Há 23 anos, em janeiro de 1991, no posto médico do Belenenses, olhei para a marquesa ao lado da minha e vi um mapa-múndi em 3-D nas pernas de Fernando Chalana. Cortes, golpes, círculos e semicírculos, dezenas de planaltos e depressões talhadas a lâmina acentuavam-lhe o desenho dos músculos e sugeriam haver ali matéria para uma tese de geomorfologia sobre a relação entre os critérios disciplinares de arbitragem e os acidentes do relevo.

Imaginei aquelas cicatrizes de Frankenstein em redor dos joelhos como um improvisado tabuleiro para jogo do galo. Mas logo percebi que alguém se tinha antecipado: as cruzes e rodinhas por lá espalhadas esgotavam o espaço para novos lances. Todas as diagonais estavam tomadas. E isso deu-me a certeza de que a carreira de um dos meus primeiros ídolos estava muito perto do fim.



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Em 1995, numa tarde de verão, entrevistei José Torres na Reboleira, perto do estádio José Gomes. O encontro com o então treinador do Portimonense foi descaindo para um evocar de memórias a que eu - jornalista imberbe, mas com alguma noção da História - prestei tributo com silêncio respeitoso e uma ou outra deixa para prolongar a conversa. Julgo que terá simpatizado comigo porque, já depois das finais da Taça dos Campeões, do Mundial de Inglaterra e do «deixem-me sonhar» antes de Estugarda, quando lhe perguntei pela saúde, fez um sorriso gozão e respondeu: «Põe a mão neste joelho, pá!» Assim que o fiz, do fundo da cadeira onde se sentava, Torres começou a dobrar e esticar a perna, com um ranger de portão de garagem, um «CRRR» de ponte levadiça, que me deu um choque eléctrico na mão e me deixou sem mais assunto para a conversa.

Foi esse «crrr» que voltei a ouvir, na última quarta-feira, a cada salto por cima dos coreanos, a cada entrada brutal ao vulto inconfundível - o alvo mais fácil de atingir que o futebol português alguma vez ofereceu às defesas adversárias.



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Numa noite de 1993, em Issy-Les-Moulineux, nos arredores de Paris, eu e mais duas mãos-cheias de jornalistas felizardos pudemos partilhar o balneário com Eusébio e Humberto Coelho. Aos 51 anos, o King ainda conseguia passear a aura nos relvados - e nenhum de nós foi capaz de perceber como, ao olharmos para aquele joelho esquerdo, com as marcas de seis operações e um volume que, sem exagero, seria nessa altura o triplo do normal.

Nessa noite pensei que tinha sido o tempo, jogo a jogo, infiltração a infiltração, a substituir-lhe meniscos, ligamentos, tendões e cartilagens, por aquelas bolas de ferro com correntes que se prendiam ao tornozelo dos prisioneiros. Talvez ainda acredite nisso.



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Memento mori. A partir de certa idade todos transportamos, ou escondemos, no corpo e na alma, os símbolos incontornáveis da nossa mortalidade. Os futebolistas ocultam-nos por debaixo das ligaduras, das meias puxadas acima e das caneleiras. Tatuagens sem cor, em baixo relevo, que contam histórias com nomes rebuscados como meniscectomias, reconstruções ligamentares, roturas de tendão, bursites, subluxações rotulianas e tendinopatias diversas.

Isaac Newton dizia ter visto mais longe por se ter apoiado nos ombros de gigantes. Um dia ainda alguém fará um ato de justiça, na forma de uma história clínica do futebol português. Nela, os registos de resultados, onzes e golos serão substituídos pela contagem das agulhas e bisturis, dos quilómetros de corte, dos oceanos de líquido sinovial que, entre passado e presente, continuam a jorrar dos joelhos de gigantes que nos sustentam os sonhos.

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Há três semanas passei por Jordão num centro comercial. Vivia-se a loucura das últimas compras de Natal, os corredores apinhados incitavam ao ziguezague e à ginga de corpo para evitar o contacto físico. Tem 61 anos, Rui Manuel Trindade Jordão, mas tive de consultar os cânones para confirmá-lo. Saiu de cena uma vez terminada a carreira e substituiu a vida pública por uma vida interior rica, que se assemelha ao desprezo pelas coisas mundanas. Como prémio, parece não ter envelhecido. Fisicamente, ainda poderia estar a esta hora a marcar golos de carambola a Joel Bats, assim tivesse Chalana joelhos para lhe fazer cruzamentos.



Vi-o passar ao de leve, driblando consumidores apressados com aquele jeito deslizante que convida a más metáforas. Em tempos chamaram-lhe antílope, gazela, ou fundista etíope. A mim, nessa tarde, pareceu-me um misto de sabedoria e esperança. Mas posso não ter visto bem, ele foi muito rápido.