«Como todos os meninos uruguaios, eu também quis ser jogador de futebol. Jogava muito bem, era uma maravilha, mas só de noite, enquanto dormia. De dia era o pior perna de pau que já passou pelos campos do meu país.»

É com esta frase que Eduardo Galeano nos faz entrar num dos livros fundamentais desse delicado cruzamento entre futebol e literatura, «Futebol: Sol e Sombra», publicado originalmente em 1995. O escritor uruguaio morreu em Montevideu nesta segunda-feira, aos 74 anos, vítima de cancro do pulmão. Para trás, deixa uma obra com mais de 40 títulos, que misturam jornalismo, ensaio, crónica e ficção para fazer um relato do seu tempo, em especial da história da América Latina.

Galeano foi dos primeiros escritores a reconhecer dignidade intelectual ao futebol: ao escolhê-lo como reflexo da sociedade que o rodeava tirou-o da sombra. «Gosto de partilhar euforias e tristezas com milhares de pessoas que não conheço e com as quais me identifico fugazmente, na paixão de um domingo à tarde». O seu primeiro livro dedicado ao tema data de 1968 («Sua majestade, o futebol») e consiste numa recolha e seleção de textos, ideias e reflexões de vários autores sobre o fenómeno. Quase três décadas depois, mais maduro, ousou avançar com a sua visão particular: «Uma tentativa de mostrar que o futebol é um espelho do mundo e que, falando da bola, redonda como o mundo, aparecem as maravilhas e as misérias do tempo que nos tocou viver», resumiu.


Eduardo Galeano

Nascia «Futebol: Sol e Sombra», compilação de pequenas crónicas que, organizadas por ordem cronológica, desenham uma espécie de mapa afetivo dos grandes nomes da história do futebol. O percurso vai de A, de Andrade, a Z, de Zamora, passando por Cruijff, Eusébio ou Maradona, mas com ênfase particular nos uruguaios, argentinos e brasileiros que moldaram o imaginário da sua infância: «Eu nasci a gritar golo!, como todos os bebés uruguaios. Escrevi este livro para fazer com a mão o que nunca consegui fazer com os pés», justificou-se mais tarde.



Enquadrados por informações de contexto político, económico e social, os textos de Galeano pintam em traços largos um retrato do século XX com bola em fundo. A fórmula - que se banalizou depois - era inovadora para a época, e foi um tremendo sucesso, valendo-lhe edições em várias dezenas de países.

Autor do prefácio à edição portuguesa (ed. Livros de Areia, 2006), o escritor Manuel Jorge Marmelo não tem dúvidas em pôr Eduardo Galeano numa posição de referência quando o assunto mistura livros e futebol: «Considero-o um dos últimos representantes de uma grande geração de escritores latino-americanos. É impossível escrever bem sobre futebol sem ler alguns nomes grandes. Entre eles está o Galeano, mas também o Luíz Fernando Veríssimo ou o Carlos Pinhão, entre outros nomes incontornáveis», afirma este antigo médio do Ramaldense, que não tem dúvidas em considerar que os textos do «Futebol ao Sol e à Sombra» continuam atuais e necessários: «Para quem ama o futebol por ter comido pó nos pelados e rompido os joelhos a fazer defesas impossíveis em campos de cimento, uma crónica do Galeano vale mais do que milhares de horas de discussão estéril sobre o fora de jogo ou o penálti do fim de semana», garante.



Eduardo Galeano, que em tempos de ditaduras militares viveu mais de uma década no exílio, em Espanha, até ao regresso definitivo ao Uruguai, definiu um dia o futebol como «a única religião sem ateus». Comungava, em especial durante os Mundiais e grandes competições internacionais, altura em que pendurava um cartaz irónico à porta de casa: «fechado por causa de futebol».

Nos textos sobre futebol, e não só, nunca teve dúvidas em temperar os factos com uns pozinhos de lenda. No seu estilo de escrita há uma dimensão mística, comum a autores do chamado realismo mágico, como Garcia Marquez ou Julio Cortazar: «Há tentativas de explicar milagres técnicos e físicos do futebol com magia, os grandes futebolistas são como anjos que aparecem a pairar no mundo real», nota Manuel Jorge Marmelo que destaca ainda Galeano como «um homem de valores, que os aplicava em tudo o que escrevia».

Isto não impediu o escritor uruguaio, adepto do Nacional de Montevideu, de admitir, logo na infância, uma primeira traição aos afetos, quando a magia de jogadores do Peñarol dos anos 50, como Schiaffino ou Abbadie, o fazia incorrer em tentação: «Fazia o possível por odiá-los (…) mas não tinha saída a não ser admirá-los. Chegava até a sentir vontade de aplaudi-los», conta na introdução ao livro, antes de rematar certeiro, para golo:

«Os anos foram passando e, com o tempo, acabei por assumir a minha identidade: não passo de um mendigo do bom futebol. Ando pelo mundo de chapéu na mão, e nos estádios suplico:
- Uma linda jogada, pelo amor de Deus!
E quando acontece o bom futebol, agradeço o milagre - sem me importar com o clube ou o país que o oferece.»


P.S: No mesmo dia em que morreu Eduardo Galeano morreu também o alemão Günter Grass, prémio Nobel da literatura em 1999, e cronista fundamental da Alemanha no século XX. Era adepto do St. Pauli, o clube preferido dos «alternativos». E, como futebolista amador fazia questão de jogar sempre à ponta esquerda: «Tinha maus joelhos, mas fazia grandes cruzamentos», contou, com mais do que provável liberdade criativa, numa entrevista ao jornal da sua terra, Lübecker Nachrichten, por ocasião do Mundial 2006.