FOTOS: Ricardo Jorge Castro

Domingos Paciência em grande entrevista ao Maisfutebol. Poucos dias depois de completar 50 anos, o antigo ponta-de-lança abre o coração e o baú de memórias. Ele é o sexto melhor marcador de sempre do FC Porto e o último português a ganhar a Bola de Prata.

Nasceu numa família pobre de Leça da Palmeira, um de oito irmãos. Aos 13 anos chegou ao FC Porto e só nessa fase passou a saber o que é comer bem. A amizade com Vítor Baía, os filhos João, Gonçalo e Vasco, a genialidade do colega Madjer, a tristeza no final da carreira e as lágrimas derramadas no adeus ao Euro96.

Tudo numa conversa em frente ao rio Douro, num banco do jardim do Passeio Alegre. 

PARTE 1: «Não tinha medo de errar e resolvi três Sporting-Porto»

PARTE 2: «O Madjer já era há 30 anos jogador de playstation»

PARTE 4: «Falhei a foto do plantel 87/88 por estar a tirar a carta»

Maisfutebol – Fale-nos dos primeiros anos da sua vida, em Leça da Palmeira.Domingos Paciência – O meu pai era pintor de construção civil e a minha mãe era conserveira. Trabalhava numa fábrica de conservas. O meu irmão mais velho foi o único que também fez carreira no futebol, mas a nível distrital. Chamavam-lhe Bierre, jogou no Pedras Rubras e no Foz. Tinha um pé esquerdo fabuloso, batia muito bem livres e cantos. Éramos oito irmãos, mas um morreu ainda antes de eu nascer. Aliás, ele tinha o meu nome, exatamente igual. Quando eu nasci, a minha mãe deu-me o mesmo nome: Domingos José Paciência e Oliveira.

MF – Sempre foi franzino, magrinho?
DP – Sempre, sempre. No FC Porto, com 13 anos, ainda me deram comida boa e vitaminas, mas nem assim [risos]. Era a minha fisionomia e sempre foi ao longo da minha carreira. Só nessa fase me comecei a alimentar bem.
 
MF – Quando é que se torna amigo do Vítor Baía?
DP – Por volta dos oito anos. O Vítor morava na rua de cima. Conhecemo-nos num jogo entre bairros. Começámos a falar, a dar-nos bem. A dada altura já jogávamos um contra o outro, um para um. Ele tinha a mania que era avançado e eu que era guarda-redes [risos]. Depois, o senhor Fernando Santos levou-nos da Académica de Leça para o FC Porto. Eu e o Vítor tínhamos 13 anos.


MF – Era o seu melhor amigo?
DP –
Sim, sim. Andávamos sempre juntos, andávamos com as nossas namoradas [risos], tínhamos uma vida gira. Fizemos durante muitos anos uma grande dupla.

MF – Na formação do FC Porto privou com o Costa Soares? Era o responsável por todos os escalões.
DP-
Privei, um grande homem! Os clubes precisam de pessoas assim. Frontais e frias a ensinar. Ele dizia o que era preciso dizer nos momentos certos. Tinha essa preocupação. Eu tinha medo de passar com a minha namorada à frente do Costa Soares. Anos depois, eu levava a mesma namorada a casa dele. Essa senhora tornou-se minha esposa. O que significa isto? A dada altura ele queria foco total no futebol. Jamais o esquecerei.

MF – Como era a sua vida na altura da formação do FC Porto?
DP – Vivia no centro de estágio e frequentei a escola até ao sétimo ano. Andei num colégio em Santa Catarina, o Júlio Dinis. Fiz o nono ano e depois desisti, porque aos 17 anos comecei a treinar com o plantel principal. Foi antes da final de Viena, por causa das lesões de alguns jogadores.   

MF – O Domingos era destro ou esquerdino? Sempre rematou bem com qualquer um dos pés.
DP – Eu era destro, mas sempre trabalhei muito o meu pé esquerdo. Aliás, os meus filhos, o Gonçalo e o Vasco, também são assim. Quando eles eram pequeninos eu ia ter com eles e dizia que só jogava futebol se eles chutassem apenas de pé esquerdo. Às vezes desistiam [risos]. É uma questão de coordenação. Eu batia livres e cantos de pé esquerdo, apesar de não ser esquerdino. E isso ajudou-me. Eu podia jogar em qualquer posição da frente e decidir de várias formas.

MF – Quem é mais parecido consigo no relvado? O Vasco ou o Gonçalo?
DP – O Vasco é mais esguio, mais repentista, mais rápido no drible. Tem coisas mais parecidas comigo. E eu longe de imaginar que ele se tornasse este avançado. Aos oito/nove anos era uma criança gordinha. Agora aos 18 anos ainda não tem o corpo completamente desenvolvido. Nem barba tem [risos]. É o único que vive comigo e com a minha esposa.

MF – O João é o único dos seus filhos que não é futebolista.
DP – É o que desfruta mais a vida [risos]. O João é a pessoa que eu gostava de ter sido se não tivesse sido jogador de futebol. Aproveita a vida, adora água, faz bodyboard. Trabalha, é formado em Desporto e acompanha os irmãos. Adora-os. Esteve comigo a trabalhar no Belenenses. Fazia a parte de recuperação e de trabalho específico físico individual. No futuro poderá voltar a trabalhar comigo.

MF – Foi colega do Madjer. Era de facto um jogador especial?
DP –
Era um jogador adiantado em relação ao seu tempo. Era jogador da playstation há 30 anos. As vírgulas, os remates, o jogo de cabeça… o melhor estrangeiro que passou pelo FC Porto.

MF – O Domingos acabou a carreira aos 32 anos. Não foi demasiado cedo?
DP – Há outras coisas que um dia vou contar, em livro. Mas posso dizer isto: tive uma lesão no último jogo, contra o Sp. Braga. A saltar com o Idalécio caí mal e rompi o ligamento cruzado anterior. Teria de ser operado e parar seis/sete meses. Anteriormente, já tinha pensado em acabar por volta dos 32 anos. Por uma questão de saúde, de deixar uma boa imagem. Perdi algumas características importantes, a rapidez, a imprevisibilidade. Aconteceu o mesmo ao Figo e ao Ronaldo. Deixei de executar com rapidez. Apareceu-me o cansaço psicológico, doíam-me os tendões de Aquiles, não concordava com muita coisa que via. E houve outras coisas fortes. Falarei delas mais tarde. Foi a melhor opção, tem de haver vida para lá do futebol.

Reportagem (Sic) sobre o final da carreira de Domingos:

MF – Foi o último português a ganhar a Bola de Prata, já há 23 anos.DP – Gostava que um dos meus filhos, o Vasco ou o Gonçalo, quebrassem esta maldição [risos]. Era bonito ver um deles a suceder-me como rei português do golo. Optaram por ser ponta-de-lança e espero que tenham carreiras bonitas, que se orgulhem delas. Eu ganhei uma Bola de Prata, mas podia ter outra. Tiraram-me um golo ao Beira-Mar, que foi decisivo. E o golo era meu. Cabeceei, a bola desviou no Dinis e entrou. Mas ia para a baliza, não foi autogolo. Atribuíram-me o golo até à última jornada. De repente, a RTP e A Bola mudam de opinião e o Rui Águas ganha a Bola de Prata. Eu marquei quatro golos ao Vitória de Guimarães na última jornada e o Rui marcou dois ao Beira-Mar. Não chegou.

MF – Foi a um Europeu pela Seleção. Mas podia ter ido a outro em 2000.
DP – O problema na Seleção era a pressão exterior para termos um ponta-de-lança como o José Torres. E eu não era esse ponta-de-lança. Portugal sempre viveu atrás da seleção de 66, dessa referência. Não foi fácil mudar e ter avançados diferentes. Eu, o Cadete, o João Pinto, o Paulo Alves, o Pauleta… éramos diferentes. O meu Gonçalo hoje encaixava no tal ponta-de-lança forte, bom de cabeça, com cabedal.

MF – Em 1996 é o melhor marcador nacional, mas não é titular no Europeu.
DP – Tive uma lesão muscular no fim da época e o Oliveira esteve até à última na dúvida, se me chamava ou não. Disse-lhe que estava bem, mas já não treinava há algum tempo e não sabia como ia reagir. Eu era o titular, mas o mister teve receio em apostar logo em mim. Fui entrando, marquei à Croácia e entrei contra a Rep. Checa. Acabámos com avançados a mais, eu e o Cadete até nos estorvámos numa jogada. Soube a pouco, tínhamos nível para ser campeões da Europa. Fomos eliminados no São João e vi o Vítor Baía a chorar à minha frente enquanto comíamos sardinhas.

MF – Aos 30 anos deixou de ser opção.
DP – Tive um problema com o Humberto Coelho no intervalo de um jogo com Moçambique, nos Açores. Reagi mal, tive umas palavras fortes… e ele não me voltou a chamar. Já nos entendemos, mas na altura senti que tinha estatuto para dizer o que disse.  Foi pena, acabei por falhar o Euro 2000. Só marquei nove jogos pela seleção e acho que foi pouco para um avançado como eu.   

[entrevista originalmente publicada às 23h55, 10-01-2019]