«Eusébio sempre». De manhã, os jornais debatiam Oblak-ou-Artur, Artur-ou-Oblak; e Matic, claro! O sérvio, dizia-se, ficara «Blue» de raiva porque tinha dito sim a Mourinho e, entretanto, não a Jesus, naquele servo-português com sotaque. É que não o iam obrigar a jogar por nada deste mundo. Entretanto, a romaria encorpava alheia a todos os diálogos, com destino ao santuário, agora protegido por uma redoma, como em museu de ióias valiosas, com o vermelho escarlate dos cachecóis a fazer de almofada sob a estátua reluzente.

O amarelo. O verde, pouco, mas ali. Tal como o azul. Diluindo-se, engolidos, num mar encarnado. Cartolinas escritas à mão. Mensagens

Não vim aqui dizer-te adeus, vim dizer-te obrigado.

Uma mensagem de Cabo Verde. Fotografias antigas. Muitas. Outras, mais recentes. Galhardetes. A chuva, como há sete dias, começava a cair. Primeiro, pouca. Depois, novo dilúvio. Como se fosse tempo de novo adeus, agora a valer, com santuário. Dezenas de pessoas. Centenas. Os telemóveis disparavam. As máquinas pequenas, de ocasião, cybershot-qualquer-coisa, faziam zoom in. Zoom out. Nunca se sabe onde se desliga o flash. Os comentários

Para ter sido feito em quatro dias, está muito bem!

100 por cento de probabilidade de chuva à hora do jogo, comentava-se. 100 por cento de hipóteses de novo dilúvio. Agora, num coliseu com mais de 60 mil pessoas a assistir. Jornalistas encharcados, adeptos ensopados; os guarda-chuva não entram. O fotógrafo, com calças de ganga e um simples blusão com capuz, queixava-se

Amanhã não me mexo. E o material a estragar-se, à chuva...

A tempestade começava a bater forte na escassa cobertura, o vento a trazer gotas, lágrimas perdidas, que nos batiam na cara. A internet parara. Nem para frente nem para trás, como se fosse um caminho onde andássemos para chegar a algum lado. O homem com o microfone anuncia

Quando tocar o nosso hino, mostrem as cartolinas com o preto para o relvado

No aquecimento dissipam-se as dúvidas. As táticas e as outras. Oblak, percebe-se, vai mesmo jogar. É ele que vai para a baliza, enquanto Artur e um dos treinadores o testam. O brasileiro já teve melhor pontaria. Depois, o grande rival. Com Licá ali com os outros. Cada vez mais certezas em campo. A chuva ainda cai, indiferente.

Cartolinas pretas para o relvado, não se esqueçam

Voltam para dentro. O mestre da tática deve ter algo mais a dizer, mais um centímetro de tapete a cobrir. Um último aviso, um último empurrão no moral. Ou um grito, um berro de deitar abaixo paredes. Os jogadores apertam os atacadores, acertam a posição das meias. As colunas de som lá em cima, suspensas dos gigantes anéis vermelhos, começam baixinho

And now,
the end is near

Os ecrãs gigantes acompanham em stereo. Eusébio renasce, dribla, faz golos

And so I face
the final curtain
My friend,
I'll say it clear
I'll state my case,
of which I'm certain

A chuva é-lhe indiferente. A Pantera destroça defesas rivais, festeja e cumprimenta os adversários. Respeito. Golo após golo.

I've lived
a life that's full
I traveled each
and ev'ry highway
And more,
much more than this,
I did it
my way

«Eusébio sempre» No microfone, lá em baixo junto ao relvado, de novo a mensagem para as cartolinas pretas. Lembram-se para onde devem estar viradas? Relvado! A Vitória plana sobre o relvado, indiferente aos assobios azuis e brancos, e ao barulho que um dia já a inibiu e fez fugir. Mas não será hoje. O tratador exibe a habitual calma triunfante. Não se preocupem, ela já vem, está a divertir-se. A honrar o momento.

Chega a hora. O velhor tenor vai voltar a berrar o hino. Os jogadores pisam a relva de novo. Jesus conseguiu fazer o impossível: juntar 11 Eusébios, com o nome na camisola encarnada. Da bancada descem duas tarjas enormes. A cara do King, e de novo a mensagem para chegar a todo o lado, talvez também aos céus, talvez para lhe dizerem o que não disseram em vida: «Eusébio sempre». As cartolinas pretas a dar o tom, antes de o seu verso pintar a Luz de novo de branco e vermelho. Fumo. A chuva para de vez. O momento é solene.

Silêncio. 60 segundos. Respeito. Os shiuuus ridicularizam a estupidez de quem não foi ali por gostar de futebol. Para ti!

O apito. 13 minutos e o primeiro golo de Eusébio. Eusébio a correr quilómetros. Eusébio a ir a todas as bolas. Eusébio. Eusébio outra vez. Eusébio a saltar mais que Mangala e a cabecear para as redes. Aponta-se para o céu. Talento mais força. Técnica mais músculo. Os jogadores do Benfica incorporaram mais do que um nome neste dia. E tomara a todos, porque seria para eles bom sinal, que se embriagassem do slogan também: «Eusébio sempre!»