Dois campeonatos nacionais de juniores conquistados e duas presenças em finais da UEFA Youth League são pouco ao lado dos talentos que ajudou a formar. «Isso é o meu maior orgulho. Mais do que os títulos e as finais, é ver os miúdos a chegarem ao nível a que chegaram», conta João Tralhão.

Nesta parte da entrevista ao Maisfutebol, o ex-treinador da formação do Benfica falou um dos prodígios que lhe passou pelas mãos e que está agora na alta roda do futebol mundial. O Bernardo Silva é um jogador de exceção: sempre o foi. Acho que vai atingir muito mais», profetiza.

Tralhão admite que «foi pena» que a geração 94 não tenha sido aproveitada, mas diz que as razões de contexto pesaram mais do que a equipa técnica, liderada por Jorge Jesus, que não aproveitou valores como Bernardo e Cancelo, hoje nomes sólidos no futebol europeu.

Ainda os elogios ao trabalho de Bruno Lage, com quem conviveu vários anos no Benfica, e um olhar sobre a mais recente casta de jovens valores do clube liderada por João Félix, a mais recente coqueluche da formação encarnada: «Está entre os maiores talentos que me passaram pelas mãos.»

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«Isto vai explodir mais dia, menos dia. Ninguém nos vai agarrar.» Foi isto que disse há uns meses quando estava de saída do Benfica. Já explodiu?

Quando disse isso, disse-o com algum atraso. E disse-o genuinamente, sem querer armar-me em adivinho, porque sabia do que estava a falar. E acredito que ainda vão aparecer mais valores. Há gerações de grande qualidade dentro do Benfica, as pessoas que lá trabalham são de elite e os frutos vão aparecer cada vez mais.

Há já alguns anos que se observa uma aposta crescente do Benfica na formação. Há vários jogadores que se afirmaram na equipa principal, mas essa estratégia parece estar a ser mais vincada nesta temporada, com o aparecimento de João Félix, Gedson, Florentino, Ferro e Jota, já para não falar de Rúben Dias. Peca por tardio?

Não diria isso. Há momentos-chave. Para não olhar muito para trás, recordo-me de em tempos o Renato Sanches estar a jogar contra o Galatasaray nos juniores e no jogo seguinte foi titular pela equipa principal contra o Astana. Há momentos críticos para lançar um jogador. E esses momentos não dependem só da preparação do jovem. O treinador do Benfica também veio da formação: tem a visão de que é preciso acreditar e dar confiança aos jovens para que eles possam crescer, mas também sabe que é preciso ter um suporte de jogadores experientes que conseguem aguentar a entrada dos jovens na equipa principal. Este momento que o Benfica está a passar dá-nos a indicação clara de que no momento certo, com as pessoas certas, os recursos certos e a visão certa, é possível isto acontecer.

Mas esta geração que está a aparecer pertence a uma casta diferente das anteriores?

É uma geração fortíssima de jogadores muito talentosos. Jogadores que, comparando com outros da sua idade em todo o mundo, já estão num nível superior. O que fizeram quando foram à final da Youth League [2017] é um bom indicador. O João Félix, o Gedson e o Jota nem eram sub-19: eram sub-18. A equipa que jogou a titular era composta praticamente por jogadores do primeiro ano de juniores. E a competição começou em agosto: nessa altura eles estavam a sair dos juvenis. Estes miúdos não apareceram agora: estão integrados num processo que vem de há muito tempo e têm um background grande.

Era inevitável que chegassem mais cedo ou mais tarde à equipa principal, ou é necessário haver um treinador com um determinado perfil que lhes dê espaço?

Não quero fazer comparações de treinadores, mas recordo-me de que o Rui [Vitória] também lançou muitos jovens que têm sucesso hoje em dia. Como o Bruno [Lage] está a lançar agora. Mas não há outro caminho! Se tens ao teu dispor jovens com tanta qualidade e com valor para jogar na equipa principal, tens de recorrer a esses recursos. Caso contrário, alguma coisa está errada.

Falou há pouco da Youth League, onde o Benfica esteve em duas finais, a primeira delas em 2014. Dos jogadores que disputaram essa final, só Gonçalo Guedes conseguiu consolidar-se na equipa principal. Não lhe parece pouco?

Não me parece pouco. A primeira edição da Youth League tem uma história muito própria. Nesse ano não tínhamos a ambição concreta de chegar sequer aos quatro primeiros. Nessa altura, a formação estava a crescer e ainda não tinha chegado ao patamar atual. Estava-se numa fase final de desenvolvimento e agora a fase é de consolidação. Esse foi um dos fatores pelos quais muitos jogadores não foram aproveitados. Há ali jogadores que ainda não chegaram a um nível de topo – se calhar não vão chegar lá – mas que também têm bom nível. A cara mais visível é o Gonçalo Guedes, que chegou ao PSG e se afirmou no Valência. Se cada geração criar um jogador que chegue a esse patamar, acho que já podemos falar de uma geração de sucesso.

«Concordo com o Bernardo: é uma pena que essa geração [de 94] não tenha sido uma geração base no Benfica»

Bernardo Silva disse recentemente numa entrevista ao Record que foi pena não se ter aproveitado a geração de 94. [João Tralhão anui com a cabeça]. O que sente ao vê-lo no Manchester City ou a João Cancelo na Juventus, dois jogadores que lhe passaram pelas mãos?

Isso é o meu maior orgulho. Mais do que os títulos e as finais, é ver os miúdos a chegarem ao nível a que chegaram. O Bernardo é um jogador de exceção: sempre o foi. Precisava da confiança e de alguns erros de percurso para perceber que a vida não é fácil ao nível do futebol. Isso ajudou-o a ser um jogador ainda mais completo. E hoje percebe-se que é um jogador muito completo porque passou por muitas situações ao nível da formação e depois no Mónaco e agora no Manchester City.

Não se afirmou logo assim que chegou a Inglaterra.

Não se afirmou totalmente, mas pela capacidade de trabalho, pelo talento e capacidade mental que tem, está a ser considerado um dos jogadores mais influentes no segundo ano. No Mónaco foi igual: adaptou-se, cresceu, lutou e atingiu o nível que atingiu. Falar acima do City já é muito, mas acho que vai atingir muito mais. Ele, o Cancelo, o Hélder Costa, o Fábio Cardoso e o Bruno Varela pertencem a uma geração muito talentosa. Se o Benfica na altura estivesse num outro momento e houvesse um alinhamento mais preparado entre todas as estruturas na altura, provavelmente essa geração teria outro aproveitamento.

É culpa de alguém?

Acho que não é culpa de ninguém. Não é culpa da estrutura, dos treinadores, nem da formação.

Teve a ver com a necessidade imediata de o Benfica ganhar títulos, recorrendo a jogadores que talvez dessem mais garantias de rendimento imediato?

Poderá ter sido. É uma perspetiva de gestão. O que sei é que a geração de 94 foi campeã nacional de juniores no primeiro ano da equipa B, em 2013. Alguns jogadores já estavam a ter alguns minutos na equipa B. Se contabilizarem depois o número de minutos que o Rúben Dias, o Ferro, o João Félix e o Gedson fizeram na II Liga para chegarem à equipa principal, vão perceber que não vieram propriamente só com o campeonato de juniores, juvenis e de iniciados. Vêm com isso tudo, mas também com tempo na II Liga e, agora, nos sub-23. E chegam à Liga com mais alguma experiência a jogar contra homens. Isso também ajuda. A geração de 94 coincidiu com o primeiro ano da equipa B e acho que faltavam ainda algumas etapas no processo para levar essa geração à equipa principal. Mas concordo com o Bernardo: é uma pena que essa geração não tenha sido uma geração base no Benfica, porque era fantástica a todos os níveis. Mas acredito que um dia os benfiquistas ainda vão rejubilar no Estádio da Luz com alguns jogadores dessa geração.

Mas não sente, na condição de elemento também responsável pelo desenvolvimento de jogadores como Bernardo Silva ou Cancelo, uma certa frustração por ver que não foi retirado deles o devido rendimento desportivo no Benfica?

Acho que frustração não. Sentiria frustração se eles não estivessem a afirmar-se no futebol profissional, isso sim. Sinto-me orgulhoso por estarem a afirmar-se ao mais alto nível, mas também sei que a nível internacional há clubes que oferecem um certo tipo de condições que o Benfica não consegue acompanhar. O futebol português não consegue acompanhar certo tipo de propostas, não só financeiramente, mas também quando surge a oportunidade de jogar numa Premier League. Isso mexe com um miúdo.

A chegada de Rui Vitória ao Benfica em 2015 mudou a forma como se olha para a formação desde o topo da pirâmide? Pergunto-lhe isto porque é estabelecida muitas vezes uma comparação entre ele e Jorge Jesus no que diz respeito ao aproveitamento da formação…

«Muitas vezes conotamos um treinador por apostar ou não e há decisões que são mais alargadas. Se calhar, no momento em que Jorge Jesus estava na equipa principal do Benfica ainda faltavam algumas etapas para poder lançar jovens com o nível a que estão a ser lançados neste momento. Com o Rui Vitória, essas etapas estavam mais preenchidas e agora ainda estão mais, como acredito que daqui a dois ou três anos ainda vão estar mais.

Rui Vitória chegou num contexto mais favorável.

Penso que chegou num contexto em que havia condições melhores para lançar os jovens. A todos os níveis.

«Bruno Lage entende o o futebol e conhece o treino como ninguém. Treinou todos os escalões e tem uns bons milhares de exercícios aplicados ao longo da carreira»

Bruno Lage está há cerca de um mês à frente da equipa principal do Benfica. Sente que esse lugar podia ser seu se não tivesse saído para o Mónaco?

Não. E tenho uma visão diferente. O Bruno é um treinador extraordinário. Tem um projeto que o leva também a ter esta oportunidade. Sou amigo dele e trabalhámos juntos muitos anos na formação do Benfica. Numa determinada altura, ele optou por seguir o caminho dele e foi para fora, onde trabalhou com um treinador conceituado. Quando voltou, já trazia outra experiência.

Olha para ele como a pessoa certa no lugar certo, não só pela bagagem que tem, mas também pelo conhecimento que tem do fenómeno da formação?

Sim. Penso que a decisão tomada foi uma decisão consistente e não de impulso. Quando começou a temporada, se calhar ninguém esperava uma mudança de treinador, mas quando aconteceu e o Bruno avançou, havia um bom suporte por detrás da decisão: o suporte é o Bruno estar preparado e o Benfica saber que tem ali um treinador que conhece muito bem a formação e o clube. Esta mistura está a ter sucesso.

Bruno Lage pode ser mais do que uma solução de recurso?

Sim, acredito. Por vezes tem-se a ideia de que os treinadores que têm um background da formação estão sempre em teste. Não: são treinadores como os outros. Acho que o facto de estar na formação, e digo-o com todo o à-vontade, dá um nível muito alargado de experiência e conhecimento sobre o treino e o jogo. Se esse treinador entender o contexto profissional, é tão forte como qualquer outro treinador do mundo.

A aposta em Bruno Lage serve de motivação também para os treinadores da formação do Benfica, na medida em que podem acreditar que um dia pode acontecer o mesmo com eles?

Acho que é um exemplo para todos os jovens treinadores de formação, não só em Portugal, como na Europa. Um treinador que vem da formação é um treinador como os outros. Mais importante é o perfil do treinador e não de onde ele vem.

Do que conhece de Bruno Lage, a que se deve o sucesso imediato que tem tido neste mês e pouco?

O Bruno tem uma mentalidade vencedora e sabe lidar muito bem com pessoas. Entende o futebol e conhece o treino como ninguém: treinou todos os escalões e tem uns bons milhares de exercícios aplicados ao longo da carreira. Tem uma experiência muito grande ao nível do treino e da gestão de equipas, mas tem uma outra vantagem: já conseguiu ver o processo com uma visão não de líder, por trás. Estes anos em que esteve fora e a trabalhar como adjunto ajudaram-no a ver coisas que às vezes não se conseguem ver quando se lidera. Ter passado pela formação e ter sido adjunto num país como Inglaterra tornaram-no preparado para este desafio.

Tem visto os jogos do Benfica?

Tenho. Tenho visto quase todos os jogos portugueses.

E que análise faz ao antes e ao agora do Benfica. Parece óbvio que melhorou…

O futebol do Rui Vitória também era atrativo. Conquistou dois campeonatos e esteve muito próximo de conquistar o terceiro. Mas por algum motivo no passado recente as coisas não estavam a acontecer da mesma forma e o futebol não era o mesmo. Quando o Bruno chegou, havia coisas que podiam ser corrigidas e essa mestria dele ajudou a equipa a passar para outro patamar. Há uma diferença grande em relação aos meses anteriores. O Bruno e a sua equipa de trabalho perceberam o que estava a correr menos bem e conseguiram maximizar isso.

E um jogador que tem sido maximizado é João Félix. O que ele tem feito está a superar as suas expectativas, tendo em conta que só este ano é que chegou à equipa principal?

Não. Até brincava com muitos amigos meus no Mónaco e dizia-lhes que se havia altura para agarrá-lo, era enquanto ele não estava a jogar.

É verdade que houve uma proposta do Mónaco por ele?

[risos] Isso não posso dizer. Mas dizia que era um jogador que qualquer clube gostava de ter. Mas sabia que, mesmo não estando a jogar, o presidente do Benfica não estava a dormir e tinha consciência do valor dele. O valor do João era muito superior a qualquer proposta que pudesse chegar na altura. Quando ele começasse a jogar, as coisas iam ser muito claras. Eu brincava no Mónaco acerca disso, mas também com outros amigos que tenho noutros clubes europeus de topo: ‘Se querem pegar nele, é agora’.

«Quando João Félix começou a treinar com os juniores, percebi logo que era um jogador de outra dimensão»

Antes desta explosão de Félix no Benfica, já havia consciência do potencial dele lá fora?

Sim, da parte de muita gente. Sempre que o João faz uma coisa diferente, e felizmente é em todos os jogos, o Thierry [Henry] manda-me vídeos e diz: ‘Foi um erro. Devíamos ter pegado neste 'gajo' mais cedo [risos]’. Claro que o diz na brincadeira. É a dizer que ele é craque. Quando uma pessoa como o Thierry, que é de outra realidade, reconhece jogadores como o João Félix, acho que ele está apresentado.

Há jogadores que se percebe ao primeiro toque na bola que são craques ou isso é um mito?

[Risos] Antigamente dizíamos que pela forma como um jogador calçava as botas já percebíamos se era ou não bom jogador. Isso não existe, mas o João é daquele tipo de jogadores em que basta olhar para ele dois minutos para percebermos que é diferente dos outros. Tem uma forma de estar no campo diferente.

Recorda-se da primeira impressão que ele lhe causou?

A primeira vez que ouvi falar dele foi um amigo meu, o Pepijn Lijnders – que era adjunto do Jurgen Klopp e que tinha treinado no Porto – que dizia que havia um jogador tecnicamente fenomenal. Vi alguns vídeos dele na altura e fiquei impressionado. Quando chegou aos juvenis do Benfica, via-se que mesmo sendo muito franzino tinha ali um talento diferenciado. Quando começou a treinar com os juniores, percebi logo que era um jogador de outra dimensão. Aliás, ele sempre teve um papel de protagonista, mesmo quando era sub-18 na Youth League. É um jogador completo e no panorama internacional não conseguimos ver muitos assim.

Bruno Lage disse há dias que este impacto mediático lhe está a passar ao lado. Acredita nisso?

Tenho a certeza! Quem conhece o João, sabe que tem as ideias bem claras e arrumadas. Sabe ser humilde o suficiente para reconhecer que ainda tem um trajeto grande para percorrer. Saber lidar com o insucesso é muito importante, tal como é importante também saber lidar com o sucesso. Mas não nos podemos esquecer que ele é um menino. Tem a maturidade de um menino de 19 anos. A maturidade emocional enquanto jogador é que está muito acima da média.

João Félix é o maior talento que já lhe passou pelas mãos?

Está entre os maiores talentos que me passaram pelas mãos, mas estar aqui a distinguir um era injusto para os outros todos.

Consegue fazer um onze de jogadores que lhe passaram pelas mãos na formação do Benfica?

Tinha de encontrar quatro, cinco ou seis onzes para fazer caber jogadores como o Bruno Varela, o João Cancelo, o Rafael Ramos, o Hélder Costa, o Ivan Cavaleiro, o Renato Sanches, o João Carvalho, o Félix, o Bernardo, o André Gomes… Não conseguia colocá-los todos numa equipa.

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(Artigo originalmente publicado às 23:54 de 14-02-2019)