É abril e chove a mil à hora em Paços de Ferreira. Há vento, há frio, mas nenhum elemento da natureza é capaz de varrer os despojos tomados pelo emblema da Mata Real no passado fim-de-semana. 

O Futebol Clube de Paços de Ferreira já garantiu o regresso à Liga, um espaço que tem sido naturalmente seu desde o início da década de 90. 

Nada melhor, por isso, do que rumar à Capital do Móvel e falar com um homem que conhece como ninguém esse balneário. André Leão, 33 anos, médio com seis temporadas e meia de casa, executante de grande qualidade. 

Reservado mas, ao mesmo tempo, bom conversador, André Leão aproveita a entrevista ao Maisfutebol para fazer um balanço a uma carreira longa e bonita. A infância, as roupas feitas pela mãe costureira, o amor pelos dois filhos, a transferência para o FC Porto B e a influência de Aloísio, o raio-X a Luiz Phellype, o novo goleador do Sporting.

90 minutos de perguntas e respostas, um jogo completo e cheio de ritmo na nova bancada do Paços de Ferreira, uma infraestrutura de I Liga. Cinco estrelas. 

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PARTE II: «Corrigimos a asneira que fizemos o ano passado aqui no Paços»

 

André Leão com Alan num Paços-Sp. Braga em 2011

Maisfutebol – O André nasceu em Freamunde há 33 anos. O que faziam os seus pais?
André Leão –
A minha mãe era costureira e o meu pai era trolha na Casa Teixeira, uma empresa local. Não tinham qualquer ligação ao futebol. Comecei a ir aos treinos das escolinhas do Freamunde com seis anos. O meu irmão tinha oito e eu ia com ele. O que é engraçado é que o treinador quis ficar comigo e dispensou logo o meu irmão. E eu nem tinha ainda idade para jogar (risos). Claro que o meu irmão chegou a casa a chorar, não gostou nada. Ele era gordinho e tinha dificuldades. Sentiu muito isso na altura. Eu só podia jogar com o nome de outro jogador porque não podia ser inscrito. E joguei sempre no escalão acima.

MF – Os seus pais obrigaram-no a ficar na escola até ao 12º ano?
AL –
Nem fui obrigado, eu sempre gostei da escola e era bom aluno. No 10º ano tive problemas com a matemática e tive de anular a disciplina para depois fazê-la por exame. Ficou pendente e estou a completar agora o secundário. Depois vou tirar o curso de treinador. 

MF – Com que idade chega aos seniores do Freamunde?
AL –
Ainda era juvenil, tinha 16 anos. Tive sorte porque o número dez dos juniores lesionou-se num treino dos seniores e eu acabei por ser chamado aos juniores. Jogava na posição dez também. Nesse jogo, curiosamente aqui em Paços de Ferreira, vencemos 3-1 e o treinador dos seniores estava a ver o jogo. O João Mário, que é adjunto do Carlos Carvalhal. Começou a chamar-me aos seniores e nunca mais deixei de ir. A meio da época o mister vai embora e entra o Nicolau Vaqueiro. A minha estreia nos seniores foi contra o FC Porto B. Fazia 45 minutos pelos juniores ao sábado e no domingo ia para o banco dos seniores.

MF – Teve muitos clubes interessados em si?
AL –
Sim, felizmente. Ainda fui com o Antunes, o lateral esquerdo, fazer testes ao Tottenham. Correu bem. Treinei com o Aaron Lennon, com o Jermaine Defoe, com o Mido… estavam todos nas reservas. Fiz um treino de conjunto e convidaram-me a voltar no início de época. Mas, entretanto, recebi outro bom convite. 

MF – O do FC Porto.
AL –
Fui para lá emprestado pelo Freamunde, para a equipa B. O treinador era o Aloísio. Ainda este fim-de-semana cruzei-me com ele aqui na Mata Real. Veio logo cumprimentar-me, grande homem. Foi ele que apostou em mim para médio defensivo. O Nuno Coelho [agora no Belenenses] era o «6» e eu era o «8», mas o Aloísio recuou-me porque queria ter mais qualidade na saída de bola. Cheguei lá com uns anos de atraso porque nos infantis a minha mãe recusou os convites do FC Porto e do Boavista. Eu nem soube de nada, não me disseram (risos). O meu padrinho era diretor do Freamunde e falou só com os meus pais. Preferiram que eu ficasse em casa. Cheguei ao FC Porto só com 20 anos e depois fui para o Beira-Mar, com o Augusto Inácio, para a I Liga.  

MF – É nesse ano que o Beira-Mar desce?
AL –
Sim, uma época horrível, muito pior do que a do Paços no ano passado. Muitos jogadores, muitos treinadores, uma gestão feita por uma empresa espanhola, uma confusão. No final do ano fui contratado pelo Cluj e fui duas vezes campeão da Roménia. Só não joguei na Liga dos Campeões porque me lesionei gravemente num joelho. O Rodolfo Moura salvou-me a carreira, pôs-me a jogar em cinco meses. Fui operado pelo João Espregueira Mendes e recuperado pelo Rodolfo. Esse senhor merece todos os elogios, é um profissional de excelência.  

MF – Era feliz na Roménia?
AL –
Não, não era. Tinha 24 anos e decidi voltar a Portugal. Ganhava bom dinheiro, mas o mais importante é ser feliz e eu valorizei sempre a família e os amigos. Nunca me interessei por bens materiais, supérfluos. A minha roupa sempre foi feita pela minha mãe, por exemplo. Nunca liguei a roupas de marcas, a carros potentes, a sair à noite. Nunca. Preciso da minha casa, da minha mulher e filhos. O Francisco tem cinco anos e a Maria tem dez meses. É por eles que faço tudo. Vim embora do Valladolid porque não aguentei estar sem eles.

MF – Optou pela Roménia por que motivo? Tinha só 22 anos.
AL –
Não foi uma boa escolha para mim. Só me apercebi disso mais tarde. O processo da transferência não me agradou nada, mas o dinheiro era bom. Mesmo assim, o empresário da altura [Amaro Valente] ficou-me com dez por cento do meu contrato. Não posso dizer que me roubou, porque isso estava contratualizado, mas a verdade é que ele não teve qualquer influência na transferência. E ganhou a parte dele na mesma. Ele disse-me ‘vai lá e trata tu das coisas’. Eram 600 mil euros para o Beira-Mar. Na reunião estava o presidente do Beira-Mar, o meu pai, o presidente do Cluj e um empresário romeno. Fui um bocadinho pressionado, pedi mais dinheiro e eles aceitaram.

MF – Ainda esteve lá dois anos e meio.
AL –
Sim, até me lesionar no joelho. A partir daí comecei a sentir desprezo da parte dos dirigentes. Deixei de ser apoiado e fui falar com o presidente do clube. Abdiquei de dois anos e meio de contrato e de muito dinheiro para voltar a Portugal. E foi assim que vim para o Paços, era o Ulisses Morais o treinador. No início as coisas até me correram mal, tive uma lesão e as pessoas desconfiaram de mim. ‘Ei, é de Freamunde e está lesionado, cuidado com ele’. Tudo melhorou com a entrada do Rui Vitória em 2010. O Filipe Anunciação lesionou-se e eu agarrei o lugar. As pessoas do Paços perceberam que até dá jeito ter gente de Freamunde (risos). O Pedrinho também é de lá e o Luiz Carlos jogou lá. Somos gente de caráter e isso vê-se lá dentro.

MF – O André esteve depois de 2014 a 2017 no Valladolid. Fez mais de 100 jogos.
AL –
Tinha um presidente espetacular. Encontrei um clube familiar, o roupeiro mandava quase no clube (risos). Era o único português da equipa no primeiro ano. Fui obrigado a integrar-me rapidamente, aprendi espanhol sem problemas. Dei uma entrevista em castelhano um mês depois de chegar. Não subimos por muito pouco, fomos ao play-off de subida. Quando assinei pelo Valladolid eles estavam na I Divisão, mas desceram. Tentei ajudá-los, por acaso nunca conseguiram comigo. Eu vim embora e eles subiram (risos). Foram três anos bons da minha vida.

MF – Na segunda época chegaram o Bruno Varela e o Pedro Tiba.
AL –
Até foi o ano menos bom. Mudámos demasiado o plantel. Ajudei muito o Varela e ele sabe disso. Ele era mais rebelde do que é agora. Somos muito amigos, falamos todas as semanas e vamos de férias juntos. Criámos uma amizade enorme e com o Tiba a mesma coisa. É um craque, já é o capitão do Lech Poznan. O Varela só fez um jogo e perdemos 3-0 contra o Maiorca. Era suplente do Kepa.

MF – O guarda-redes 80 milhões. É assim tão bom?
AL –
O Kepa já era um bom guarda-redes no Valladolid, embora apresentasse algumas limitações. A jogar com os pés, por exemplo. Aliás, acho que continua um bocadinho inseguro nisso. Dava-me bem com ele porque a namorada do Kepa estava a fazer Erasmus em Coimbra e ele fazia-me muitas perguntas. Perdi o contacto com ele. Já lhe mandei duas mensagens, mas não respondeu. Não sei porquê (risos).  

MF – No Paços esteve com o Luiz Phellype um ano e meio. Tem qualidade para o Sporting?
AL –
Faz golos, recebe bem de costas, tem qualidade técnica. Aqui tinha o problema do peso, até porque esteve algum tempo sem ser titular nos anos anteriores. Se calhar corre mais num jogo do Sporting do que em cinco treinos no Paços. Ele era assim, tinha o feitio dele. Falei com ele, disse-lhe que tinha nível, mas que tinha de por a cabecinha no lugar. Pode evoluir, sabe que tem de dar mais para jogar. Apercebeu-se disso e está a responder bem. 

MF – O André tem uma carreira bonita. Faltou-lhe um grande português e a Seleção Nacional?
AL –
Tenho orgulho no que fiz. Se calhar faltou-me isso, não sei. Não cheguei à Seleção A, mas joguei pela Seleção de Sub20 e estive no Torneio de Toulon em 2006. Os selecionadores eram o Rui Caçador e o Paulo Sousa. Ainda fiz os torneios da Madeira e de Toulon. Na estreia pela seleção marquei à Dinamarca e ganhámos 3-0 no Funchal.

MF - …
AL –
Por isso é que eu digo que errei ao ir para a Roménia. Podia jogar muito bem, mas ninguém via os jogos cá em Portugal. Na altura, em 2007, muito menos. Só em 2013, com o Paulo Fonseca, se voltou a falar do meu nome para a seleção.