Dois meses depois de rescindir o contrato com o Desportivo das Aves, Quentin Beunardeau abre o coração numa longa conversa com o Maisfutebol - sempre em bom português. O guarda-redes francês, vice-campeão da Europa de seleções em Sub19, fala sobre os problemas financeiros que afetam o clube nortenho e diz que tudo começou no momento em que o surto da Covid-19 afetou a China, país de origem do investidor do clube. 

Aos 26 anos, Beunardeau é um atleta livre e já viu a Comissão Arbitral Paritária da Liga Portuguesa de Futebol Profissional (LPFP) a dar-lhe razão nos motivos invocados para desvinculação lateral com o emblema da Vila das Aves.


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Maisfutebol – Como tem sido a sua vida depois de romper a ligação com o Aves?
Quentin Beunardeau – Tenho aproveitado para estar com a família, porque tenho uma bebé de 16 semanas. A única coisa positiva da pandemia é isto: ter tempo para as pessoas que amo. Mas tenho saído pouco de casa, é complicado. Tenho mudado muitas fraldas (risos), mas não me posso queixar. A minha pequenina dorme muito bem, quase sempre das nove da noite às dez da manhã.

É verdade que já teve convites bons para sair do Aves no verão de 2019?
Sim, tive a oportunidade de sair, mas o clube quis renovar o meu contrato. Quando me dão confiança, eu só penso em retribuir. Não podia esquecer que o Aves me deu a oportunidade de jogar, fui muito bem tratado quando cheguei a Portugal e a renovação do contrato foi a minha forma também de agradecer ao clube. Nessa fase sentia-me muito bem tratado. Foi uma escolha de carreira, estava feliz lá. Agora sou um jogador livre, as coisas mudaram.

O Aves conseguiu fazer uma boa segunda volta em 2018/19, o treinador [Inácio] continuou, mas as coisas esta época correram muito mal. Consegue explicar as razões para isto?  
Quando se muda 85 por cento do plantel, está tudo dito. Entrámos mal, fomos perdendo a confiança e depois apareceram os problemas financeiros. Tudo isso mexe com a cabeça dos jogadores, não nos sentíamos livres a jogar. Faltava o foco. Perder, perder, perder, é difícil jogar assim. Tínhamos jogadores de qualidade, mas sem confiança.

Para um guarda-redes não é fácil jogar numa equipa assim, descrente.
Na segunda volta da época passada acho que só dois guarda-redes sofreram menos golos do que eu [16 golos sofridos em 17 jogos]. Não jogo sozinho. Preciso da minha equipa e a minha equipa precisa de mim. Tentei fazer tudo para as coisas correrem bem, mas não jogo sozinho. A culpa desta má época do Aves é de todos, mas ainda é possível a manutenção e espero que isso aconteça. Faltam oito jogos, é complicado.

Agora há um Aves-FC Porto sem o Beunardeau e sem o Casillas.
Mas vai lá estar o Fábio [Szymonek]. Somos amigos, amigos próximos, e temos falado. Para ele não é fácil, porque estava a jogar poucas vezes. Tem de ganhar confiança e tenho ajudado no que posso. Tem de sentir prazer em estar na baliza agora, aproveitar estas oportunidades.

No Aves trabalhou com quatro treinadores. Gostou de algum em especial?
São muito diferentes, gostei de estar com os quatro e não tenho nada a dizer de nenhum deles. O José Mota ganhou uma Taça de Portugal no Aves e é bom treinador, não teve sorte. O Inácio entrou bem, agarrou rapidamente no grupo. O Nuno Manta tem boas ideias e sempre me deu confiança. Só posso agradecer-lhes. Aos treinadores principais e aos treinadores dos guarda-redes.

Um deles foi o Quim, um homem com um nome forte no futebol português.
Tem muita experiência e sabe tudo sobre o futebol português. Falou muito comigo no início da época, tentou ajudar-me e sei que pode ter uma carreira bonita como treinador dos guarda-redes.

Foi pai há poucos meses. Também por isso foi impossível aguentar os salários em atraso no Aves?
Quando perdemos a confiança numa direção, não é possível continuar a trabalhar juntos. Disseram muitas coisas, enfim, falei com a minha família, o meu agente e acho que a rescisão foi a melhor decisão a tomar. Não posso estar a jogar para pessoas em quem não confio. Estou triste porque gosto do clube, da claque, dos colegas, mas tinha de ser. Sou pai e quero ser feliz na minha vida privada. Não queria passar os dias a pensar ‘quando é que vou receber o salário?’. Segui em frente. Desejo boa sorte a todos na Vila das Aves.

Quando é que começou a perceber que as coisas no clube não estavam bem?
Principalmente quando começámos a ouvir as notícias sobre o surto de Covid-19 na China. Esperámos, tentámos resolver as coisas, mas não foi possível.