Entrevista Made In é uma nova rubrica do Maisfutebol. Conversas descontraídas com futebolistas portugueses a atuar em países distantes dos grandes palcos. Bom humor, pormenores raros e muitas recordações. Aqui o protagonista é sempre o jogador de futebol. Entrevista Made In.

Guilherme Ramos, Vidir, Islândia

Pedaço de terra misterioso, envolto numa aura mística; paraíso do frio agonizante, de glaciares intermináveis e vulcões impronunciáveis; terra de encantos debruados pelo gelo, de fiordes magnânimos e géisers avassaladores.

Islândia.

Epicentro de intensa criação cultural, da música dos Sigur Rós e da camaleónica Bjork. Notas depressivas, arrepios épicos e suplicantes. Alma frígida, conspícua, transmissora de valores revolucionários e rituais deslumbrantes.

Na pequena urbe de Gardur, 1500 habitantes, vive e joga Guilherme Ramos. Depois de uma primeira experiência em 2010, ao serviço do UMF Njardvik, o antigo jogador de Amora e Lourinhanense está de regresso. «E é para continuar».

Guilherme vive uma vida muito mais simples do que o nome do clube onde joga. O Knattspyrnufélagid Vídir está na terceira divisão e prepara a época de 2015 de uma forma singular. Pelo menos do ponto de vista de um latino.

«O inverno rigoroso impede que se jogue nesta fase futebol de 11. Assim, como não há uma liga oficial de futsal, os clubes organizam um torneio desta modalidade e jogam em pavilhões», conta Guilherme ao Maisfutebol.

Curiosamente, o Vidir, clube do português, até tem uma história bonita para contar no futsal. «Em 2008 venceu este torneio e representou a Islândia na UEFA Futsal Cup. Quem sabe se não conseguiremos isso novamente?»

Para Guilherme, este período até tem redobrado interesse. Isto porque nos últimos tempos em Portugal, o avançado era treinador adjunto dos seniores do Belenenses.

«Vou ajudar os meus colegas. Eles nem gostam muito de futsal, pois o espaço é mais curto e eles gostam é de correr. Tentarei ajudar na organização. O primeiro jogo está quase a chegar».

 

Na primeira viagem para a Islândia, há uns anos, Guilherme foi apanhado em cheio no caos aéreo provocado pelas cinzas do vulcão Eyjarfjallajokull.

«Entre Lisboa e Reiquejavique, foram dois dias de distância, com um avião perdido e duas noites no Aeroporto de Heathrow, em Londres, devido ao cancelamento de vários voos», explica.

O azar podia ter sugerido um adeus imediato à aventura pensada, mas Guilherme insistiu e encantou-se pelo país. Voltou a Portugal mais tarde, decidiu abandonar o futebol em 2012 e tirou o Mestrado em Nutrição Desportiva.

Estava ligado ao futsal do Belenenses quando o telefone tocou. Da Islândia, um antigo colega de equipa acenou-lhe com um novo desafio.

«Ele é agora o meu treinador. Fizemos uma boa época, acabámos no quarto lugar e eu fui o sexto melhor marcador do campeonato. Quando sentimos capacidade de jogar, não é fácil abdicar desta paixão»
.

O contrato de Guilherme foi renovado até setembro de 2015. Nessa altura terá 30 anos. O mais provável é continuar na Islândia.

«Vivo com a minha namorada e estamos bem. Voltei em boa hora para cá. Trabalho não falta».

Guilherme vive, como dissemos, em Gardur. «É uma avenida repleta de vivendas, junto ao mar. Estamos a 30 minutos de Reiquejavique, a capital, e a dez do aeroporto internacional. Identificamo-nos muito com o país, apesar de algumas diferenças sociais gritantes».
 

Os elogios a uma sociedade «plena de ordem e civismo», aliás, só cessam na abordagem aos pratos tradicionais.

«As duas receitas favoritas dos islandeses são a cabeça de carneiro estufada e o tubarão apodrecido. O povo islandês está acima da média em quase tudo. Menos nisto, pelo menos para mim. Isso não como»
.

«Eles também consomem o bacalhau seco e carne de baleia»
, continua Guilherme Ramos. «Eu e a minha namorada dedicamo-nos muito à defesa dos direitos animais, evitamos consumir muita coisa, mas recentemente experimentámos baleia. 30 segundos na grelha e a carne estava deliciosa»
.

Vacas e ovelhas «vivem em liberdade»
nos longos pastos. Portas e janelas de casa ficam «destrancadas todo o dia»
. Crianças de quatro e cinco anos vão «sozinhas para a escola, em total segurança»
. Polícias andam «desarmados»
e raramente intervêm.

«É uma sociedade impressionante. Já vimos iPhones de última geração pousados num supermercado, por exemplo, e ninguém lhe toca. A taxa de criminalidade roça o zero»
.

«Os islandeses bebem tudo o que tenha álcool»


Voltamos ao futebol e a mais histórias narradas na primeira pessoa. É a vida de Guilherme Ramos no Vidir e na liga islandesa.

«Em Portugal entrava no balneário e cumprimentava toda a gente com um aperto de mão. Aqui não. Comecei a ver que os islandeses chegavam e não diziam nada. Estranhei, mas já não levo a mal. Para eles é normal»
.

E mais uma. Agora dentro do relvado.

«Fomos jogar ao norte da ilha e lesionei-me. Fui rasteirado e caí desamparado. Fiquei em sofrimento, cheio de dores num ombro. Chorei, queria sair, mas o livre devia ser marcado por mim, era na minha zona. Bem, marquei e fiz golo. Nem consegui festejar por culpa das dores»
.

Para acabar, mais um pormenor sobre os irredutíveis islandeses.

«Bebem tudo o que seja alcoólico. Cerveja, vinho, vodka… eu só bebo um copo de vinho tinto, de longe a longe. Mas o vinho daqui não me agrada. Encontrei uma vez um vinho alentejano, caríssimo aqui»
.  

E se o leitor for à Islândia, não perca, por nada deste mundo, a visita à Lagoa Azul.

«É um spa termal e fica na cidade de Grindavik. As águas naturais são aquecidas pelo vulcão até aos 40 graus e possui propriedades medicinais únicas. São seis milhões de litros de água efervescente numa área a rondar os cinco mil metros quadrados»