Domingo à tarde é uma nova rubrica do Maisfutebol, que olha para o futebol português para lá da Liga e das primeiras páginas. Do Campeonato de Portugal aos Distritais, da Taça de Portugal aos campeonatos regionais, histórias de vida e futebol.


«Tenho colegas surpreendidos que dizem ‘Então pá nunca fizeste tantos golos’!»

Há um Sócrates que brilha no Campeonato de Portugal e que em vez de filosofar em bancos de jardim, vai brilhando nos relvados.

Se o outro nasceu na Grécia e viveu da sabedoria, este é português e vive do futebol. Pelo meio houve outro que também encantou o mundo do futebol, mas não foi nesse que os pais de Sócrates Pedro se inspiraram para dar nome ao filho, atual extremo do Casa Pia e melhor marcador da série G do Campeonato de Portugal.

«Sócrates é mesmo o meu nome e foi dado apenas por causa do filósofo, mas não sei em concreto porquê...», começou por dizer.

Foi assim o início de conversa com um jovem que carrega um nome mundialmente conhecido, que tem em Cristiano Ronaldo o grande ídolo e que fez golos atrás de golos com Lucas João na formação.

Com 24 anos, mais um que o ponta de lança do Sheffield Wednesday, Sócrates ainda espera dar o salto e esta pode ser a época perfeita para isso. Em sete temporadas a jogar em competições seniores marcou 18 golos, 10 deles já em 2016/17.

«Não estava à espera disto, está a correr muito bem a nível individual, melhor que coletivamente», disse o goleador.

E aponta o motivo: «Este mister obriga-nos a jogar mais por dentro e isso faz com que eu apareça mais ao segundo poste, estou mais perto da baliza e assim mais perto de marcar golos.»

Se Sócrates está surpreendido, imaginem os colegas, treinador e staff que o contratou. Foram buscar um extremo neste defeso e trouxeram um goleador, que tem oito (outros dois foram na Taça de Portugal) dos 22 golos do Casa Pia no campeonato.

Os colegas brincam com a situação: «Tenho colegas espantados que dizem ‘Então pá nunca fizeste tantos golos’ e tenho outro, o Mário Costa, que diz que sou ‘feiticeiro’, que a bola vem sempre ter comigo.»

Os ponta de lança da equipa não se importam com o ‘roubo’ de função: «Reagem bem, o que interessa é a equipa marcar, não quem marca. O que importa é que temos quem marque.»

Para além do número de golos de Sócrates, há outro aspeto a realçar: «Em 10 golos, cinco são de cabeça.»

«Sempre fui bom de cabeça, mas não marcava tanto. Este ano as coisas têm corrido muito bem e estou a conseguir finalizar. Melhorei o posicionamento também.»

Mas antes de surgir nova pergunta, atirou: «Claro que tenho que ter colegas que metem bem as bolas (risos).»

Dos golos marcados esta época destaca o tento marcado ao Sintrense. O Casa Pia perdia por 0-2, reduziu antes do intervalo e nos minutos finais Sócrates fez o empate.

Neste momento, Sócrates é o melhor marcador da sua série e está a um golo do topo absoluto do campeonato de Portugal que pertence a Jorginho, Adul Seidi e Fábio Gomes, que têm nove golos. «Sinceramente não penso nisso, nunca estive nesta posição de marcar muitos golos. Penso mais coletivamente, mas se conseguir conciliar o individual com o coletivo vou tentar lá chegar.»

«Temos um grupo no Whatsapp, aquelas modernices...»

Sócrates Pedro fez a formação no Beira-Mar de Almada, o mesmo clube que mostrou ao mundo Lucas João.

Foi daquele clube que rumou ao Nacional da Madeira nos juniores e foi nesse momento que os dois se separaram.

Lucas João foi subindo gradualmente, está agora no Sheffield Wednesday e já é internacional A por Portugal. Sócrates ainda não conseguiu os mesmos palcos e representou o Olímpico do Montijo, o Cova da Piedade, o Oriental, o Tourizense e também teve uma pequena passagem pelo Interclube, de Angola.

«Sempre me revi nele, no futebol é preciso a estrelinha, ele teve. Eu joguei com ele e tenho esperança de chegar lá como ele chegou», explicou.

Apesar dos caminhos inversos, os dois não perderam uma amizade, que começou a ser construída pelos golos: «Ainda me dou muito com ele, temos um grupo no Whatsapp, aquelas modernices, e falámos quase todos os dias.»

O jogador do Casa Pia confessa o «sonho de jogar em Inglaterra, independentemente da divisão», já que isso é um sonho «para qualquer um» e Sócrates não foge à regra. Lucas João vive esse sonho, mas por agora está lesionado. «Vai recuperar bem», diz o amigo.

Dos tempos do Beira-Mar de Almada recorda essencialmente uma coisa: «Assim de repente, não me lembro de muitas histórias, mas lembro-me de muitos golos. Ele oferecia-me a mim e eu a ele, era uma alegria, é dos melhores com quem já trabalhei.»

Na altura Lucas João era o ponta de lança e Sócrates o extremo esquerdo, como atualmente acontece. Só que esta vaga de golos tem levantado dúvidas: «Éramos uma dupla, ele jogava no meio e eu na esquerda. Fazíamos muitos golos. Agora muita gente me tem perguntado onde tenho jogado, mas é sempre na esquerda ou na direita.»

Sócrates espera que estes golos contribuam para a «afirmação» de forma a conseguir chegar a profissional: «O futebol foi sempre a minha prioridade desde muito cedo, desde a base.»

Por isso, e por ser jovem, dedica-se a 100% com a esperança no que está para vir: «Não concilio futebol e trabalho porque sou daquelas pessoas que se faz alguma coisa é para fazer bem, acho que estar a conciliar iria ser demasiado desgastante e como ainda tenho o sonho de chegar lá acima é melhor assim.»

«O objetivo é para o ano ser profissional», revelou.

Um Sócrates que lê os livros de Cristiano Ronaldo

Cristiano Ronaldo despontou no Sporting na época 2002/03, quando Sócrates tinha 10 anos. Tornou-se um ídolo desde sempre, ao ponto de o fazer ler.

«Tenho dois livros sobre ele que foram prendas de anos, Os Segredos da Máquina e Sonhos Realizados. As pessoas sabem que para ler alguma coisa é sobre o Cristiano Ronaldo», explicou entre risos o goleador.

Sócrates vai buscar a inspiração ao ídolo, sobretudo na capacidade de perseguir o sonho: « Sempre fui muito trabalhador, se queremos alcançar os nossos objetivos temos que trabalhar muito para além do talento.»

«Festejos de Golos? Não, vou buscar inspiração noutras coisas», salientou.

O número preferencial na camisola é também o mesmo de Ronaldo, o 7, mas este ano não foi possível. «Já estava ocupado e decidi escolher o 11.»

Na época em que deixou de usar o 7, os golos apareceram. «É exatamente isso», disse por entre gargalhadas.

Uma passagem por Angola falhada... mas enriquecedora

Foto da passagem de Sócrates pelo Interclube (Angola)

Sócrates nasceu em Lisboa em 1992, mas tem também a nacionalidade angolana devido aos pais. Quis o destino que em 2015, o Interclube o contratasse, clube que na altura era treinado por Iliev.

Rumou a Angola, mas fracassou: «Primeiro estava no Cova da Piedade e eles dificultaram a saída. Cheguei tarde e lá tive alguns problemas com a documentação. Sou angolano, mas nasci cá e não tinha a documentação de lá e entretanto não fui inscrito. Voltei para o Tourizense.»

Apesar de ter estado sem competir durante meia época, tirou coisas positivas.

«O que mais me marcou na carreira foi a experiência em Angola, apesar de não ter corrido bem em termos pessoais, acho que cresci muito. Estive sem os pais, pela primeira vez longe da minha família, marcou-me.»

Sobre o futebol no Girabola, notou diferenças: «É muito mais físico, não mais rápido, mas correm mais. Para além da temperatura, quase sempre 30 graus às horas dos jogos. É muito complicado.»

Pelo facto de ter dupla nacionalidade pode representar os Palancas Negras, mas ainda não surgiu nenhum convite: «Se for abordado nesse sentido seria bom para mim, não fecho as portas a nada. Como português preferia representar a seleção portuguesa, mas não fecharei as portas a nada.»

Sobre esta temporada, Sócrates quer continuar a somar golos e ajudar o Casa Pia a ficar nos dois primeiros lugares da série G, que darão acesso à fase de subida à II Liga. Neste momento, a equipa é quinta classificada com 17 pontos, a cinco do segundo lugar quando faltam jogar oito jogos da segunda volta da fase regular.

Depois do filósofo, do craque brasileiro e do político temos um Sócrates goleador a brilhar no mundo do futebol. Se pode chegar ao topo?

«Só sei que nada sei».

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