Domingo à tarde é uma nova rubrica do Maisfutebol, que olha para o futebol português para lá da Liga e das primeiras páginas. Do Campeonato de Portugal aos Distritais, da Taça de Portugal aos campeonatos regionais, histórias de vida e futebol.

Único.

Em semana de Taça de Portugal, um golo que ficou na história da prova e na memória de uma cidade.

E aí permanece, intocável para aquelas gentes.

Passaram quase 14 anos desde que Cílio Souza gelou a Luz com uma bomba que por pouco não rasgou as redes da baliza do Benfica.

Nuno Santos nem percebeu o que acontecera, mas atirou-se na mesma. Parecia aquele tipo da equipa da praceta que se limitava a meter o pé mesmo sabendo que isso não adiantava nada, só para justificar a escolha na dramática fila antes das peladinhas.

Mas não havia nada a fazer, de facto.

Foi o golo mais bonito, pela notoriedade que me deu. Nessa manhã tinha dito ao meu colega de quarto que iríamos vencer por 1-0, comigo a marcar o golo de penalti. Afinal foi de bola parada, mas não de penalti (risos). Às vezes ainda ponho a rodar aqui em casa a cassete. O meu filho adora. É único»

Foi com nostalgia na voz que Cílio, o tomba-gigantes do Gondomar, recordou ao Maisfutebol o momento mais alto da carreira.

O sonho vespertino do brasileiro concretizou-se e virou pesadelo para o Benfica, em particular para Jesualdo Ferreira, despedido depois desse encontro, já que vinha «tremido» de uma derrota com o Varzim.

Mas isso já lá vai.

Nunca lhe pesou, confessa, nem mesmo hoje.

Pesam-lhe mais os anos. Pelo menos era o que pensava até aquele telefonema.

Ia pendurar as botas, mas voltou para fazer inveja a Totti

Aos 40 anos, Cílio Souza ainda continua para as curvas. E foram tantas as que trilhou, que acabou por regressar a casa, por assim dizer.

Numa altura em que já pensava pendurar as botas, um convite do recém-promovido Beira-Mar fê-lo mudar de opinião. E é nos distritais que continua a mostrar qualidades.

Diz que é uma espécie de Totti de Aveiro, mas melhor.

Na época transata fez 30 golos. Neste já leva três nos seis jogos realizados, o último dos quais na jornada passada...como defesa central.

Devido às várias lesões no plantel, o treinador levantou essa possibilidade e Cílio aceitou. Parece que o argumento foi demasiado convincente.

«Não é novidade, mas fiquei surpreendido à mesma, porque fiz toda a minha carreira como ponta de lança. Mas como já estou habituado a andar próximo dos centrais, sabia mais ou menos os caminhos que eles faziam. A experiência também ajuda, porque sei cortar os caminhos ao adversário, sem precisar de andar a correr», explicou.

Cílio (primeiro da esquerda no Beira-Mar) foi titular em quase todos os jogos e como capitão de equipa

Acasos do destino.

«Engraçado como o meu irmão Luizão também começou como avançado e depois recuou para central, até hoje. Foi pena até não ter optado por essa posição mais cedo, senão podia ter seguido outros caminhos», revelou.

Mesmo jogando numa posição quase oposta à sua de origem, Cílio não se mostra preocupado. Antes, prefere ver esta adaptação como um exemplo para os mais jovens.

Como o mais velho da equipa, tenho de dar o exemplo aos mais novos. Isto é bom para lhes mostrar que, no futebol, por vezes é preciso passar por coisas assim para se conseguir ver o futebol com outros olhos. É preciso ajudar a equipa. Eu até a guarda-redes jogo se for preciso»

Afinal de contas, isto do futebol não é um mar de rosas.

E Cílio sabe-o melhor do que ninguém.

De madrugada troca a bola pelas máquinas

Assim que o 'mister' assinala o final do treino, Cílio começa uma nova vida.

Toma banho, muda de roupa, arruma as chuteiras e calça umas luvas.

O futebol não dá para tudo e é preciso arranjar alternativas. Para Cílio foi a fundição.

Atualmente trabalha numa fábrica ligada ao ramo automóvel, no turno da madrugada.

A solução possível para conseguir fundir o futebol à vida fora do campo.

Trabalho das onze da noite às sete da manhã. Só assim é possível conciliar tudo. E tem de dar! Os tempos não são fáceis e tem de fazer-se um esforço, é importante manter os trabalhos que consigamos durante o máximo de tempo possível»

A rotina não será fácil, de todo, mas a força de vontade tem levado a melhor. Até arranja tempo para outro passatempo, o futevolei.

Apesar dos 40 anos, Cílio mantém a frescura física para praticar outros desportos (Foto: Facebook pessoal)

Tudo em nome do amor, pela família, pela bola, por Portugal.

«Já me sinto mais português que brasileiro. Foi um país que me acolheu e deu tudo. Tenho até orgulho em falar português de Portugal. Sempre que posso tento falar, para as pessoas se identificarem, para não ser só mais um estrangeiro que passou por aqui e não tem amor pelo país», sublinhou.

E foi de facto num português já pouco açucarado que Cilio recordou a vasta carreira em terras lusas. Só clubes foram dez, entre os quais o Gafanha, adversário do FC Porto na tão querida Taça de Portugal.

«Gafanha a eliminar o FC Porto? Nada é impossível»

O Beira-Mar já saltou fora, roubando a Cílio a oportunidade de ser novamente tomba-gigantes, mas aos antigos colegas de equipa deixa o repto: nada é impossível.

O jogo para o Gafanha já seria difícil, jogando no Municipal de Aveiro mais difícil será. O campo é muito grande e as dimensões ajudam as equipas que gostam de ter posse de bola, como o FC Porto. Vai ser um jogo complicado para o Gafanha, mas nada é impossível. Se o Gondomar foi à Luz eliminar o Benfica…»

...e ele tinha sonhado com isso.