Os comunicados do Comité Olímpico Internacional (COI) têm saído a um ritmo regular, de quatro em quatro dias neste mês de novembro. Cada um traz mais uma lista de atletas desclassificados dos Jogos Olímpicos de 2008 ou 2012 por doping. O último, na passada sexta-feira, anulou três títulos olímpicos, os dois ouros do halterofilista Ilya Ilyin e também o de Oksana Menkova, que tinha ganho o lançamento do martelo em Pequim, há oito anos. Já vai em quatro dezenas de medalhados a quem o COI retirou os troféus, a história olímpica a ser reescrita a partir dos laboratórios.
É um processo sem precedentes aquele que está em curso, e aparentemente longe do fim. Um processo que levanta uma série de questões, sobre a luta antidopagem e sobre a credibilidade do desporto. Para toda a gente, incluindo atletas.
Susana Feitor representou Portugal em cinco edições dos Jogos Olímpicos, de Barcelona 1992 a Pequim 2008. Atualmente faz parte da Comissão de Atletas Olímpicos e partilha a perplexidade de quem assiste a este processo.
«Isto só revela que o sistema tem muitas fragilidades. Ou pelo menos tinha. No fundo é uma questão de justiça tardia, provando que eles fizeram batota e há disponibilidade nos regulamentos para os responsabilizar. Embora alguns deles já não estejam sequer no ativo», observa Susana Feitor ao Maisfutebol. «Há dois lados da moeda. Também tem um lado negativo, o risco do ridículo das instituições. Soa um bocado ridículo ao mesmo tempo. Ao ir-se tanto para trás pode instalar-nos em nós, público e atletas, a sensação de que tudo não passa de uma falsidade.»
Apesar de tudo, e desse evidente risco de instalar pelo menos a dúvida sobre a credibilidade da competição, Susana Feitor acha que o caminho é este. O princípio não é negociável, defende: «Sempre que se confirme que um atleta fez batota é injusto para o desporto e para os outros atletas.»
«A opinião dos atletas que competem é: ‘Esforcei-me para estar aqui, dei o máximo. Se os meus adversários lutarem com as mesmas armas, tudo bem. Se alguém está a competir comigo de forma batoteira, que seja castigado.’
O COI desencadeou um processo de revisão dos resultados olímpicos de 2008 e 2012 em maio deste ano, a três meses do arranque dos Jogos Olímpicos de 2016. Nessa altura anunciou que tinha reanalisado 454 amostras «selecionadas» dos Jogos de 2008 e iria fazer o mesmo com 250 relativas a Londres 2012. Tinha já detetado 31 atletas que, face a estes novos dados, deveriam ser impedidos de competir no Rio 2016. Foi o caso, por exemplo, de Ilya Ilyin, o halterofilista agora desclassificado.
No início de agosto, já no Rio de Janeiro, o presidente do COI, Thomas Bach, disse que tinham sido detetados no total quase 100 casos positivos nestas reanálises. Agora estão a ser divulgadas as sanções que resultam dessas conclusões.
Quando anunciou o programa de reanálises o COI disse que iriam ser usados «os últimos métodos científicos de análise». Ou seja, capazes de detetar substâncias que na altura dos Jogos Olímpicos em questão fugiam ao crivo. O controlo não era suficientemente sensível para detetar substâncias em concentrações residuais como as que se estão a encontrar agora, de acordo com Richard Budgett, diretor médico e científico do COI, citado pelo New York Times.
A decisão do COI aconteceu na sequência do escândalo que envolveu a Rússia, acusada de doping de Estado numa investigação independente da Agência Mundial Antidopagem. Conduzido pelo canadiano Ricard McLaren, esse relatório falava num programa de dopagem conduzido pelo próprio Governo russo.
Essa investigação revelou pistas para o consumo de substâncias que o controlo antidoping não tinha detetado e, no limite, levou o COI a reabrir a caixa de Pandora dos Jogos Olímpicos passados. «Quando olhamos para o que descobrimos, relaciona-se com a informação recolhida sobre a Rússia», diz Olivier Rabin, diretor da Agência Mundial Antidopagem, também em declarações ao New York Times.
Então, o que perceberam as autoridades antidopagem foi que havia atletas a recorrer a velhas substâncias, esteróides que eram usados há décadas. Como turinabol, associado aos métodos de dopagem da antiga RDA, ou stanozolol, a substância que acusou o canadiano Ben Johnson depois de vencer os 100 metros nos Jogos Olímpicos de Seoul, em 1988.
«As boas e velhas drogas funcionam bem para a força. É por isso que ainda aí andam», diz Olivier Rabin, reafirmando a ideia de que até aqui era impossível detetar as substâncias em causa: «A ciência progride a cada dia. Nos últimos cinco anos a sensibilidade do equipamento progrediu para 100 vezes mais. Vemos o que era impossível ver antes.»
Até agora as modalidades mais afetadas neste programa de reanálises foram o halterofilismo, maioritariamente, mas também o atletismo. O jornal espanhol El Pais fez um levantamento das desclassificações por desportos e por país, que demonstra o foco nessas duas modalidades, bem como a clara tendência para os casos positivos detetados serem de atletas do antigo Bloco de Leste.
«Cerimónia de medalhas via Facebook»
Há disciplinas particularmente afetadas. Com consequências insólitas. Veja-se o caso do salto em altura feminino dos Jogos Olímpicos de 2008, por exemplo. Num dos mais recentes comunicados do COI surgiram os nomes da russa Elena Slesarenko e da ucraniana Vita Palamar, como tendo sido desclassificadas. Foram, respetivamente, quarta e quinta na final de Pequim. Como a terceira, a russa Anna Chicherova, já tinha sido desqualificada anteriomente, por acusar turibanol, estamos perante a probabilidade de chegar ao bronze a sexta classificada dessa final, a norte-americana Chaunte Lowe.
Hoje com 32 anos, Lowe soube da novidade... pelas redes sociais, foram outras atletas a competir nessa final a dar-lhe a notícia. «Foi uma cerimónia de medalhas via Facebook», ironizou Lowe.
O processo formal de reatribuição de medalhas não é linear e ainda terá de haver uma decisão final, mas o caso de Lowe é apenas um entre muitos. Um processo que obrigou inclusivamente o COI a publicar um «disclaimer» na página oficial dos resultados de Pequim 2008 ou Londres 2012 : «Por favor tenha em conta que devido a estarem em curso muitos procedimentos relativos a violações dos regulamentos anti-doping, incluindo procedimentos envolvendo medalhados na sequência dos programas de reanálise às amostras de Pequim 2008 e Londres 2012, a informação contida nesta lista não é final», lê-se aqui.
As análises dos atletas que competem em Jogos Olímpicos são guardadas por 10 anos e o COI já anunciou que fará o mesmo para o Rio 2016 e procurará detetar casos que possam ter escapado durante os últimos Jogos Olímpicos. Sendo que o processo de controlo anti-doping do Rio esteve longe de ser isento de questões. Um relatório de Observadores Independentes da Agência Mundial Antidopagem divulgado no final de outubro falou em «falhas sérias» no controlo do Rio, nomeadamente em dificuldades graves em encontrar atletas para controlos fora de competição, concluindo que foram realizados menos 500 testes do que estava previsto.
Portanto, há muitas questões para colocar ainda em torno de todo o sistema do controlo anti-doping. Quanto aos atletas, diz Susana Feitor, só querem que ele funcione. «Para o sistema funcionar como deve ser o controlo deve ser realmente eficaz», defende a antiga marchadora.
«Nem todos os atletas fazem batota. Por isso é que esta organização e o controlo devem existir. Existe corrupção em todas as atividades», observa: «Para mim a batota, e não falo só de doping, qualquer tipo de batota, deve ser sempre combatida. Devemos competir todos com as mesmas ferramentas e, se existem regras aprovadas por toda a gente, têm que ser respeitadas por todos.»