Qual é a primeira imagem que nos vem à cabeça quando pensamos na seleção dos Camarões? 

1. A dança tribal de Roger Milla a celebrar golos na bandeirola de canto
2. Roger Milla a roubar a bola ao pobre do Higuita e a marcar à Colômbia
3. O jogo eterno contra Inglaterra no Itália-90

As respostas não andarão muito longe destas hipóteses, mas há um português determinado a adicionar uma alínea nesta contrato com a memória: António Conceição, português da freguesia de Maximinos, 58 anos. 

'Toni', como era conhecido nos tempos de lateral direito do Sp. Braga - e mais tarde da Seleção Nacional e do FC Porto - é o selecionador nacional desta potência africana desde setembro. 

O Maisfutebol convida António Conceição para o balanço destes primeiros seis meses. Fala-se de nomes famosos e de África, claro, sempre com a vitória na CAN2021 no pensamento. Um homem maduro, equilibrado e com muitos resultados bons para apresentar, sobretudo na Roménia. 
 

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Maisfutebol – Nunca tinha sido selecionador nacional de um país. Ficou surpreendido com o convite da federação camaronesa?

António Conceição – Sim, admito que sim. O primeiro contacto foi feito por um amigo meu, um advogado espanhol. Eu até lhe disse que tinha a ideia de que estas federações procuravam normalmente nomes mais sonantes. Aliás, o meu antecessor foi o Clarence Seedorf. Acabei por dar o meu ok e fui a uma reunião a Paris com responsáveis do Ministério dos Desportos. Senti que foi uma entrevista para emprego, até porque tenho a impressão de que havia mais candidatos. Disse-lhes o que pretendia para a equipa e para o futebol camaronês, mostrei-lhes o meu passado e eles gostaram do que ouviram.

MF – Falar da seleção dos Camarões é falar sobretudo da grande equipa que chegou aos quartos-de-final do Mundial de Itália em 1990.
AC – A seleção do Roger Milla. Curiosamente, já estive algumas vezes com ele. Fui a casa do Roger uma vez e continua com o mesmo sorriso de sempre, mas mais acabadote, claro (risos). Senti empatia com a figura, senti que gostou de mim. É embaixador do futebol camaronês e tem também uma escola de futebol no país. Continua a ser um nome muito respeitado no país.

António Conceição na casa de Roger Milla

MF – Já esteve com o Samuel Eto’o também?
AC – Com o Eto’o ainda não. É outra figura emblemática no futebol deste país, uma das maiores potências africanas.

MF – Foi isso que o levou a aceitar o convite, essa grandeza histórica dos Camarões?
AC – Eu saí do Cluj, recebi outros convites, mas entendi - com a minha equipa técnica – que não estavam reunidas as condições mínimas para exercer um bom trabalho. Gostei da abordagem camaronesa, o contrato financeiramente é bom e senti um enorme apoio por parte do presidente do país e do Ministro dos Desportos. São duas figuras influentes no futebol do país.

MF – O objetivo mais visível é a CAN2021.
AC – Sim, mas com esta paragem provocada pela COVID-19 a calendarização terá de ser refeita. Não sei como é que as datas vão ser desenhadas. O nosso último jogo foi em novembro e desde lá já fizemos coisas muito importantes. Viajei por toda a Europa para analisar o maior número possível de atletas, estabelecemos uma metodologia para aplicar em toda a federação, estamos a preparar tudo com enorme rigor. Este país tem condições fabulosas em matéria humana, a população adora futebol.

MF – Já viveu algum episódio invulgar na sua estadia nos Camarões?
AC – Outro dia estávamos a viajar para o Ministério dos Desportos e vimos que estava a ser realizado um campeonato de rua. Estamos a falar de milhares de pessoas em êxtase a ver jogos de futebol num campo de terra batida. Ficámos a observar à distância. Isto só pode mesmo acontecer em África. É fascinante.

MF – As convocatórias têm sobretudo nomes de atletas a atuar no estrangeiro.
AC – Sim, 99 por cento. Mas já vi mais de dez jogos da liga camaronesa e na última convocatória estiveram alguns estreantes. A exigência é muito grande, mas queremos olhar para todos os campeonatos com muita atenção.    

MF – Está a gostar do projeto, gosta de ser selecionador?
AC – É muito, muito diferente de ser treinador de um clube. Mas estou a gostar. Sinto às vezes falta do cheiro da relva, de estar todos os dias no balneário. Este é um trabalho de gabinete, de pesquisa, de observação, mas é um privilégio estar a trabalhar numa das maiores potências africanas.

MF – O COVID-19 também está a afetar os Camarões?
AC – Está a chegar lá, infelizmente. Eu tive sorte e consegui voltar para Portugal no passado domingo e já estou em minha casa. E por cá ficarei nos próximos tempos. É esse o conselho que dou a todos os portugueses: fiquem em casa. África está a começar a ser afetada e, como sabem, os cuidados básicos de saúde lá não são comparáveis aos europeus. Creio que já havia pelo menos três casos de pessoas infetadas: duas em Douala e uma em Yaoundé. Muito provavelmente eles também vão fechar as fronteiras. Se não tivesse voltado para Portugal, provavelmente ficaria lá retido.

MF – Tem saudades e vontade de voltar ao futebol português?
AC – Nunca direi que não quero voltar a Portugal. É o meu país, apesar de todos os defeitos e problemas que o nosso futebol possa ter. Mas nesta altura estou muito feliz com o projeto dos Camarões e pelo menos até 2021 esse é o meu único foco.