Vejam a Mona Lisa. A sua aparência sublime esconde uma estrutura em sofrimento, um verniz estalado ao ponto de não brilhar como devia. Esta observação aplica-se à seleção francesa, em toda a sua ambivalência, ao mesmo tempo fabulosa e alarmante. O seu aspeto radiante é o lado desportivo, o odioso reverso é a realidade do balneário.
Em relação ao primeiro, não há qualquer razão de queixa. A França qualificou-se para o Europeu sem sofrer um único golo. Com um sólido e eficiente 4x3x3, marcou 44 golos em oito jogos, correspondentes a sete vitórias e um empate, na Áustria. Mais ainda, as Bleues venceram os 12 jogos que disputaram desde abril de 2021, sofrendo apenas uma derrota, num particular com os Estados Unidos. Com uma vitória convincente no Tournoi de France, em fevereiro, frente a Países Baixos e Brasil, elas chegam a Inglaterra como favoritas credíveis para o Europeu. «O nosso objetivo é pelo menos a final», diz a selecionadora Corinne Diacre.
No entanto, a equipa vem sendo atingida há anos por inacreditáveis tensões internas. Há um conflito histórico entre as jogadoras do Lyon e Diacre. Eugénie Le Sommer, a melhor marcadora de sempre da França, e Amandine Henry, a antiga capitã, não foram convocadas para o Europeu, apesar do recente triunfo do Lyon na Liga dos Campeões.
O nível de tensão está ainda mais elevado do que em 2019, durante o Mundial que a França acolheu, quando «as jogadoras choravam no quarto», maltratadas pela selecionadora, segundo revelou Amandine Henry ao Canal+. A agressão à jogadora do PSG, Kheira Hamraoui, em novembro de 2021, que levou à detenção da companheira de equipa Aminata Diallo (libertada sem acusação), também dividiu o balneário.
Sarah Bouhaddi, antiga guarda-redes titular da França e do Lyon, retirou-se da seleção por causa do ambiente pouco saudável, agravado pela selecionadora. Ela resume a questão como ninguém: «Apostava a vida em como a França não vence o Europeu se a Diacre continuar à frente da equipa». Sabem que mais? Diacre ainda lá está.
“Átila”, “Dragão”, “Sargento-chefe”, “Cocovirus”… As alcunhas que lhe foram postas pelas Bleues mostram como Diacre conseguiu despertar ódio desde a sua nomeação, em 2017. Ela é, nesta altura, a personalidade mais divisiva do futebol francês. Por um lado, é louvado o mérito desta antiga grande defesa (com 121 internacionalizações), por se ter tornado a primeira mulher no mundo a treinar uma equipa profissional masculina, durante pelo menos uma época (o Clermont, da Ligue 2, entre 2014 e 2017).
Mas, desde então, ela é mais conhecida pela facilidade com que cria conflitos, e pela sua atitude, descrita como «ditatorial». «Não estamos aqui para nos rirmos», repete. Recentemente, tem tentado suavizar a sua imagem, com um sorriso e um tom mais calmo.
É uma loucura a rapidez com que as coisas podem mudar. Em 2019, Diacre não convocou Katoto para o Mundial de França, o que foi um choque, porque a avançada já então caminhava sobre a água (tinha 30 golos em 29 jogos pelo PSG nessa época).
«A Marie-Antoinette não tem presença suficiente nos grandes momentos», disse Diacre. «Com o que vi no treino ela não merece de forma alguma ser titular», acrescentoui ainda, na tentativa de justificação. Mais uma vez, estava criado um conflito.
Três anos mais tarde, a mesma treinadora decidiu organizar toda equipa à volta de Katoto, imparável esta época (46 golos em 44 jogos no total), e mais assertiva no balneário. Se a França vencer o Europeu, ela será a favorita a ganhar a Bola de Ouro.
Esta é a história invulgar de uma jogadora que nem sequer é titular no seu clube, o Bordéus, mas convenceu Diacre em tempo recorde. Palis ganhou lugar na lista depois de brilhar como médio defensivo no último jogo das Bleues antes da convocatória, uma vitória por 1-0 sobre a Eslovénia, em abril.
Fã de N’Golo Kanté, «que está em todas as bolas», e de Marco Verratti, «à vontade em espaços pequenos», a jogadora de 23 anos está na calha para assumir o lugar de Charlotte Bilbault, que também a privou de tempo de jogo no Bordéus.
Palis já usa o mítico número 10. E ninguém resume melhor do que ela o seu polivalente perfil: «Gosto de me projetar para a frente, trazer soluções ofensivas e, porque não, tentar rematar de longe?»
Ícone do futebol feminino, ícone para meninas francesas nascidas longe da França metropolitana, e também um ícone que Emmanuel Macron cita frequentemente como exemplo. Wendie Renard é tanta coisa ao mesmo tempo.
Nascida na Martinica, a capitã francesa teve de superar a morte do pai com cancro, quando tinha oito anos, e mudou-se permanentemente para França aos 16 anos.
O seu sucesso (15 campeonatos franceses e oito Ligas dos Campeões com o Lyon) transcendeu o desporto. Até as adversárias reconhecem as suas qualidades extraordinárias. «Renard é um grande exemplo de quem não apenas se mantém no topo, mas tenta sempre melhorar», disse Millie Bright, jogadora do Chelsea, ao site da FIFA. «É uma líder incrível e faz muitas vezes a diferença nos jogos grandes.»
A presença regular da seleção francesa na fase final das grandes competições é uma tendência bastante recente. As Bleues qualificaram-se pela primeira vez para o Europeu em 1997, e depois esperaram mais 12 anos para conseguir passar a fase de grupos. Desde 2009, a Geração de Ouro de Henry, Le Sommer e Renard atingiu outro nível, com um jogo entusiasmante. Mas este grupo nunca deixou de ser perdedor com estilo, jogando bem mas saindo cedo, ainda sem encontrar a força mental necessária nos grandes torneios. Ainda se aguarda que a seleção francesa passe os quartos de final. O problema é que o tempo dessa geração parece ter terminado, e a nova ainda não atingiu maturidade.
Face a um sorteio difícil (provavelmente Suécia ou Países Baixos nos quartos de final) e ao ambiente tóxico no balneário, a caminhada pode voltar a ficar pela barreira dos quartos de final.
Texto original de Théo Troude, da France Football.