semana tem sido complicada. Estou constantemente em apoio terapêutico, raramente faço intervalos. E à noite faço questão de levar os meus filhos ao treino de futebol.»
É difícil imaginar que este homem, sereno e educado, é o mesmo protagonista de alguns dos maiores escândalos ocorridos em Inglaterra com futebolistas profissionais. Gary chegou, inclusivamente, a agredir uma pessoa e a estar preso por violar uma ordem judicial.
Foi, de resto, na prisão que a vida de Gary mudou. Radicalmente. A cadeia foi uma epifania, uma purga quase religiosa. Um desabafo social.
«Foram meses duros, mas ergui a cabeça e aguentei. Claro que lamento muitas coisas no meu passado, ninguém me apontou uma arma à cabeça para fazer asneiras. De qualquer forma, acho que o tribunal me castigou sobretudo por eu ser um futebolista profissional.»
Quando Gary Charles chegou ao Benfica, em janeiro de 1999, trazia no currículo duas internacionalizações pela seleção de Inglaterra - «podiam ter sido muitas mais».
Apareceu no final dos anos 80 a jogar no Nottingham Forest, treinado pelo icónico Brian Clough, e chegou a disputar uma final da FA Cup em Wembley. Uma final tristemente célebre pela grave lesão de Paul Gascoigne. Gazza atingiu Gary Charles com violência, sem bola, e acabou por se magoar a si próprio.
A famosa lesão de Gazza depois de uma agressão a Gary Charles:
Depois esteve no Derby County e destacou-se no Aston Villa. As lesões começaram a aparecer e bloquearam a ascensão de um lateral direito prometedor.
O álcool arruinou o resto.
«Enquanto a minha carreira esteve bem fui sempre disciplinado. O problema era quando eu parava devido a uma lesão. Aí sim, saía mais à noite e bebia em excesso. Não era um consume frequente, mas quando acontecia… sim, exagerava.»
Gary fala e exorciza os fantasmas do passado. Está há uma década longe dos demónios. «Admito que tive problemas. Não fui um alcoólico típico. Passava longos períodos sem beber e depois tinha uma recaída forte. Durante muito tempo nem sequer gostava do sabor do álcool. Mas passei muito tempo longe de casa, sozinho. Ia para um pub tranquilo, sentava-me ao balcão e bebia. Bebia sem parar.»
E no Benfica, como foi? «Mau. Para mim foi mau. Cheguei lesionado, estive demasiado tempo sem jogar. Ainda marquei um golo [Salgueiros, 3 de março de 1999], acreditei que a partir daí as coisas melhorariam e… só fiz mais um jogo. Nada tenho a dizer do Graeme Souness e dos meus colegas. Estive num dos maiores clubes do mundo, mas já longe do meu melhor.»
Charles confessa ter «pouco contacto» com os colegas britânicos da altura. Scott Minto, Brian Deane, Steve Harkness, Mark Pembridge, Michael Thomas… «As nossas vidas evoluíram de formas diferentes. Para ser honesto, quando tive problemas com a Justiça senti que a maior parte dos meus amigos desapareceu. Mas estou de bem com a vida.»
De Portugal, Gary Charles guarda «a imponência da Luz», «a boa qualidade de vida» e «a desorganização no clube». «Na minha estreia perdemos contra o Boavista [0-3 na Luz, 14 de março de 1999] e pensei que o estádio caía», recorda Gary Charles.
Benfica-Boavista (0-3), a estreia de Gary Charles:
Gary Charles, 47 anos, está mais confortável ao falar do presente. E dos projetos futuros. «Saí do Benfica, tive problemas, estive preso e agora tento salvar vidas. É uma vida cheia», brinca o antigo defesa inglês.
Poucos sabem, mas o drama de Gary terá sido desencadeado por um evento anterior. Em 1992 atropelou acidentalmente um adolescente numa bicicleta. O jovem sucumbiu aos ferimentos. Gary foi inocentado de responsabilidades, mas nunca esqueceu o acidente.
«Não sei se foi isso ou se foi a atmosfera do futebol profissional. O que digo aos meus pacientes é simples: falem, comuniquem, desabafem. Sei que para um jovem futebolista é difícil chegar perto de um treinador e assumir que tem um problema com a bebida», continua Gary Charles.
«Todos pensam no melhor contrato das suas carreiras, em fazer tudo direitinho. E refugiam-se no silêncio, na bebida. É importante que saibam que há um espaço como a GC Sports Care, pronto a ajudar.»
Gary Charles acumula «a maior responsabilidade da vida» com a participação em jogos de beneficência e o treino numa academia para jovens chamada Icon International. Vive na zona de Nottingham e está determinado a manter-se longe dos problemas.
O passado é um lugar distante e escuro. Incluindo Lisboa.
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