DESTINOS é uma rubrica do Maisfutebol: recupera personagens e memórias de décadas marcantes do nosso futebol. Viagens carregadas de nostalgia e saudosismo, sempre com bom humor e imagens inesquecíveis. DESTINOS.
DOUALA: Boavista (1998 a 2000); Aves (2000/01); Gil Vicente (2001/02); U. Leiria (2002 a 2004); Sporting (2004 a 2006)
A semana de todos os males não larga Roudolphe Douala. Em poucos dias, o Sporting de José Peseiro perde o campeonato com uma derrota na Luz e a Liga Europa numa final contra o CSKA em Alvalade. Duro, demasiado duro.
Esse é o único momento em que o sorriso de Douala abranda. O sprinter camaronês, agora com 41 anos, vive uma vida recatada em França a cuidar de crianças. Essa é uma das grandes surpresas deste DESTINOS feito durante uma pausa para almoço.
Douala está há 13 anos fora de Portugal e ainda fala a língua de Camões sem mácula. Fala muito do seu Sporting, claro, mas também da entrada no Boavista, das passagens por Aves, Gil Vicente e Leiria e das conversas únicas com Vítor Oliveira e Manuel Cajuda.
Há mensagens para velhos amigos e um abraço especial para Pedro Barbosa, comandante do balneário leonino na época 2004/05. Sim, aquela que eclode na semana de todos os males.
DOUALA NO CAMPEONATO NACIONAL:
. 1998/1999: Boavista, 26 jogos/5 golos (2º lugar)
. 1999/2000: Boavista, 14 jogos/1 golo (4º lugar)
. 2000/2001: Aves, 28 jogos, 4 golos (17º lugar)
. 2001/2002: Gil Vicente, 32 jogos/4 golos (12º lugar)
. 2002/2003: U. Leiria, 33 jogos/5 golos (5º lugar)
. 2003/2004: U. Leiria, 33 jogos/10 golos (10º lugar)
. 2004/2005: Sporting, 22 jogos/5 golos (3º lugar)
. 2005/2006: Sporting, 25 jogos/1 golo (2º lugar)
TOTAL: 213 jogos/35 golos na liga portuguesa
Maisfutebol – Bom dia, Douala. Está a viver em França, como o número de telemóvel indica?
Douala – Oui, em Saint-Étienne. Foi para aqui que vim viver quando saí dos Camarões.
MF – Quando saiu da cidade de Douala, certo?
D – Ah ah ah, isso, a cidade que me deu o nome.
MF – Já lá voltaremos. Gostaríamos de saber o que faz hoje em dia. Está ligado ao futebol?
D – Não, não. Trabalho com crianças e jovens. Sou educador de infância, acho que é assim que se diz em Portugal.
MF – Educador de infância? Mas como é que um ex-futebolista profissional chega a essa atividade?
D – Não foi difícil. Deixei de jogar em 2015, com 37 anos. Ainda pensei ser treinador, mas passou-me depressa a ideia, ah ah ah. Sempre adorei crianças e tirei este curso aqui em França. Trabalho numa instituição estatal, ligada à câmara municipal de Saint-Étienne. Mas não tenho de mudar fraldas nem nada disso. Jogar no Sporting foi mais difícil do que ser educador de infância.
MF – Não trata de bebés?
D – Não, estou na sala dos meninos que têm 11 anos. O mais novo tem 11 e o mais velho tem 17. Os gritos que está a ouvir ao telefone vêm deles. Estou agora na pausa para almoçar.
MF – Fala muito bem português. Mantém ligação ao nosso país?
D – Obrigado, obrigado. Por acaso estive alguns anos sem visitar Portugal, mas a partir de janeiro vou começar a estar aí mais vezes. Tenho uns negócios em vista com o meu amigo José Soares. Sinto-me muito agradecido a Portugal. Aliás, aqui em Saint-Étienne há uma comunidade enorme de portugueses e vou aos restaurantes deles. Sou viciado em comida portuguesa, a melhor do mundo.
MF – Vamos, então, até Portugal. Lembra-se do seu primeiro jogo por cá?
D – Dois golos ao Vitória de Guimarães, pelo Boavista. O Jaime Pacheco descobriu-me num torneio de jovens na Suíça e convenceu-me a ir para lá. Eu era muito miúdo ainda. Não me esqueço de nada da minha carreira. Fui o melhor jogador desse torneio.
MF – Esse era um grande Boavista. Um Boavista que andava a «cheirar» o título.
D – Tínhamos uma equipa muito forte. O Boavista foi campeão duas épocas depois. Eu ainda pertencia ao clube, mas estava emprestado ao Aves. Seria fantástico ver o Boavista a conseguir fazer isso outra vez. O plantel era incrível, aprendi muito com a malta mais velha: William, Sanchez, Jorge Couto, Timofte…
MF – Eram eles os seus melhores amigos?
D – Eu queria dar-me bem com todos. Quando vens de fora e chegas a um balneário onde ninguém te conhece, o melhor é não arranjares problemas, ah ah ah. Eu e a minha mulher fomos muito ajudados pelo Rui Bento e a família dele. Tivemos um bebé, eramos muito novos e não falávamos português. Tanto no Boavista como no Sporting eles foram fantásticos connosco. Ajudavam em tudo, até a comprar leite para o nosso bebé.
MF – O Douala não foi campeão no Boavista por muito pouco.
D – Sim, estava no Aves e o jogo do título, no Bessa, foi precisamente contra o Aves. Não pude jogar por estar emprestado. Descemos de divisão, mas o ambiente no Aves era muito bom, muito familiar. Gostei de ver o Aves a voltar à primeira divisão, tantos anos depois.
MF – Trabalhou com vários treinadores em Portugal, do Jaime Pacheco ao Paulo Bento.
D – Apanhei treinadores ótimos, aprendi muito com todos eles, principalmente com o Vítor Oliveira [Gil Vicente] e o Manuel Cajuda [Leiria].
VÍDEO: o golo de Douala em Udine (1m20s, imagens RTP)
MF – Porquê eles?
D – Mexiam com a minha cabeça, tinham a capacidade de falar sobre as coisas da vida e aplicá-las ao futebol. O Vítor e o Manel diziam sempre que eu tinha de ir para um clube grande. Faziam-me sentir bom, importante. A minha época no União de Leiria, em 2004, foi extraordinária. O que eu fiz lá foi muito bom [12 golos]. Se eu tivesse feito o mesmo no Sporting… mas marcar um golo no Leiria não é o mesmo que marcar um golo no Sporting, ah ah ah. Pensar nisso enche-me o coração. Foi pena não ter escolhido sempre bem.
MF – Está arrependido de alguma opção tomada?
D – Podia ter saído mais cedo do Sporting. Tive um convite do Middlesbrough, com um salário milionário, mas tinha uma vida boa em Lisboa e não quis. Recusei. Não me faltava nada em Portugal, só que o Middlesbrough estava na Premier League e oferecia-me oito milhões. O Ricardo, o guarda-redes da seleção, falou comigo e disse-me que ainda tínhamos muito para ganhar em Alvalade, havia a possibilidade de jogar a Liga dos Campeões e tal. Perdemos contra a Udinese e eu marquei um golo.
MF – E como é que se processou a saída de Leiria para Alvalade?
D – Eu estava a jogar muito e tive um convite do Espanhol de Barcelona. O treinador era o Luis Fernandez, o francês. O presidente João Bartolomeu não me deixou sair em janeiro. Depois apareceu o Betis, que me queria para substituir o Joaquín. Também falhou. Esperei, esperei e mais tarde, já perto do fim da época, ligou-me um jornalista a perguntar se eu ia para o Sporting. Disse-lhe a verdade: ‘não sei de nada’.
MF – Mas já havia qualquer coisa.
D – Sim, sem eu saber. No dia seguinte telefonou-me um dirigente do Sporting. Estava tudo tratado com o Leiria, sem falarem comigo. Mas ok, era bom para todos. Cheguei ao Sporting com fome de bola e a minha primeira época foi espetacular. Estava em grande forma.
MF – Gostou de trabalhar com o José Peseiro?
D – Sim, sim, muito. Uns anos depois do Sporting, o José Peseiro até me convidou para ir com ele para o Médio Oriente, mas eu queria estar perto da minha família. Acho que foi em janeiro de 2008.
MF – Foi titular muitas vezes com o Peseiro no Sporting, mas na final da Liga Europa só jogou dez minutos. Ficou chateado com ele?
D – Custou muito chegar a essa final e eu contribuí bastante. Marquei um golo ao AZ Alkmaar nas meias-finais e fui titular nesses dois jogos, por exemplo. Não fui o único prejudicado, houve mais gente no banco que merecia jogar. O treinador tem de assumir as opções e pagar por elas. No meu caso, eu acho que não fui titular porque estive mal contra o Benfica, uns dias antes, no jogo em que perdemos o campeonato. Se eu tivesse feito um bom jogo na Luz, de certeza que tinha jogado a final contra o CSKA. Foi uma decisão do treinador.
MF – Há pouco disse que jogar no Sporting foi mais difícil do que ser educador de infância. Quer explicar melhor?
D – Jogar lá era muito exigente. Vou dar um exemplo: eu estava há cinco anos em Portugal e sempre sem lesões; cheguei ao Sporting e comecei a ter problemas físicos porque o ritmo nos treinos e nos jogos era diferente. Exigente. Mas mau, mau, foi mesmo ter de lidar com as derrotas contra o Benfica e o CSKA.
MF – Quando vê essa final contra o CSKA, consegue identificar os motivos da derrota?
D – Quando a revejo, acredito sempre que vamos ganhar, ah ah ah. Não, a sério, acho que foi difícil para o José Peseiro gerir tanta coisa naqueles dias difíceis. Também era complicado para ele. Ele não podia dizer ao Sá Pinto ‘olha, tu não vais jogar’. O Sá até estava bem e merecia, mas era um dos líderes do balneário. E o Zé Peseiro não queria problemas. Eu sabia que não ia jogar porque ele não falou comigo no dia anterior. Depois, anunciou a equipa ao plantel só para aí cinco ou seis horas antes do jogo.
MF – Quando o Douala era titular o José Peseiro avisava-o de véspera?
D – Sim, falava sempre comigo antes. E nesse dia antes da final não o fez, por isso percebi que ia para o banco. O Zé Peseiro era diferente nisso, porque a maior parte dos treinadores não falavam assim connosco. Foi pena a derrota, o Sporting tinha uma grande equipa.
MF – Com muitos nomes fortes.
D – Liedson, Moutinho, Rochemback, Hugo Viana, Pedro Barbosa, Rui Jorge… O Pedro Barbosa era muito importante, dava-me muito bem com ele porque me aconselhava bastante. O jogador de futebol até aos 30 anos é um puto. Mais tarde, quando sente o futebol a acabar, já pensa nas coisas de uma forma diferente. O Pedro Barbosa dava-me conselhos. Dizia: ‘mexe-te bem, faz isto e aquilo’. O Pedro ajudava bastante, mesmo quando não jogava. Sempre bons conselhos. Ele depois saiu e mais tarde voltou ao Sporting.
MF – Quer enviar uma mensagem ao Pedro Barbosa?
D – Um grande abraço. Foi um prazer jogar com ele e ouvir os conselhos que me dava. Infelizmente não o voltei a ver depois dos tempos no Sporting, mas digam-lhe que a partir de janeiro vou estar mais vezes em Lisboa. Com o Rui Jorge também era fácil jogar. Dava sempre bem a bola, não complicava. Ter alguém atrás de ti como o Rui ajuda bastante. Aprendi bastante com eles, na altura já tinham 34/35 anos.
VÍDEO: alguns golos de Douala em Portugal
MF – Ficou surpreendido com a troca do Peseiro pelo Paulo Bento?
D – Sinceramente, nunca fiquei contente com a saída de um treinador. Foi um momento triste, eu sei bem o que é uma crise num balneário. O treinador tem família, tem adjuntos, sentimentos, mas os adeptos do Sporting já não aguentavam mais. O Paulo Bento era jovem, teve uma oportunidade e hoje em dia é um treinador conhecido.
MF – O Douala acabou por sair para o Portsmouth em 2006.
D – Xiiiiiiii, isso foi tudo mal feito.
MF – Como assim?
D – Foi tudo feito à pressa, no último dia do mercado. Eu estava com a seleção dos Camarões e ligou-me um tipo do Portsmouth a dizer que eu ia para lá emprestado. E eu nem sabia falar bem inglês.
MF – Como é que se resolveu tudo?
D – Deram-me o número do Jorge Mendes e ele foi claro. ‘Olha, é o seguinte, o dinheiro é bom…’ Tive a oportunidade de sair e não tinha a garantia de jogar no Sporting, por isso aceitei. Nem tive tempo para pensar. Ainda por cima lesionei-me num pé pela seleção e parei cinco meses. Cheguei a Inglaterra, vi um plantel cheio e um treinador [Harry Redknapp] que não me queria. Começou mal e acabou mal. Quando um treinador não te quer, não há nada a fazer.
MF – Qual foi o melhor jogo do Douala em Portugal?
D – Posso escolher dois?
MF – Claro que sim.
D – O primeiro foi um Leiria-Benfica em 2004 [11 de janeiro]. Marquei dois golos num empate 3-3. O outro foi o empate de um Sporting contra o Belenenses. Estava imparável nesse jogo, sentia-me a correr a 200 quilómetros por hora. Ganhámos 2-0 e também marquei [23 de outubro de 2004].
MF – Voltemos à sua infância em Douala. Como é que nasceu a alcunha «Doudoupelé»?
D – Cheguei a França ainda pequenino, mas nos Camarões era eu que mandava na bola, ah ah ah. Jogava com crianças mais velhas do que eu e era o melhor. Todos os africanos têm alcunhas e a mim começaram a chamar «Doudoupelé». Tive uma infância feliz, a jogar descalço nas ruas. Conhecia muito bem os jogadores portugueses, porque Portugal tinha sido campeão do mundo de juniores: Rui Costa, João Pinto, Sá Pinto, Peixe, Figo. Ainda joguei com o Peixe no Leiria. Nem acreditava. Eu tive posters do Peixe no meu quarto, com a seleção, e ainda foi meu colega de equipa.
MF – Roger Milla, Omam-Biyik, Etoo. Camarões é um país de craques.
D – Ainda joguei com o Etoo na seleção. Ele é que mandava na seleção, ele é que sabia. Telefonou-me em 2008 para eu voltar à seleção, a pensar no Mundial de 2010. Por acaso vou encontrar-me com ele daqui a pouco, estamos a organizar um jogo de veteranos em África.
MF – Vai encontrar-se com o Samuel Etoo?
D – Sim, daqui a pouco tenho de lhe ligar para combinar tudo. Ele é que manda.
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