DESTINOS é uma rubrica do Maisfutebol: recupera personagens e memórias das décadas de 80, 90 e 00s, marcantes no nosso futebol. Viagens carregadas de nostalgia e saudosismo, sempre com bom humor e imagens inesquecíveis. 

Paulo Turra, lembra-se? Foi contratado ao Palmeiras em 2001, na ressaca do título de campeão do Boavista, para substituir o capitão Litos, que tinha sido vendido ao Málaga. O brasileiro chegou com 28 anos e rapidamente se afirmou como um líder no Bessa: um jogador personalizado, com uma voz forte e muita vontade de vencer.

O Maisfutebol reencontra-o nesta altura em Curitiba, onde é treinador do Athlético Paranaense, um dos grandes clubes do Brasil. Numa conversa franca e aberta recorda como foi parar ao Boavista, lembra o restaurante onde só precisava de se sentar ao balcão para o empregado vir com uma francesinha e confessa ter saudades de Portugal.

Também passa pela relação com Scolari, que o levou até ao topo do futebol brasileiro. Uma relação que começou em Portugal, onde os dois se cruzaram e Paulo Turra foi várias vezes consultado para dar a opinião sobre os jogadores com que Felipão queria levar à seleção. «Várias chamadas à seleção tiveram a minha assinatura», diz.

Que Boavista encontrou quando chegou a Portugal?

Um Boavista muito forte, que era campeão, com uma estrutura muito boa. Era um clube que pagava religiosamente no dia certo, bons salários, bons prémios de jogo. Era um ambiente muito bacana. A cidade do Porto também era espetacular.

O que recorda mais da cidade?

Recordo o Capa Negra, ainda existe, não é?

O restaurante? Sim, existe.

O Capa Negra tinha as francesinhas e eu era doente por francesinhas. Gostava tanto que quando chegava lá nem precisava de dizer nada: sentava-me no balcão e o empregado passado um pouco vinha informar-me que já estavam a fazer a francesinha.

Mas comia muitas francesinhas?

Muitas, muitas, muitas. Eu adoro francesinhas. Então ia lá várias vezes só para comer a francesinha ao balcão. Muitas vezes também ia aos restaurantes de Matosinhos comer peixe. Era muito bom. Tenho muitas saudades de Portugal e da cidade do Porto.

Há alguma história curiosa que não se tenha esquecido?

Há muitas, muitas. Lembro-me agora de uma. Eu sou filho de emigrantes italianos, que no Brasil são conhecidos por ser muito agarrados ao dinheiro. Só para você perceber o contexto. Eu cheguei ao Boavista em agosto e faço anos em novembro. No dia do meu aniversário, os capitães vieram falar comigo, que tinham marcado uma churrascaria e eu tinha de pagar. Chegámos lá depois do treino, eram duas da tarde, almoçámos, jantámos e só não tomámos pequeno-almoço porque o Sanchez disse que já era tarde e mandou-nos para casa. Ficámos lá das duas da tarde até à meia-noite. Era para ser almoço: foi almoço, jantar, vinho, champanhe, eu sei lá. E eu a pagar tudo do meu bolso.

[risos]

E também tenho saudades de Guimarães. Fui muito bem acolhido no Vitória, um clube enorme, numa cidade muito bonita. O que nem sempre é fácil, porque Boavista e Vitória tinham uma grande rivalidade, era o grande clássico entre os clubes que não eram os três grandes.

O Boavista nessa altura era praticamente um grande.

Era campeão. No meu primeiro ano fomos vice-campeões e chegámos à segunda fase da Liga dos Campeões. Lembro-me que ganhámos ao Borussia Dortmund, ao Dínamo Kiev, ao Nantes, empatámos com o Liverpool e com o Bayern Munique. No ano a seguir fomos às meias-finais da Taça UEFA. Eliminámos o PSG, o Hertha Berlim, o Málaga. Era uma grande equipa.

Bosingwa, Pedro Emanuel, Sanchez, Petit...

Elpídio Silva, Duda, Alexandre Goulart, William, Frechaut, Ricardo, Martelinho, enfim. Tínhamos muita qualidade com a bola e um grande entrosamento. Acho que nesse ano a única mexida na equipa foi a minha entrada para o lugar do Litos, que tinha sido vendido ao Málaga. O resto do onze habitual era todo igual.

O Paulo Turra fazia dupla com o Pedro Emanuel?

Eu fazia dupla com o Pedro Emanuel, sim, e ganhei o meu lugar em Anfield Road, frente ao Liverpool, no dia 11 de setembro de 2001. Eu já tinha jogado antes, mas esse foi o jogo da minha afirmação, frente a uma grande equipa, que tinha no ataque o Emile Heskey e o Owen.

A partir daí tornou-se um alicerce da equipa.

O que mais me lembro é que o grupo era muito bom. Almoçávamos juntos uma ou duas vezes todos os meses. Treinávamos sempre de manhã e uma ou duas vezes os capitães, o Sanchez, o Pedro Emanuel ou o Jorge Couto, diziam que naquele dia íamos almoçar no restaurante tal. Então íamos sempre, almoçávamos e ficávamos lá durante a tarde a conversar. Falávamos de futebol, das nossas carreiras, do nosso país, da nossa família, falávamos de tudo. O ambiente no Bessa era muito bacana, muito familiar.

Veio do Palmeiras, que é um clube enorme na América do Sul. Não hesitou?

Em nenhum momento. Há até uma história engraçada. Na altura o Palmeiras disputava a Copa Libertadores e nós tínhamos o hábito de ver os jogos da Liga dos Campeões juntos, quando estávamos em estágio, através da ESPN. Nessa altura eu falava com aqueles mais próximos de mim, o Arce ou o Galeano, aqueles mais experientes: ‘Um dia vou disputar a Liga dos Campeões’. Eles riam-se e menosprezavam. ‘Ah, está maluco, Gaúcho? Cai na real’. E eu pensava: ok, então está bem.  No ano a seguir, quando estava a sair para ir viajar, o Arce veio falar comigo. ‘Olha aí Gaúcho, você é que estava certo’.

Era uma transferência que desejava?

Claro. O Boavista era campeão, disputava a Liga dos Campeões. Não pensei duas vezes.

E como é que surgiu a hipótese de ir para o Boavista?

Naquela época existia no Brasil a Lei do Passe. Basicamente um jogador acabava contrato, mas o clube continuava a ter o passe do jogador. Por isso éramos obrigados a renovar. Era uma lei escrava, não fazia sentido. 

O Paulo Turra estava em final de contrato?

É isso. Quando saí do Caxias assinei por um ano com o Palmeiras. Acabou o meu contrato e o Palmeiras fez-me uma proposta para renovar. Eu não aceitei. Então o presidente do Palmeiras, que na altura era o Mustafá Contursi, uma pessoa muito dura, mandou uma ordem para eu treinar à parte do grupo. Durante quatro ou cinco dias ia ao clube, mas só treinava no ginásio e fazia corrida no campo, separados do resto do plantel. Até que um dia o diretor financeiro me chamou ao gabinete dele e me disse que havia interesse há já algum tempo do Boavista.

Foi a saída que queria para aquela situação...

Sim, claro. Disse que sim, que conhecia bem o Boavista, que tinha visto vários jogos da equipa na Liga dos Campeões. ‘Foi o campeão português, não é?’ Ele respondeu: ‘Sim, sim, sim. Está aí um empresário brasileiro’.

O Adelson Duarte?

Sim, isso, o Adelson Duarte. Então ele disse: ‘Está aí um empresário com um olheiro do Boavista, eles já analisaram os vídeos, mas querem ver-te treinar. Estás preparado para fazer um treino coletivo?’. Eu estava prontíssimo. Então organizaram um treino de conjunto, eu fui, fiz o treino de 40 ou 50 minutos e no fim disseram-me para passar na sede do Palmeiras. Sentei-me na mesa com eles, apresentaram-me uma proposta, aceitei logo na hora e quatro ou cinco dias depois já estava em Portugal.

Gostou de trabalhar com Jaime Pacheco?

Ele era muito exigente, exigia muita intensidade à equipa. E depois tinha uma característica que sempre achei curiosa e não vi muitas vezes: para ele não havia equipas titulares. Vi várias vezes jogadores que eram titularíssimos, ou nós pensávamos que eram titularíssimos, que não tinham tido uma semana de trabalho tão forte e ele não queria saber. No último treino antes do jogo tirava o jogador da equipa e metia outro. Isso mexia com o brio dos jogadores e valorizava todo o plantel. Eu vinha do Brasil, onde isso não acontecia, e tive de me adaptar rapidamente. Qualquer treino tinha de ser disputado como uma final.

E como era no contacto com os atletas?

Era um brincalhão. Gostava de conversar com os jogadores e brincava muito, mas quando tinha de tomar atitudes, ele tomava. Toda a gente tinha um respeito muito grande por ele.

Era bravo com os jogadores?

Não, era bravo quando tinha de ser. Falava forte e cobrava quando precisava disso. E nessa altura não distinguia o capitão de um júnior. Mas de resto era muito brincalhão e bem-disposto.

E ele gostava do Paulo Turra, porque você sempre foi um líder, uma voz forte na equipa...

Sim, é isso tudo que você falou. Sempre tive essa característica, sempre fui um jogador de falar muito durante os jogos, até de cobrar dos companheiros, de provocar no bom sentido os adversários, de discutir com os árbitros. Eu tinha essa atitude de treinador, de ver o jogo de trás, com uma visão mais orientadora. Organizava muito os médios e os laterais. Por isso hoje sou treinador, porque eu sempre tive vocação para isso.

E essa sua forma de ser não criava antipatias quando chegava a um clube novo?

Não, não. Eu nunca fui um líder de me colocar em bicos de pés. Eu conquistava o meu espaço. Tinha momentos de brincadeira, momentos de descontração, mas quando entrávamos em campo para treinar eu era fera. Por isso os colegas sempre me aceitaram bem. Eu passava indicações, cobrava, mas também elogiava e nunca me achei mais do que ninguém.

Nos últimos tempos trabalhou vários anos com Scolari. Como é que essa relação começou?

Quando eu fui para o Boavista, logo um ano depois o professor Felipe [Scolari] e o Murtosa foram treinar a seleção portuguesa. Nessa fase fizemos uma grande amizade. Inclusivamente, todos os jogadores do Boavista que foram à seleção nessa altura passaram por mim. O Murtosa ligava-me e perguntava como eram em campo, fora de campo, se eu concordava com a impressão que eles já tinham. Todos tiveram a minha assinatura.

Já nessa altura confiavam em si.

Sim, sim. Por exemplo, no final da época 2004-05, Portugal ia fazer dois jogos das eliminatórias para o Mundial e precisava de um lateral direito. Eu na altura estava no V. Guimarães e o Murtosa perguntou-me: ‘Paulo, e o Alex, o que tu achas?’ O Alex tinha chegado ao Vitória como extremo, ele no Benfica jogava a extremo, foi o Manuel Machado que o adaptou. Então o Murtosa perguntou-me se ele estaria preparado para ser lateral na seleção. Eu disse que sim, de olhos fechados, e a verdade é que ele jogou e esteve muito bem. Inclusivamente depois foi para o Wolfsburgo.

Já se conheciam há muitos anos, então?

Sim, e tínhamos uma grande cumplicidade. Mais recentemente eu treinava há sete anos nas divisões mais baixas do futebol brasileiro e tinha sido campeão do Paraná com o Cianorte. Durante essa fase eu fiz estágios com o Muricy no Fluminense, com o professor Felipe [Scolari] no Palmeiras, com o Tite no Corinthians, com o Silas no Avaí. Numa altura em que eu estava em Portugal, acompanhado os trabalhos do Boavista e do V. Guimarães, falando com as pessoas e tal, acordei de manhã e tinha um mail do professor Felipe [Scolari] a convidar-me para ir com ele para a China. Aceitei logo na hora. Rescindi com o Cianorte e fui para a China. Depois estivemos no Palmeiras, no Cruzeiro e agora no At. Paranaense.

E entretanto tornou-se treinador principal do At. Parananese.

Sim, o professor parou de treinar, ficou como diretor técnico e eu subi a treinador principal.