Domingo à tarde é uma rubrica do Maisfutebol, que olha para o futebol português para lá da liga e das primeiras páginas. Do Campeonato de Portugal aos Distritais, da Taça de Portugal aos campeonatos regionais, história de vida e futebol.

O Maisfutebol encontrou Abílio no seu novo negócio, uma pastelaria, a poucos metros do Estádio Manoel Marques Gomes, quartel general do emblema gaiense. «Às vezes é mais difícil gerir aqui o negócio do que ser treinador», brincou o antigo médio português, sempre bem disposto ao longo de toda a entrevista.

O antigo médio contou a estória caricata de quando assumiu o comando técnico do Leixões, enquanto ainda era jogador, em 2002: «Perdemos com o Lousada e o presidente demitiu o Carlos Carvalhal. Eu era o capitão, e melhor marcador da equipa. No dia seguinte, estava num banho de imersão com outros colegas e o presidente disse que queria almoçar comigo. Pensei que fosse para sugerir alguém, porque já tinha alguma experiência e era o capitão, mas mal me sentei perguntaram se queria ser o treinador. Pedi dois dias para pensar, falei com o Carlos Manuel e o Carvalhal e eles empurraram-me para aceitar. É diferente ser colega, e um dia depois ser líder, mas correu bem, subimos de divisão com trinta pontos de diferença para o Lousada.»

Infelizmente, a caminhada nos «bebés do mar» não durou muito mais. A feroz competitividade da II Liga fez com que Abílio quisesse abandonar o comando da equipa: «Perdi um jogo com o Felgueiras, estávamos em quinto ou sexto, mas a exigência é muito grande no Leixões. Empatámos em casa e ficaram muito incomodados porque mandei o Doriva marcar um pénalti e ele falhou. Disse ao presidente que me ia embora, já não dava mais para mim.»

Não ficou muito tempo parado. Atravessou o Douro, voltou à terra natal, Gaia, e «salvou o Vila» do abismo: «No início do ano surgiu a hipótese do Vilanovense, eles estavam na zona de despromoção. Ainda tinha uma segunda volta quase inteira. Peguei na equipa com dificuldades enormes, vencimentos em atraso, entre outros problemas. Tinha três ou quatro jogadores carismáticos, eram os pilares.»

A segurança chegou apenas na última jornada, num daqueles momentos inesquecíveis de futebol, contou Abílio, entre risos: «Fomos jogar a Arcos de Valdevez, que não tinha perdido em casa essa temporada. Tínhamos que vencer e esperar que o Bragança não ganhasse em Fafe. Fiz mesmo tudo para que o Vila se mantivesse. Ganhámos 1-0, os miúdos já estavam a festejar no relvado, e foi pénalti para o Bragança na compensação. O guarda-redes do Fafe defendeu e mantivemo-nos por causa disso.»

Seguiu-se outra curta experiência no Varzim, onde teve «problemas com o capitão», e demitiu-se pois «viu que não ia dar certo». Seguiu-se um período de cinco anos de hiato onde Abílio seguiu outros caminhos, sempre ligado ao futebol e ao clube que representa atualmente, o Canidelo:

«Tive um ou dois convites nesses cinco anos em que parei, mas trabalhei como observador no Brasil à procura de talentos, uma espécie de olheiro, trouxemos para Portugal alguns jogadores como o Baiano, Jorginho e Vandinho. Ia e vinha ao Brasil. Ao mesmo tempo fui presidente do Canidelo. O presidente da junta pediu-me e correu bem. Subimos de divisão para a Elite, nunca tínhamos lá estado. Trouxe o Rui Amorim [atual treinador do Leiria], que foi meu adjunto, e fui ajudando-o com a minha experiência. O envolvimento da freguesia também foi muito bom, começamos a ganhar e correu muito bem.»

Mas o gosto pela bola trouxe Abílio de volta ao banco: «Tive que voltar, é uma paixão e um gosto muito grande pelo futebol. O Boavista veio-me chatear, e treinei os juniores vários anos. Sou do Boavista desde pequenino.»

Depois de um novo período afastado, surgiu o convite do Canidelo, clube da terra, projeto que assumiu, apesar das dificuldades de treinar um clube não-profissional. Ainda assim, a subida à Divisão de Elite está bem perto: «Temos imensas dificuldades, é difícil até planear os treinos: alguns jogadores não vêm, ou chegam atrasados. Incutimos algumas regras e temos gerido bem as coisas. O Foz está praticamente subido, e o Vilanovense está 4 pontos atrás de nós. Tivemos dois jogos menos bons agora e o «Vila» está com esperanças de nos ultrapassar, mas para a época que fizemos, não queremos deixar fugir.»

«A subida não era o objetivo inicial, isso era criar uma equipa que os canidelenses se orgulhassem, mas as coisas foram surgindo, domingo a domingo, e queremos subir. Há boas equipas na divisão, mas têm dado algumas abébias. Foi difícil, tive que criar o plantel do zero, só fiquei com três ou quatro jogadores do ano passado, mas temos levado as coisas a bom porto, faltam quatro finais», adicionou.

Questionado sobre a razão de uma cidade tão grande como Vila Nova de Gaia não ter nenhuma equipa a disputar os dois principais escalões do futebol português, Abílio justificou a falta de planeamento: «Falta um projeto nestas equipas. Vejo que o Canidelo tem condições para crescer, mas tem que passar pela formação. Tenho cinco miúdos em idade de júnior inscritos, mas falta alguma qualidade, essa necessidade tem que vir de trás.»

«Há muita rivalidade em Gaia, são demasiados clubes. Aqui num raio de um quilómetro temos o Coimbrões, Candal e nós. Para haver um clube a chegar mesmo longe teria de ser do zero, um projeto para subir por aí acima, um símbolo da cidade. Pela população que temos, podíamos perfeitamente ter um clube desses, era um desejo do antigo presidente, o Luís Filipe Menezes, mas assim é difícil», adicionou.

Abílio admite que os dias são cansativos, mas quem corre por gosto, não cansa: «De dia estou aqui na pastelaria, mas estou a pensar no futebol, está dentro de mim, sempre a pensar naquilo. Faço o necessário aqui, e à noite vou treinar. Chego a casa às 10 ou 11, e de manhã estou aqui outra vez. Mas é um gosto, dá-me um gozo tremendo, e eu digo isto muitas vezes aos jogadores: se não fizermos as coisas com gosto, nem vale a pena virem.»

Questionado sobre o futuro, Abílio mostrou que está preparado para qualquer desafio: «Não penso no futuro. Era bom que o Canidelo tivesse o projeto para subir, mas a Divisão de Elite vai ser difícil, a qualidade lá é muito boa e é preciso muito planeamento. Vejam o que aconteceu com o Sandim, subiu à última da hora e agora estão muito mal. Não quero que isso nos aconteça.»

«O meu futuro a Deus pertence, não há treinadores de primeira ou segunda, há treinadores competentes ou incompetentes, e eu orgulho-me de saber que sou um dos competentes, agora as oportunidades podem surgir ou não. Não sei o futuro mas sinto que consigo lá chegar, não tenho dúvidas disso, nem medo desses desafios», rematou.

A afirmação no Rio Ave do filho João, que «chuta melhor que o pai»

Filho de peixe sabe sempre nadar. Tema inevitável da conversa com o Maisfutebol foi o sucesso do filho, João Novais, ao serviço do Rio Ave: «Tudo o que ele tem conseguido é mérito próprio. O pai não influencia nada. A única coisa que fiz era levá-lo comigo quando era pequeno para os balneários, mas a jogar, nunca influenciei. Sabe o que é ser um atleta de alta competição, o que pode e não pode fazer.»

Abílio acredita que o filho sempre teve qualidade, só faltava a oportunidade: «As coisas estão a correr-lhe bem, a qualidade está lá, precisava era das oportunidades. Não quero por o trabalho de ninguém em causa, mas um atleta precisa de uma sequência de jogos seguidos para ganhar ritmo, não pode sair só porque correu mal uma vez. O Miguel Cardoso deu-lhe essa confiança e o resto veio naturalmente.»

O atual treinador diz que vê semelhanças entre os dois, exceto no remate: «Vejo um pouco dele em mim: a visão, já sabe o que tem de fazer antes de a bola lhe chegar, nos livres e tudo, mas ele remata com mais força, muito mais potência. Falam muito da forma como o Ronaldo remata, com a parte de cima do pé, mas eu já rematava assim nos anos 90. Mas que o João chuta melhor que o pai, isso sim.»

«Tem condições para chegar muito longe, com trabalho, e caso chegue a oportunidade. É natural que as coisas vão surgindo, tem potencial para um clube com maior dimensão. Hoje em dia já me conhecem como o pai do João Novais. Antigamente ele é que era o filho do Abílio, mas isso é bom para ele», terminou Abílio, entre risos.

Entre gerir a pastelaria de que é dono e os relvados, Abílio está muito perto de relançar a sua carreira como treinador e assegurar a subida à Divisão de Elite com o SC Canidelo, clube que outrora conduziu ao mesmo feito, mas na direção da clube gaiense.

Artigo original: 03/04/18, 23h50