Domingo à tarde é uma nova rubrica do Maisfutebol, que olha para o futebol português para lá da Liga e das primeiras páginas. Do Campeonato de Portugal aos Distritais, da Taça de Portugal aos campeonatos regionais, histórias de vida e futebol.
«Dzhamal, hoje jogas de início»
Quando o jovem ouviu estas palavras do treinador… provavelmente não entendeu nada.
Recém-chegado da Rússia, onde começou a dar os primeiros passos nisto de jogar futebol, Djamal, assim é a pronúncia correta, não percebe português, e domina mal o inglês.
Há quem diga que o futebol é uma língua universal, mas este faz questão de ter sempre quem traduza por perto, como foi o caso nesta entrevista.
E ainda bem, porque isso ajuda também o outro lado. Dibirgadzhiev, só o apelido é quase um trava-línguas.
Veio para Fátima rotulado de jovem promessa, mas sem promessas feitas. Nunca conviveu bem com isso. De que adianta ser eterna promessa se depois outros valores falam mais alto?
No Anzhi foi melhor marcador nas camadas jovens, mas na equipa principal nem vê-lo. Volta e meia lá vinham as estrelas roubar-lhe o sono e o sonho.
Samuel Eto’o. Vá lá alguém competir com ele por um lugar no ataque.
Até um português lhe estragou os planos, mas no final virou amigo, conforme explicou ao Maisfutebol.
Ainda tenho muitas recordações do Hugo Almeida, tenho o contacto e sou amigo dele»
Não foi de estranhar, portanto, a decisão de mudar de ares. O Anzhi aceitou a saída do avançado para o Fátima, mas apenas por empréstimo.
«O Anzhi fazia grandes investimentos, mas agora está apostado na formação. O Pavel Verba (treinador) disse-me que para ser titular na equipa principal precisava de continuar a trabalhar e a provar o meu talento. Tinha a possibilidade de ir para outras equipas da primeira liga russa, mas preferi o Fátima, por ser um projeto diferente e com futuro», indicou.
Ao chegar à sua nova casa, a primeira surpresa. Horas antes tinha deixado Makhachkala, capital da República do Daguestão, onde se situa uma das maiores mesquitas da Rússia.
Aterra em Portugal e depara-se com outro edifício imponente, este com uma cruz no topo.
«Fui visitar o Santuário de Fátima, porque toda a gente falava nisso. Mas o facto de ser uma cidade virada para a religião não me incomoda, eu respeito e as pessoas respeitam-me, têm sido simpáticas e o ambiente é muito bom», sublinhou.
Coincidências à parte, a única coisa que Dzhamal pediu aos deuses foi uma oportunidade.
E ela surgiu.
O milagre que não permitiu atrasos
Apesar de não ser primeira opção, acabou por ser abençoado com a ausência do habitual titular Pedro Emanuel, castigado para esse encontro com a Naval, na última jornada da Serie E do Campeonato de Portugal.
Pela primeira vez seria titular e, depois de ouvir as palavras do técnico João Henriques (traduzidas), estaria longe de imaginar aquilo que iria acontecer em campo.
Então qual é o nosso lugar aqui n…..gooooooolo!
Ainda alguns se acomodavam nas bancadas e Dzhamal dava já início ao espetáculo, com um golo logo aos 3 minutos. Mania de chegar atrasado!
Depois o massacre, ou o recital, tantas foram as vezes que se gritou golo, em coro, pelo estádio.
Dois, três, quatro, cinco, e ainda o seis. Aos 75 minutos, o endiabrado avançado somava meia-dúzia de golos. Feito único na ainda curta carreira.
Foi a primeira vez que fiz tantos golos num jogo, mas fiz 35 na época passada. Estou muito feliz. Antes do jogo só pensei que um ponta de lança tem de fazer golos para ajudar a equipa. Seis golos… no futebol tudo é possível»
Como tudo mudou. Em apenas noventa minutos passou de segunda opção para melhor marcador da série, com mais um que o nosso conhecido Adul Seidi (que marcou nesta jornada também) e com o dobro de golos do seu colega, embora rival, Pedro Emanuel.
Para Eto’o ver!
Os posters são de Shevchenko mas no PC só bomba Raúl
A infância no Daguestão foi como o de tantas outras crianças. O interesse pela bola surgiu cedo, nas peladinhas na escola ou na rua.
Por vontade do pai, aos seis anos partiu para a capital Moscovo, quase dois mil quilómetros de distância, para ingressar na academia do Torpedo.
O frio gelou-lhe o corpo, mas não a alma. Essa manteve a mesma chama.
Agora com 20 anos acredita que pode chegar ao mesmo patamar de outros, referências pelas quais guia o seu trabalho.
O meu ídolo é o Andriy Shevchenko, mas neste momento identifico-me com o Lewandowski. Ainda assim, pelo que vejo nos vídeos, acho o meu estilo de jogo mais parecido com o do Raúl González»
Dzhamal sonha alto, portanto. Talvez porque se tenha habituado a ver as coisas desse ponto de vista, lá no alto dos seus 1,90m, ou simplesmente porque tem fé. E haveria melhor sítio para isso?
Gostava de ser o melhor marcador da época. Estou aqui para trabalhar e ajudar o Fátima a chegar o mais longe possível. No futuro gostava de jogar na Liga dos Campeões»
Lá ao fundo ouve-se o sino do Santuário, é hora de treino, de afinar a pontaria, porque um golo muda tudo.