FOTOS: Ricardo Jorge Castro

Domingos Paciência em grande entrevista ao Maisfutebol. Poucos dias depois de completar 50 anos, o antigo ponta-de-lança abre o coração e o baú de memórias. Ele é o sexto melhor marcador de sempre do FC Porto e o último português a ganhar a Bola de Prata.

Os primeiros dias nos seniores, as brincadeiras de balneário, as maluqueiras de Lima Pereira e Branco, a genialidade de Rabah Madjer e a recuperação de uma velha reportagem com a TVI na Feira Popular. 

Tudo numa conversa em frente ao rio Douro, num banco do jardim do Passeio Alegre. 
  

PARTE 1: «Não tinha medo de errar e resolvi três Sporting-Porto»

PARTE 2: «No Sporting não tiveram paciência comigo»

PARTE 3: «Madjer já era jogador de playstation há 30 anos»

Maisfutebol – 21 de novembro de 1987. Diz-lhe alguma coisa a data?
Domingos Paciência –
A minha estreia nos seniores. E num peladão! Nunca pensei estrear-me pelos seniores do FC Porto num pelado. Jogo de taça, em Moura, com o campo a abarrotar de gente. Um jogo marcante. Juary, Raudnei, Jaime Pacheco… tenho o prazer de dizer que cresci com uma geração que me ajudou muito. Eu tinha 18 anos e muitos eles tinham 32/34 anos. Tive a sorte de jogar muitos anos com o capitão João Pinto e fui o sucessor dele no papel de capitão. Adorei crescer com tantos monstros sagrados. Inácio, André… As gerações entrelaçavam-se e era fácil passar a mensagem, a tal mística.

MF – Como se transmitia essa mística? Não era só no relvado.
DP –
Havia convívios, muitos convívios, à mesa. Não posso contar tudo [risos]. Eu corro por ti e tu corres por mim. Era esse o lema. Eu e o Vítor Baía só bebíamos coca-cola, mas para estar à mesa com aqueles senhores tivemos de começar a beber um copinho de vinho de vez em quando. Tinha de ser. Não podíamos chegar ali, sem fazer nenhum jogo pelo FC Porto, e achar que éramos iguais àqueles campeões.

MF – E como é que esses campeões recebiam um miúdo de 18 anos no balneário?
DP –
Bem, só de lembrar que nesse grupo estava o meu ídolo de infância, o Frasco… já está a imaginar, não é? Ele era de Leça, da minha terra, adorava-o. Tinha uma coisa única, a forma como ele guardava a bola. Era um globetrotter, um tecnicista. O Frasco recebeu-me de braços abertos, tinha uma postura excecional. Até hoje, aliás. Adorei conhecê-lo e jogar com ele. Alguns aproximaram-se de mim, como o Jaime Pacheco também. Ficávamos no fim dos treinos a rematar à baliza. Ele levava-me a casa dele, puxou muito por mim.
 

MF – E a atmosfera dentro do balneário. Consegue revelar um bocadinho?
DP-
As brincadeiras entre o Frasco e o Lima Pereira, meu Deus [risos]. Esses dois sempre pegados, depois o Madjer, o Laureta… Dava um livro e se calhar vai dar. O senhor José Luís, o massagista, viveu todas as gerações, tem histórias sem fim. Ele tem mais de 80 anos e continua lá, viveu tudo. O Zé Luís faz parte da mística, as brincadeiras com ele eram fabulosas.

MF – Conte uma ou duas dessas brincadeiras.
DP –
Ele estava a massajar o Madjer e o Madjer detestava agulhas, tinha verdadeiro pânico. De repente aparecia o Lima Pereira, espetava-lhe uma agulha na perna e o Madjer virava-se ao Zé Luís. Era espetacular [risos].

MF – O Lima Pereira era o mais brincalhão?
DP –
O Lima e, mais tarde, o Branco. Um maluco fantástico. Nós encontrávamo-nos no Café Estádio e numa manhã o Branco aparece de sobretudo e sapatos de vela. Olhávamos para ele e perguntávamos… ‘onde dormiste?’ E ele: ‘Em casa’. ‘Diz a verdade!' ‘Em casa, quer ver?’ Abria o sobretudo e por baixo estava de pijama [risos]. O Branco era o tipo que nos estágios deitava-se de fato de treino e acordava de fato de treino, exatamente no mesmo sítio. Uma figura.

MF – E não era mau a bater livres.
DP –
Ele e o Geraldão foram os melhores batedores de livres que conheci. Aliás, num dos anos nós somos campeões com os livres deles, as faltas conquistas por mim e os 12 penáltis do Demol. O Artur Jorge pedia-me para ir para cima deles e ganhar faltas. E depois utilizávamos ‘a bomba e o elevador’. A ‘bomba’ era o Branco e o ‘elevador’ era o Geraldão. Jogávamos bem e resolvíamos assim os jogos. Contra o Sporting nas Antas, por exemplo, e em Alvalade. O Fernando Mendes [lateral do Sporting] passou pelo Geraldão e disse ‘olha, o Eusébio’, a pegar com ele. O livre era pouco depois do meio-campo. O Geraldão chuta, a bola baixa, bate na frente do Vital e passa por cima dele.  

MF – Lembra-se de uma reportagem com a TVI na Feira Popular?
DP –
Ah, ah, ah, ah. Eu e o Rui Barros sentimo-nos mal. Foi tudo genuíno. Cantámos o Bicho e tudo. O Secretário todo torcido nos espelhos. Foi um dia bem passado. As nossas roupas, as gangas [risos].  

A famosa reportagem da TVI em 1996:

MF – O Kostadinov não aparece na reportagem, mas era um dos seus melhores amigos.
DP –
Falo com ele muitas vezes. Era um gajo muito calmo, muito tranquilo fora do campo. Lá dentro? Um animal, um bicho. Trincava, agressivo, chegava a ser porco com os adversários [risos].

MF – O Domingos falhou as finais de Viena e de Tóquio por pouco.
DP –
Sabe qual é a minha maior tristeza? Não aparecer nas fotos oficiais do plantel 87/88, a minha primeira época a cem por cento nos seniores. E não apareço porque nesse momento estava a ter exame de condução. Esse plantel é histórico, fomos campeões do mundo, ganhámos a Supertaça, a Taça de Portugal e somos campeões com 15 pontos de avanço sobre o Benfica. Fui convocado pela primeira vez para o campeonato num jogo em Elvas. E fiz o meu primeiro golo no campeonato ao Elvas, nas Antas. O Ivic foi extraordinário na forma como me lançou e até me meteu no 3-0 ao Benfica, nas Antas.

MF – O Domingos teve sempre companhia de luxo no ataque.
DP –
Fernando Gomes, Madjer, Paille, Mielcarski, Paulinho César, Baroni, Baltazar, Kostadinov, Jorge Andrade… Paulo Ricardo e Walsh logo no início, nas reservas. Todos os anos tínhamos quatro ou cinco pontas-de-lança. Comecei a pisar os calcanhares no ano de Quinito, em 88/89. Depois ele sai e regressa o Artur Jorge. Depois, há um jogo em que o Madjer e o Paille estão indisponíveis e o Artur aposta em mim e no Kostadinov. É nesse jogo contra o Dínamo Bucareste, nas Antas, que esta dupla arranca. Jogávamos em 4x4x2 e fizemos muitos estragos ainda com o Bobby Robson e o Carlos Alberto Silva.

FC Porto-Dínamo em 90/91: o nascimento da dupla Domingos/Kostadinov

MF – As movimentações do Domingos e do Kostadinov não eram típicas.
DP -
Era tudo trabalhado. Com a bola no corredor, um de nós fazia a aproximação ao portador e o outro fazia profundidade. Quando isso acontecia, a defesa tinha dificuldades. O adversário não sabia se me acompanhava para o jogo interior ou se fazia a cobertura de espaço nas costas, onde caía o Kosta. Éramos imprevisíveis, ano após ano.

MF – Foi colega do Rui Águas e do Dito, que vinham do Benfica. Foram bem aceites?
DP –
Não foi fácil para eles. A aceitação não foi simples. Vinham do Benfica… e entraram numa geração campeã do mundo, com jogadores de grande estatuto e experiência. Eu e o Vítor estávamos no meio e tentámos fazer a aproximação, falávamos com os mais velhos por causa disso. Dou-me bem com o Rui até hoje e sei que a vida dele no FC Porto não foi um mar de rosas.  

MF – Quando saiu do FC Porto optou pelo Tenerife. Porquê?
DP –
Estive para sair muitas vezes. O Artur Jorge quis levar-me para o PSG, o Jorge Mendes para o Milan, o José Veiga para o Inter… Depois tive uma lesão grave, o Jardel começou a fazer golos e eu senti que seria complicado jogar sempre no FC Porto. A proposta do Tenerife foi tentadora e o clube andava nos lugares europeus. Infelizmente o meu pai faleceu nessa altura, depois tive uma fratura no maxilar e foi difícil. Adorei jogar no Tenerife e viver em Santa Cruz, mas desportivamente não foi perfeito.

[entrevista originalmente publicada às 23h55, 10-01-2019]