Edgar Cardoso parece diferente do que era há dois dias: sente-se o alívio na voz.

«A ação do governo português, da embaixada em Kiev, das forças armadas que nos acompanharam foi espetacular. Os italianos e os brasileiros do Shakhtar, por exemplo, que são pessoas conhecidas em todo o mundo, ainda estão no hotel em Kiev. Foi uma grande missão que organizaram para nos retirar de Kiev», diz ao Maisfutebol.

«Agora o que mais desejo é chegar a Portugal e abraçar a minha mulher e o meu filho. Quero muito abraçá-los. Nunca mais vejo a hora. A segunda coisa que mais desejo é que tudo volte à normalidade o mais rapidamente possível na Ucrânia. Eu saí, mas deixei no país 100 pessoas, entre 50 jogadores e 50 membros do staff do cllube, ucranianos que não podem sair e de quem gosto muito.»

Edgar Cardoso já está na Roménia, depois de uma longa e louca viagem desde Kiev, e em breve vai regressar a Portugal. Veio integrado numa coluna de fuga organizada pela embaixada portuguesa, viajou com o nutricionista Ricardo Cotovio, também funcionário do Shakhtar, e aguarda a chegada de uma outra comitiva na qual está a família de Paulo Fonseca para seguirem todos para Lisboa.

Para trás deixou mais de 40 horas de uma viagem que teve momentos de enorme tensão.

«Quando passámos a fronteira da Ucrânia o sentimento foi de alívio. A primeira reação foi dar um abraço grande aos elementos das forças armadas portuguesas e depois abraçar o Ricardo Cotovio», conta.

«Havia razões para festejar. A partir do momento em que entrei na Moldávia senti-me com menos trinta quilos. Só saber que estava fora da Ucrânia já me deu uma grande tranquilidade.»

O governo organizou uma missão que começou na quinta-feira à tarde, seguiu por estradas secundárias em direção à Moldávia, atravessou o país e terminou num hotel na Roménia.

Mas voltando ao início, Edgar Cardoso e Ricardo Cotovio foram mandados para o hotel do dono do Shakhtar Donetsk quando se ouviram as primeiras bombas em Kiev, logo na madrugada de quinta-feira. A viagem de fuga da Ucrânia não começou muito depois disso.

«Perto da hora de almoço do primeiro dia de conflito, o Ricardo Cotovio recebeu um telefonema para ir à embaixada. Ele veio falar comigo e disse que ia. Fez três quilómetros a pé, sozinho, pelas ruas de Kiev para chegar à embaixada. Já estava perto da embaixada quando tocam as sirenes para toda a gente se proteger o mais possível. E ele no meio da rua», conta.

«Passado um pouco ligou-me: ‘Edgar, há um autocarro a sair da embaixada em dez minutos, vamos?’ Foi uma decisão que tivemos de tomar em dois minutos. Eu sentia-me mais seguro dentro do hotel, que tinha construção sísmica. Tive de optar entre continuar no hotel, mais ou menos seguro, ou sair sozinho para a rua, enfrentar o trânsito e uma situação muito hostil nas ruas. Liguei à minha mulher, ela disse-me para ir. Mas o Ricardo não tinha levado as malas, precisava que eu as levasse e eu liguei-lhe a dizer: ‘Não consigo chegar com duas malas em dez minutos à embaixada, não vou’. Entretanto passado três minutos o Ricardo ligou-me e disse que a embaixada não se importava de passar pelo hotel e de apanhar-me. Mais uma vez tive de tomar uma decisão em trinta em segundos e decidi ir. Foi a melhor coisa que fiz.»

A partir daí, a comitiva de quatro carros de cinco lugares e um minibus fez-se à estrada. Sempre por caminhos secundários. A coluna seguiu o itinerário desenhado antes da missão começar. As pessoas iam-se revezando a conduzir as viaturas, que nunca podiam separar-se, nem ficar para trás.

«Saímos do hotel às 16 horas, conduzimos durante quinze horas por estradas secundárias e não fizemos mais de 400 quilómetros até um hotel numa aldeia, para descansarmos quatro horas. Os últimos cem quilómetros foram de desespero porque tínhamos receio que os GPS estivessem a ser controlados por hackers russos e nos estivessem a levar por caminhos errados. Já tinha lido nos jornais que isso acontecia», acrescenta Edgar Cardoso.

«Tentámos uma estrada, não deu, tentámos outra estrada, não deu, só à terceira é que conseguimos acertar na estrada e seguir pelo caminho certo. A gasolina foi outro drama. Levávamos combustível de reserva, que a organização da missão tinha arranjado, mas sempre que possível tentávamos meter mais gasolina e cada carro só podia no máximo comprar vinte litros.»

Antes desta coluna se fazer à estrada, já uma outra coluna de três carros e um minibus tinha saído de Kiev, também numa organização da embaixada e das forças armadas.

«Chegámos ao tal hotel na aldeia por volta das sete da manhã de sexta-feira e juntámo-nos com essa outra coluna, que tinha saído mais cedo e estava à nossa espera. Disseram-nos para irmos descansar e para não nos preocuparmos, que se fosse preciso batiam-nos à porta do quarto para sairmos mais cedo. Foi o que aconteceu. Passado três horas bateram-nos à porta que tínhamos que sair. Dormimos três horas, depois de quinze horas na estrada. Saímos por volta das 11 da manhã.»

Edgar Cardoso conta que as duas colunas formaram uma só, de nove viaturas, todas de carros ligeiros e já sem os dois minibus. Foi esta comitiva que se fez novamente à estrada em direção à fronteira com a Moldávia.

«No segundo dia íamos nove carros e no grupo havia portugueses e ucranianos: ucranianos e ucranianas que eram casados com portugueses e portuguesas. Depois na fronteira aconteceu algo verdadeiramente dramático. Todos os ucranianos homens entre os 18 e os 60 anos ficaram retidos na fronteira, por causa da lei marcial. Tinham de ir combater. Agora imaginem as mulheres e os filhos a despedirem-se dos pais e dos maridos. Horrível, horrível. Inacreditável. Uma angústia. O pior momento da viagem.»

Edgar Cardoso diz que a viagem já estava a ser feita num ambiente pesado, de grande receio, com as pessoas permanentemente despertas, à procura pelas janelas das viaturas de movimentos suspeitos. Depois desse momento em que as famílias se separaram, o ambiente ficou ainda pior.

«Tínhamos de passar duas fronteiras, a de saída da Ucrânia e a da entrada na Moldávia. Demorámos quatro horas. Lembro-me que às oito da noite liguei à minha mulher a dizer que já estava a cinquenta metros deixar a Ucrânia. À meia noite voltei a ligar-lhe a dizer que agora sim, finalmente tinha entrado na Moldávia», refere.

«Havia muita, muita gente. Incrível. Antes da fronteira passámos por três pontos de controlo, onde revistaram tudo, tudo, tudo. As viaturas, as malas, as pessoas. Via-se muita polícia a andar à volta dos carros, com as armas ao peito. Levavam os nossos passaportes para longe da nossa vista, para confirmarem a identidade, o que é sempre um momento de tensão porque são os nossos únicos documentos. Havia barreiras de sacos de areia, barris, blocos de cimento, meteu algum respeito.»

Pouco depois da meia noite, portanto, a comitiva de nove viaturas entrou na Moldávia. O que significou um enorme alívio, mas ainda não era o fim da odisseia. Até porque a Moldávia tem três regiões que são controladas por militares russos.

«A embaixada tinha um hotel à nossa espera na Roménia. Nós estávamos muito cansados, depois de muitas horas de viagem e muitas horas a conduzir, mas quisemos continuar. Dissemos que só parávamos quando chegássemos à Roménia e fizemo-nos à estrada.»

Após quase quarenta horas de viagem, os portugueses chegaram finalmente ao hotel na Roménia. Para trás deixaram o susto da vida deles, muitas horas de pânico e uma odisseia muito dura.

«A parte mais complicada foi aquela na fronteira. Ver o desespero de famílias que tiveram de se separar, mulheres e filhos que deixaram os homens para trás, foi muito complicado», revela.

«Eu quando saí de Kiev estava muito assustado e enquanto estava na região de Kiev ia sempre a olhar à volta, à procura de qualquer coisa suspeita. Fiz a viagem sempre com muito medo. Depois parámos uns minutos, numa altura em que o sol se estava a pôr, muito perto das seis e meia ou sete, três caças passaram cem metros por cima de nós. Depois de deixar a região de Kiev, que é enorme, já me sentia menos tenso. Passar a fronteira foi um momento complicado, mas já passou.»

Edgar Cardoso, tal como Paulo Fonseca, Ricardo Cotovio e quase meia centena de portugueses, só quer agora chegar a Portugal e abraçar a mulher e o filho. Já faltou muito mais. Provavelmente este domingo será esse dia tão ansiado.

Depois o sol brilhará novamente.