Efeméride é uma rubrica que pretende fazer uma viagem no tempo por episódios marcantes ou curiosos da história do desporto, tenham acontecido há muito ou pouco tempo. Para acompanhar com regularidade, no Maisfutebol.

«Boa noite, o jogo que vão ver a seguir é, provavelmente, a mais estúpida, terrível, repugnante e vergonhosa exibição de futebol da história do jogo». Foi assim que o correspondente da BBC ao Mundial do Chile, em 1962, descreveu o encontro entre a seleção da casa e a congénere italiana. A situação foi de tal forma que o jogo acabaria por ficar na história como a «Batalha de Santiago». Foi a 2 de junho de 1962, há 54 anos.

Antes da batalha, o mais forte terremoto de sempre

Depois de ter sido atribuída a dois países europeus a organização dos Mundiais de 1954 e 1958, caberia a um país sul-americano organizar o próximo.

Em junho de 1956, no congresso da FIFA realizado em Lisboa, Argentina e Chile apresentaram candidaturas para a organização da prova. Principal favorita, a Argentina garantia: «Podemos fazer o Mundial amanhã. Temos tudo pronto». O Chile usou a estratégia oposta: «Não temos nada e queremos construir tudo». O lema de que a prova serviria para desenvolver a modalidade num país em que a difusão ainda era precária, colheu frutos. O Chile foi o escolhido de 32 dos votantes, a Argentina recebeu apenas 10 votos, e 14 votaram em branco.

Estava escolhida a localização do Mundial de 1962 e os preparativos chilenos começaram de imediato, sobretudo por causa do apoio do presidente do país, que se propunha modernizar grande parte das infraestruturas, desde transportes a telecomunicações, a tempo de receber o evento.

Mas a dimensão da tarefa acarretou percalços, sobretudo atrasos resultantes de questões financeiras. Nada que se comparasse ao que aconteceu no dia 22 de maio de 1960, quando um violento sismo sacudiu o Chile. Um tremor de terra de magnitude 9,5 na escala de Richter fez mais de 5 700 mortos, cerca de dois milhões de feridos, e arrasou todas as cidades a sul de Talca.

O sonho do Mundial parecia condenado ao insucesso, mas a ajuda de várias federações, que somou um total de 20 mil dólares, permitiu que a prova tivesse mesmo lugar no país, mas com alterações.

Totalmente desfalcadas, as localidades de Talca, Concepción, Talcahuano e Valdivia foram postas de lado como sedes. Antofagasta e Valparaíso desistem por não conseguirem pagar a construção dos estádios. Viña del Mar, Arica e Rancagua conseguiram, através de vários financiamentos, remodelar os estádios e, com estas três sedes, a prova já podia realizar-se.

Ânimos exaltados por causa de dois jornalistas

O início da prova estava marcado para 30 de maio e, dentro do possível, tudo estava pronto. A seleção italiana estava instalada no país, e, segundo recordou Cesare Maldini em entrevista, tudo corria bem, até que reportagens de dois jornalistas italianos mudaram tudo. Antonio Ghirelli e Corrado Pizzinelli, enviados especiais ao Chile, descreveram um país subdesenvolvido, onde miséria, analfabetismo e prostituição eram comuns. «Os telefones não funcionam, os táxis são tão raros como maridos fiéis, um telegrama para a Europa custa um braço e uma perna, e uma carta demora cinco dias a chegar», escreveram, acrescentando: «Santiago é horrível».

A questão chegou ao nível diplomático, envolvendo troca de mensagens pouco simpáticas entre embaixadas. E os artigos foram traduzidos (nem sempre com a correção necessária) e publicados nos jornais chilenos.

Cesare Maldini relatou, na entrevista já citada, que as pessoas do Chile, até aí muito simpáticas com a seleção italiana, tinham mudado de atitude.

Por questões de segurança, os dois jornalistas foram embora do país ainda antes desse dia 2 de junho, data do segundo jogo de Itália, precisamente frente ao Chile.

A batalha

Chegamos então a 2 de junho de 1962. 70 mil pessoas ocupam as bancadas e o ambiente, quer dentro, quer fora de campo, era tenso.

Itália tinha empatado o primeiro jogo da prova (0-0 com a Alemanha) e o Chile tinha ganho (3-1 à Suíça), mas nenhuma das duas equipas queria perder. A jogar em casa, o apoio que os chilenos recebiam era enorme, mais ainda depois das críticas dos jornalistas italianos. Em campo, os italianos tentavam responder, mas não encontraram a melhor maneira para o fazer.

Logo nos primeiros minutos de jogo, Giorgio Ferrini perde as estribeiras e, depois de um lance confuso em que, por mais que tentasse, não conseguiu ficar com a bola, pontapeou o avançado chileno Honorino Landa. Ken Ashton, o árbitro que poucos anos depois inventaria o conceito de cartões amarelos e vermelhos, ainda deixou passar, mas logo a seguir Ferrini pontapeou um adversário que nem tinha a bola e foi expulso. Ferrini não queria abandonar o terreno de jogo e teve que ser escoltado pela polícia, após 10 minutos de tensão em campo.

Depois, a bola passou a ser secundária e foi uma sucessão de murros e pontapés sempre que os jogadores conseguiram fazê-lo. O chileno Leonel Sánchez (filho de um lutador de boxe) deu um soco em Mario David, mas o árbitro, ou não viu, ou nada quis fazer. Logo a seguir, o italiano respondeu ao chileno com um pontapé alto, que atingiu o adversário na cara, e também lhe valeu a expulsão.

Ao intervalo, Leonel Sánchez voltou a fazer das suas e, com mais um soco a mostrar que podia seguir as pegadas do pai, partiu o nariz ao capitão Humberto Maschio. Mesmo assim, não foi expulso do jogo. Na segunda parte, Paride Tumburus e Jorge Toro engalfinharam-se na zona do meio campo e teve que ser o árbitro a separá-los.

Pelo meio da confusão, a bola ia rolando e, aos 73 minutos, Jaime Ramírez, de livre, abriu o marcador, colocando o Chile em vantagem. Jorge Toro fez o 2-0 a seguir.

No final do encontro, e mesmo sem que o árbitro tivesse dado compensação pelas paragens, ambas as equipas foram escoltadas pela polícia até ao balneário.

«Eu esperava um jogo difícil, mas não um encontro impossível. Tive que dar o meu melhor», disse, tempos depois, o árbitro Ken Ashton em entrevista. «Pensei em terminar o jogo antes do tempo, mas não conseguiria garantir condições de segurança para os jogadores italianos nesse caso. Por isso, fui até ao fim, só não dei tempo de desconto», frisou.

O relatório que fez depois era escasso em pormenores das questões disciplinares, mas os jornalistas presentes e os relatos e imagens que produziram, levaram a que a história deste jogo tivesse corrido mundo.

As imagens de resumo do jogo da BBC demoraram dois dias a chegar do Chile até Inglaterra. Depois de emitidas, chocaram muitos dos que gostam de futebol, que diziam que mereciam «um certificado de filme de terror». O jornalista, autor da frase cuja citação iniciou este texto, continuava: «Esta é a primeira vez que estas duas equipas se encontram e esperamos que seja a última. Se o Mundial quer sobreviver nestes moldes, algo tem que ser feito em relação a equipas que jogam assim», frisou, dizendo que «deviam ser imediatamente expulsas da competição».

Ambas as seleções continuaram em prova, pelo menos por mais algum tempo. A Itália venceu a Suíça por 3-0 no jogo seguinte, mas acabou por ficar na terceira posição no grupo (atrás de Alemanha e Chile) e ficou pelo caminho. O Chile acabou por conquistar um histórico terceiro lugar na prova.

Mas o jogo causou mossa. Os italianos que estavam no Chile foram banidos de bares e outros estabelecimentos. Em Roma, o exército foi chamado para proteger a embaixada chilena. As acusações, de parte a parte, sucederam-se e o árbitro também não foi poupado, sobretudo pelos italianos, que se queixaram de que Ken Ashton tinha sido parcial.

Este jogo foi apenas a face mais visível de um Mundial marcado por jogos muito duros e com sucessivos episódios de violência.