Domingo à tarde é uma rubrica do Maisfutebol, que olha para o futebol português para lá da Liga e das primeiras páginas. Do Campeonato de Portugal aos Distritais, da Taça de Portugal aos campeonatos regionais, histórias de vida e futebol.
«Quando cheguei a Portugal foi difícil aprender português e sabe porquê? No Algarve só falavam inglês»
Quando aos 16 anos trocou a Geórgia por Portugal, Avtandil já tinha em mente o sonho de ser futebolista.
Os amigos, as brincadeiras de rua, as aventuras da adolescência, tudo isso ficou para trás em nome de um objetivo maior.
Em Tbilisi a vida era pacata. Terra de costumes e tradições vincadas, com natureza, sol, praia, um pouco de história em cada esquina, e uma paixão comum a todos os habitantes: o futebol.
Lá o futebol está sempre em primeiro, as pessoas só falam disso, nas ruas é só camisolas das equipas. A liga vai evoluindo aos poucos, porque o fator económico é importante, mas quando joga a seleção é uma festa enorme. No râguebi os estádios também enchem, porque é uma das melhores equipas do mundo. Isso também traz alegria ao meu povo»
À pergunta lançada pelo Maisfutebol, Avtandil respondeu com traços de emoção na voz, essa que finalmente já se deixou entrelaçar num português quase perfeito.
Aos 25 anos, nove após ter deixado a cidade-natal, Avto - diminutivo adotado em Portugal para facilitar a coisa – voltou a ser importante em mais uma época do Gil Vicente e recordou a vinda para Portugal como se tivesse sido ontem.
Os primeiros toques foram dados nas ruas da capital georgiana, nas habituais peladinhas de rua, de bairro por vezes, com pedras a fazer de postes. Quem nunca…
Desde os 6 anos que alinhava nas escolinhas do Dínamo Tbilisi, um dos «grandes» da Geórgia, mas o tempo e as oportunidades começavam a estreitar, pelo que mudou de ares.
Decidiu, então, sair de casa e rumar a Lagos, onde o pai trabalhava há algum tempo.
«Estava bem em Tbilisi, mas vim porque queria jogar futebol e pensei que em Portugal teria mais oportunidades de me tornar profissional», explicou.
A adaptação foi fácil, garantiu. O sol e o mar que deixara na capital georgiana reencontrou na cidade algarvia.
Pensei que tinha de começar por algum lado e consegui um lugar no Esperança de Lagos. Aprendi muitas coisas lá e fui criando amizades. Não sabia falar português, mas no Algarve falavam muito inglês. De português só aprendia as asneiras. Típico (risos)»
Do «portunhol» à mãozinha de Deus
O jovem extremo não tardou em dar nas vistas ao serviço do Esperança, ao ponto de os espanhóis do Getafe terem proposto um período à experiência na equipa de juniores. Devido ao «limite de estrangeiros» não conseguiu ficar no país vizinho, regressando à «segunda casa».
Mas não veio de mãos a abanar.
«É engraçado porque, enquanto estudava em Espanha, aprendi muito bem o espanhol. Depois, quando voltei a Portugal, entendia tudo o que as pessoas diziam. Foi a partir do espanhol que aprendi a falar português, mesmo sem aulas. Os espanhóis têm a mania de dizer que não percebem português. Impossível, as línguas latinas têm muitas parecenças», afirmou.
Já a dar uns toques na língua de Camões, Avto rumou ao Juventude de Évora, «um capítulo bonito» na vida do jogador, conforme explicou. É que, para além do gosto pelo futebol, o georgiano não resiste ao gosto pela comida.
«Na Geórgia, a gastronomia é boa, mas não sabia que a comida alentejana era tão boa. Fiquei maluco! E aquele sotaque…adorei viver em Évora. Ainda assim, o meu prato preferido é francesinha, sem dúvida»
De Évora partiu para Oliveira de Azeméis. O projeto da UD Oliveirense pareceu-lhe o ideal para prosseguir a ascensão na carreira. Tal como o treinador.
«Tinha 19 anos. O João de Deus observou-me e integrou-me. Sempre achou que podia chegar a um nível muito superior. Tudo o que aprendi a nível profissional foi com ele. Fizemos um campeonato muito bom, mas sabia que podia dar mais», indicou.
O golo nunca foi o seu forte, verdade seja dita. Até o próprio o reconhece. Ainda assim, tem tido sempre um papel ativo nas equipas por onde passa. Depois de quase 50 jogos na época de estreia pela UD Oliveirense, Avto não chegaria a cumprir um mês da época seguinte.
Isto porque o sonho de sempre concretizou-se.
«Só se ouvia falar do Mateus, Mateus, Mateus…»
João de Deus, o treinador que lhe estendeu a mão em Oliveira de Azeméis, iria voltar a dar-lhe um gostinho idêntico.
«Com 21 anos já queria muito jogar na I Liga. Sentia-me preparado, mas tinha contrato com a Oliveirense. Iniciei o segundo ano lá, mas no último dia de transferências falaram-me no Gil Vicente, que era de primeira. Sei que foi mesmo no último minuto do último dia de mercado, tudo a correr. E consegui», recordou.
O objetivo que trouxe para Portugal estava finalmente cumprido. Em 2013, no Gil Vicente, o extremo mostrou-se nos grandes palcos. A estreia fez-se diante do FC Porto e deixou antever coisas boas.
A época até correu de feição aos homens de Barcelos, que terminaram no 13.º lugar.
A temporada seguinte, contudo, foi bastante diferente. Uma mudança de treinador, já com a época a decorrer, culminou na despromoção à II Liga.
«Assinei por quatro épocas, sei que na Liga podia chegar a outros níveis. No segundo ano, com a descida, fiquei muito em baixo, foi uma das minhas piores fases. Depois de 50 jogos na Liga, foi triste pensar que tinha de voltar à II Liga. Tinha ido à seleção, tinha clubes interessados e depois parece que ruiu tudo. Mas depois dei a volta. Queria continuar a mostrar o meu valor», contou.
Como se não bastasse a dor da descida, no Gil Vicente pairou sempre o fantasma do famigerado “Caso Mateus”.
Só se ouvia falar do Mateus, Mateus, Mateus. Acho ridículo andarmos há quase uma década nisto. As pessoas sofrem muito. Começámos a época com o cenário do possível regresso e ficámos entusiasmados, mas depois enrolou-se tudo, foi uma tristeza. Sei que se vai fazer justiça. É um clube com condições para estar na I Liga, mas tem de lutar para isso e subir, em vez de esperar por uma decisão. Passei por muito no Gil: alegrias, tristezas, descidas de divisão. Deu-me muito e vou guardá-lo no meu coração»
«Tenho vários interessados na I Liga»
O discurso acerca do Gil Vicente parece antever uma saída quase certa daquela que se tornou uma das referências do clube nos últimos quatro anos.
Embora não tenha afastado a hipótese de permanecer no clube, Avto assumiu que tem vários interessados, uma vez que se trata de um jogador livre.
Há vários interessados na Liga e no estrangeiro, mas sem propostas. Gostava de jogar num clube com um treinador que não tenha medo de jogar à bola, onde se lute por objetivos como a Liga Europa. Sei que posso chegar a um nível superior. Enquanto estive na Liga não tive problemas em assumir isso e sei que é o momento certo para chegar mais alto»
Aos 25 anos, Avto disse estar à espera de um salto que o volte a colocar de novo sob os holofotes de outrora e, com isso, regressar à seleção da Geórgia.
«Na II Liga não há tanta visibilidade, nem que seja porque a maioria dos jogos não é transmitida na TV. Enquanto estava na Liga era quase sempre chamado à seleção, mas isso mudou. Adorava poder voltar a representar o meu país», confessou.
Por agora, o extremo disse «aguardar com calma» o que o futuro lhe reserva.
«Adoro o jeito do Brahimi jogar, inspira-me muito. Não marco muitos golos, mas faço muitas assistências. Sou um jogador de equipa. De cabeça não sou muito forte, confesso (risos), e às vezes dizem que tenho de ser mais egoísta, mas com o tempo ganha-se essa experiência. Quem sabe se um dia não jogo com esses craques? O futebol dá muitas voltas...»
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