Texto de Luís Sobral, publicado originalmente a 6 de janeiro de 2014

A morte de Eusébio é uma impossibilidade. Ainda de manhã passei pelo Youtube e ele lá estava. Um golo, outro, mais outro ainda. Em força, driblando em corrida. Sofrendo faltas, correndo sempre. Elegante, educado, decisivo. As imagens por vezes são más, no entanto ele distingue-se.

Eusébio, como os grandes artistas, não morre. Viverá sempre, eterno em cada lance, em cada recordação. Eu sei que é uma ideia feita: os artistas não morrem. Mesmo assim escrevo-a, porque tenho a certeza de que é verdade. Como posso ter a certeza? Porque ainda há pouco levantei os olhos para a televisão e vi a reação de miúdos de dez anos, silenciosos em frente à estátua.

Eusébio é um deus também com pequenas coisas, de que me recordei logo de manhã, pouco depois da impossível notícia.

A toalha. Enquanto foi possível, Eusébio assistiu aos jogos na Luz com uma toalha enrolada no braço. Há fotos. No Euro 2004, recordam-se?, naquele dia de Ricardo frente a Inglaterra. Sempre me impressionou a disponibilidade dele para estar ao lado da seleção. E do Benfica. Onde fosse, por mais distante que o destino mandasse as suas equipas do coração.

A cadeira. Na Luz antiga, no tempo em que não existia banco auxiliar, Eusébio tinha um lugar único: uma cadeira, no enfiamento da linha central. Antes dos jogos subia ao relvado e a sua entrada era sempre muito aplaudida. Nesse tempo, a águia era Eusébio. E fazia sentido assim.

Os treinos. Eusébio era um dos responsáveis pelo trabalho com os guarda-redes, entre os anos 80 e a década de 90. Bento, sobretudo Silvino e Neno. Quase sempre no campo número 2 da antiga Luz, a que se acedia do balneário por uma passagem subterrânea, passava longos minutos a desafiar os guarda-redes. No fundo, a sua vida.

Golos. No final dos treinos, muitas vezes media forças com os craques. Colocavam-se além da linha de fundo e tentavam fazer a bola entrar na baliza. Um exercício divertido, que exigia perícia e concentração. Era por causa daquilo que, ainda miúdo, ficava a ver até ao final das sessões. Sempre me impressionou a felicidade que provocava em Eusébio, e nos melhores jogadores do Benfica, aquela estranha competição. Ele adorava a bola e adorava medir forças. Integrado na equipa técnica, com Eriksson e Toni, nunca dei por que algum jogador o desrespeitasse. Pelo contrário, o king impunha-se com naturalidade. Como se só pudesse ser assim, como se todos compreendessem que ele estava a um nível inatingível.

 
Joelho. Essa vontade de jogar, de competir, essa disponibilidade permanente estiveram sempre lá. Se era para o futebol, Eusébio esteve pronto até tarde, muito depois de ter deixado de ser jogador profissional. Uma vez, em 1993, o jornal «A Bola» foi a Paris jogar com o diário francês «LÉquipe». Pela equipa do jornal português, além de nós, os jornalistas, jogaram duas estrelas: Eusébio e Humberto Coelho. Do outro lado, Platini e Rocheteau. Os franceses mais novos, os nossos heróis um pouco mais velhos. O resultado interessa pouco. Nunca esquecerei duas coisas: o empenho de ambos com a camisola de «A Bola» e os joelhos deles, arrepiantes, testemunhos impossíveis de ignorar de carreiras levadas ao limite, nos tempos em que os jogadores eram bem menos protegidos. Essa relação, estrela-jornal líder, também é uma coisa definitivamente de outros tempos. Que Eusébio reconhecesse a importância daquele meio de comunicação, tão poderoso, também o definia.
 


Passaporte. A dimensão de Eusébio era fácil de entender para quem viajava com ele para o estrangeiro. Pude testemunhá-lo dessa vez, em Paris, mas sobretudo em diversas saídas profissionais. Em sítios tão diferentes como Cabo Verde, Malta, Moscovo, Madrid, Noruega, Suécia. Eusébio era o que víamos passar por nós quando esperávamos que confirmassem a nossa identidade, num aeroporto distante. Eusébio era o que não precisava de mostrar passaporte, aquele que só parava para tirar fotografias. Velhos, novos. Homens, mulheres. Polícias, adeptos, jogadores adversários, dirigentes. Presidentes, porteiros. Todos o conheciam. No início dos anos 90, acompanhei uma digressão de oito dias por Cabo Verde. Além de Eusébio, outras figuras maiores como Vítor Damas e Fernando Gomes. O king suscitava sempre um olhar diferente.

A Bola. Era assim, somando esses pequenos sinais, que nós jornalistas juniores aprendíamos quem de facto tinha sido Eusébio. Quem era Eusébio Claro que trabalhando em «A Bola», no início dos anos 90, era sempre possível percorrer as coleções do jornal, na altura o mais parecido com o Google. E passar os olhos pelo arquivo, o equivalente disponível ao Youtube. E, melhor do que tudo isso, podíamos escutar o senhor Nuno Ferrari a contar histórias do Eusébio.
 
Paciência . A relação entre ambos, estrela e repórter fotográfico, permitia, por exemplo, que Eusébio abrisse as portas de sua casa a um miúdo angolano chamado Akwá. E o jornal estivesse lá. Chegado de Benguela no Inverno, foi a casa do king no final do ano. Para ver vídeos do pantera negra em ação (e perceber onde estava metido,,,). No início dos anos 90 ainda se procurava o próximo Eusébio , como se fosse possível repetir a história. Eusébio assistia àquela busca com impressionante paciência.

É também por causa das imagens captadas pelo senhor Nuno que, posso garantir-vos, Eusébio não morreu. Sim, estou a pensar naquela fotografia , no Mundial 66. Eusébio dentro da baliza, com a bola aconchegada entre o braço esquerdo e o tronco, já rumo ao meio campo, já a começar a jogada do próximo golo. Aquela é capaz de ser a melhor fotografia de sempre do futebol português. O que faz sentido. É produto da comunhão entre o mais espantoso jogador e o mais talentoso repórter fotográfico.  Um e outro vivos, para sempre.
 
(como nesta foto do jornal inglês The Independent, edição de hoje)