Domingo à tarde é uma rubrica do Maisfutebol, que olha para o futebol português para lá da Liga e das primeiras páginas. Do Campeonato de Portugal aos Distritais, da Taça de Portugal aos campeonatos regionais, histórias de vida e futebol.

Não era preciso dizê-lo. Afinal de contas, o contacto do Maisfutebol deve-se precisamente à temática do título: golos.

Nome: Yaggo Vitorino Silva Gomes.

Profissão: sniper no Castrense, da Série E do Campeonato de Portugal.

O avançado brasileiro foi uma das figuras da competição no último fim de semana com um «poker» anotado na goleada por 6-0 da equipa de Castro Verde ao Estrela Vendas Novas.

Certo. Golos até pode ser a praia de Yaggo. Mas assim tantos de uma assentado é coisa a que não estava habituado até agora. «Foi a primeira vez que marquei quatro golos num jogo. Já tinha marcado três golos várias vezes, mas isto nunca me tinha acontecido.»

1-0, 3-0, 4-0 e 5-0: a marca que deixou no jogo, quase toda com aquela ginga canarinha de quem diz tratar bem a bola e inspirar-se em vídeos de Ronaldo Fenómeno e de Neymar.

Vamos então aos golos. «O primeiro foi por volta dos 10 minutos: houve um cruzamento, o meu colega não cabeceou e a bola sobrou para mim.»

Era só o princípio de uma tarde inspiradíssima no interior do Baixo Alentejo. «Já depois do 2-0, no final da primeira parte, um colega isola-me, eu finto o guarda-redes e faço o 3-0.»

Em frente.

«No início da segunda parte ganho a frente ao central, fico isolado e faço o golo. No 5-0, o central tenta fintar-me, eu recupero a bola, finto o guarda-redes e marco. Foram três golos a fintar o guarda-redes. E não fiz o jogo todo: saí a 10 minutos do fim para os aplausos», diz com a compreensível dose de orgulho na voz do outro lado da linha.

Aos 24 anos, Yaggo Gomes já leva mais de uma década em Portugal, tempo suficiente para que o sotaque de terras de Vera Cruz já tenha desaparecido em parte. Aterrou em Portugal com 13 anos e radicou-se no Algarve, poucos meses depois do pai ter cruzado o Atlântico em busca de um futuro melhor.

Yaggo, que no Brasil chegou a tentar a sorte num torneio de captações no Flamengo – «aquilo era outro nível», reconhece – esteve dois anos impedido de jogar em Portugal por causa de questões relacionadas com a documentação. Aos 15 estreou-se pela segunda equipa de juvenis do Farense. «Fiz um hat-trick na estreia. Três hat-tricks em três jogos seguidos», emenda.

Não foram tempos fáceis, recorda. Logo após o início auspicioso foi suspenso quatro meses quando se preparava para ser lançado na principal equipa de juvenis. Yaggo não consegue explicar ao certo o que se passou: «Deve ter sido para verificar a idade ou algo assim», conta.

Depois da passagem algo turbulenta pelo Farense seguiu-se o Louletano. Foi lá que completou a formação e onde se estreou como sénior. Diz que facilitou nesse período de transição.

«Saía à noite: aquela coisa de miúdo, 18 anos... Não tinha o mesmo compromisso.»

«Claro, coisas próprias da idade», devolvemos.

Seguiu-se Lagoa, Faro e Benfica, Lusitano VRSA e Castrense, clube onde está desde a época passada e que ajudou a regressar aos nacionais com 18 golos. Yaggo lembra que transporta com ele nas chuteiras o ADN do golo desde sempre. «Fazer golos é a minha praia, está a perceber?»

Perfeitamente.

«Tirando o Lagoa, onde facilitei, sempre fui o melhor marcador em todas as equipas por onde passei. Sempre fiz bastantes golos e ontem [domingo] achei que estava muito fácil.»

Foto: reprodução do Instragram pessoal de Yaggo Gomes

Os quatro remates certeiros de Yaggo Gomes no jogo com o Estrela Vendas Novas acabaram por surgir no primeiro triunfo do Castrense nesta edição do Campeonato de Portugal. Três pontos que tiraram a equipa do Baixo Alentejo da posição de «lanterna vermelha» da prova.

Se os objetivos coletivos passam pela permanência no campeonato num ano difícil de transição e no qual descem seis equipas aos distritais, as metas individuais de Yaggo são mais ambiciosas: tornar-se profissional no prazo máximo de dois anos. «Agora estou a conciliar o futebol com um trabalho no Aquashow [n.d.r.: parque aquático de diversões em Quarteira], mas vou ter de passar a dedicar-me só a isto nesta época porque não tenho muita disponibilidade. Sempre disse à minha mulher, que é portuguesa, que o meu sonho é conseguir o nosso sustento e o do nosso filho dessa forma.»

Um sonho legítimo que aparece anos depois de gente ligada ao FC Porto o ter sondado por duas ocasiões, primeiro no Farense e, depois, no Louletano, quando dava cartas no futebol jovem algarvio.

«Na primeira vez falei com um senhor, que me perguntou se eu aceitaria ir jogar para o FC Porto. Respondi que claro que aceitaria. Dei-lhe o número do meu pai, mas nunca devolveram a chamada. Mais tarde voltei a ser sondado. Disseram que voltavam a ligar para marcar uma reunião, mas lembro-me de um dia em que estava num almoço com uns colegas e eles mostraram-me uma notícia de um jornal: um rapaz de 93 e avançado, como eu, ia do Manchester United para o FC Porto: percebi logo que já era.»

A porta ameaçou abrir-se por duas vezes. Manteve-se fechada, é certo, mas Yaggo recorda sem amargura esses episódios. «Nunca fiquei frustrado. Estou tranquilo, mas ainda acredito que um dia vou conseguir chegar onde quero. A um grande clube? Nããão! Teria de passar muitas metas para chegar aí. Basta ser profissional: o meu objetivo é mesmo ser profissional da bola.»

Quem sabe a porta não volta a abrir-se, Yaggo.

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