Aos 55 anos, Luís Castro regressou a Trás-os-Montes para estar mais perto do pai e fez uma das melhores épocas do Desportivo de Chaves na Liga.

A época começou mal, com um ponto nas cinco primeiras jornadas da Liga, e até, confessa, ponderou colocar o lugar à disposição, mas a partir de determinada altura o futebol positivo voltou a conquistar o país, tal como acontecera com o Rio Ave, na época passada.

Casado, pai de duas filhas, Luís Castro vive no Porto, mas sente de perto os problemas da interioridade. Tanto na sua Vila Real natal, como em Águeda, onde tem casa e morou durante anos, ou em em Chaves, onde viveu ao longo da época.  

Com a Casa da Música, no Porto, como pano de fundo, o treinador do Desp. Chaves abordou nesta entrevista temas como as desigualdades no futebol português, a ligação a Trás-os-Montes e à família. Confessou ainda que quer «andar rápido» pelos objetivos de vida e de carreira.

Parte II: «No FC Porto não resolvi nada, só ajudei a que o tempo passasse»

Parte III: «Vendia embalagens por 300 euros/mês, hoje só consigo vender futebol»

Nesta Liga o Desportivo de Chaves fez a melhor pontuação de sempre, melhor sequência de jogos sem perder. Conta para si ou são apenas números?

É passado. No futebol, o que aconteceu já não influencia muito o que queremos hoje. Nós temos sempre o objetivo de fazer melhor. Esses números fazem o nosso caminho. Valida o que achamos que deve ser o treino e o jogo.

Mas no início da época estabeleceu esta meta?

A primeira era o Desportivo de Chaves ficar na Liga. Normalmente, há muito entusiasmo no primeiro ano que se sobe. Tudo gera novidade e emoção. O segundo ano é o mais perigoso. Foi feito alguma coisa de bom para trás. As pessoas podem começar a pensar: "Pronto, já estamos." E o perigo aparece. É quando nos distraímos um pouco. A minha missão neste segundo ano do Desp. Chaves na Liga foi colocar todos em alerta. Através de quê? De exigência máxima, rigor máximo, disciplina máxima. Depois, há 16 lugares que se podem ocupar. Era interessante, para nós, ficarmos na primeira metade da Liga. O que é que interessava passar na mensagem? Deveríamos fazer, no mínimo, um ponto por jogo. E não nos perturbarmos com as derrotas. Temos de mostrar tranquilidade na hora das derrotas. Não mostrando que é normal perder, mas mostrando que não nos afetam. Esse era outro dos objetivos: ficar nos primeiros nove lugares, sem oscilações internas.

A partir de dado momento, pareceu possível um lugar que poderia dar acesso à Europa?

Há três equipas que historicamente ocupam os três primeiros lugares: Benfica, Sporting e FC Porto. Depois, há quatro candidatos crónicos a ficar logo a seguir: Sp. Braga, Vitória de Guimarães, Marítimo e Rio Ave. Quatro com três… sete. Se isto correr normalmente, qual é o máximo? O 8.º lugar. Porém, partimos para o campeonato com jogos muito complicados. À quinta jornada, tínhamos um ponto.

Houve receio que pudesse logo aí haver uma quebra de confiança por parte da direção?

Eu ainda olho para o futebol desta maneira: o poder não está todo nas administrações. O poder também está nos treinadores. As administrações têm o poder de dispensar o nosso trabalho. Mas também nós temos o direito de nos dispensarmos.

Chegou a equacionar isso?

Cheguei, cheguei…

Logo no início?

Sim, sim, claro! Por que não? Eu analiso permanentemente aquilo que faço. É normal que no meu dia a dia perceba o que está a acontecer comigo e com a equipa.

Mas uma rotura nessa fase seria mais da sua parte do que da administração?

Se chegasse a esse momento, dever-me-ia sentar com o meu presidente. Ou se ele pensasse também, dever-se-ia sentar comigo.

Houve um momento em que tudo começou a encarreirar…

Nós tínhamos feito uma pré-época muito boa. Isso transmitiu-nos confiança. O campeonato reduziu-a, com derrota-derrota-empate-derrota-derrota. À terceira jornada, se tínhamos ido perder fora com o Vitória e perder em casa com o Benfica, já pouco interessava. O que fica depois são os pontos e o trabalho, que tem de ser validado pelos resultados. Era preciso, urgentemente, validar.

Foi preciso mudar alguma coisa? Nunca abdicou do sistema tático. Foi uma questão de tempo?

Houve mudanças micro dentro do macro. Nós construíamos a quatro, a três, a cinco. Na segunda linha de construção, tanto colocávamos dois jogadores, como três. Tanto aproximávamos os alas, com os púnhamos mais distantes. Nós íamos aprendendo com os nossos problemas. Com os nossos jogadores. Porque muitas vezes as pessoas ouvem: “Não abdico do meu sistema”, mas as dinâmicas é que ditam o que se vai passar. Também éramos condicionados pelos problemas que os nossos adversários nos punham. Obrigaram a criar novas dinâmicas de forma permanente. Lançamos o jogo num conjunto de pressupostos que muitas vezes não se verificam. Muitas vezes, não estamos preparados, porque não sabemos o que vamos encontrar do outro lado. As equipas constroem-se nesta dinâmica: problemas, resolução, análise, reflexão, planeamento. E vamos caminhando, até que chegamos a um ponto em que as equipas já viveram tantos problemas e tiveram de resolver, que ficam mais capazes.

Recordamos alguns dados a nível pontual: zero pontos com os quatro primeiros. Com quatro equipas [Moreirense, Marítimo, Portimonense, Estoril], faz 24 pontos, mais de metade do total. Sentiu esses problemas com os grandes?

Com os grandes, claro. Com Sp. Braga, Benfica, Sporting e FC Porto, perdemos os oito jogos. Nunca conseguimos dar-nos bem com o volume ofensivo das equipas grandes.

O Desp. Chaves deu-se pior com as equipas grandes porque procura jogar bom futebol?

Acho que não. Equipa que não joga feio e joga bem terá sempre mais possibilidades de ganhar e pontuar. É por acreditar nisso que acho que podemos ir a jogo sempre com a nossa forma de jogar. Temos muito mais ganhos do que perdas. Não podemos ser hipócritas ao ponto de dizer que uma equipa que tem 110 milhões de orçamento quando joga contra outra de quatro ou cinco milhões… pá… é possível. É possível! Agora, não é o padrão. Há os desvios à regra, as equipas que conseguiam pontos contra os grandes. Mas o normal não é isso…

Muitas vezes recai sobre as equipas que têm orçamentos inferiores a responsabilidade de fazer frente…

Mas nós temos obrigação de fazer frente. Não me estou a refugiar na falta de querer assumir responsabilidade. Tivemos nos jogos contra os grandes momentos muito difíceis. De quebra da nossa identidade. Obrigados pelo maior poder da equipa adversária. Essa é a pior sensação que um treinador tem. Muitas vezes de impotência. É frustrante. Horrível. Mas, aqui e ali, fui sentindo.

Este campeonato revelou uma dinâmica: o Sp. Braga aproximou-se dos grandes e houve fosso de 24 pontos entre o 4.º e o 5.º classificado. Essa diferença veio para ficar?

Sempre que coisas muito más que acontecem, o mundo arranja forma de as ultrapassar. Acho que o futebol português vai ser capaz. Agora, vai demorar. É só encurtar distâncias. A falta de competitividade leva a que as equipas não se preparem da melhor forma para dificuldades quando entram nas provas europeias. Enquanto treinador do Desp. Chaves, não posso estar interessado num jogador da segunda Liga Espanhola e não ter capacidade financeira para o ir buscar. Ou somos campeões europeus na sua plenitude, ou somos campeões europeus por acaso. Acho que fomos na plenitude. Por isso, temos de refletir para levar a um campeonato mais competitivo.

Essa competitividade existia mais quando o Luís era jogador?

Havia mais, sim. Vejam no mundo. Eu fiz esse estudo e apresentei-o. Entre o quarto e o quinto, nas ligas que consultei, pelo menos italiana, francesa, espanhola, inglesa, mesmo a árabe… em nenhuma existia tantos pontos de diferença.

É indiciador de algo mais estrutural, não foi só conjuntural…

Claro que é estrutural. Neste momento, todos que lideramos processos no futebol, temos culpas. Muitas vezes quando se ouve isto: “Ah, é para este deixar de ser campeão, aquele deixar...”. Não, não, não. Até pode ser o mesmo clube campeão durante 30 anos ou 40. Temos é de percorrer um caminho diferente.

A partir de quem é que isso pode mudar? Há pouco, disse que o poder não está todo nas administrações. Pode isto ser a partir dos jogadores, treinadores?

Devemos ter capacidade de intervenção. Fazê-lo, mas depois de analisarmos e refletirmos. Fazer uma intervenção de forma superficial, é facilmente detetável por quem pensa o futebol mais fundo. Tem perna curta. Para que isto não aconteça, os grandes responsáveis do futebol português têm de chamar os intervenientes. Não é para mim entendível não se conseguirem solucionar problemas. Não é! Temos de parar, sentar, falar... Para ver se conseguimos melhorar o futebol.

Este regresso a Chaves teve também o lado emocional?

Claramente.

Correspondeu às expetativas? O Chaves é um clube com boa moldura humana. É importante também em termos sociológicos, haver um clube no interior que se afirma.

Mais um problema do futebol português. Mais um. Não é só o futebol que tomba para o litoral. São as oportunidades…

A interioridade é um dos grandes problemas de Portugal? 

É muito acentuado. As pessoas que falam sobre a interioridade, falam de forma superficial. Se sentissem, não falavam como falam. É uma desigualdade de oportunidades incrível. Devia envergonhar quem dirige Portugal. Agora, também se sente uma grande vontade de ultrapassar esse problema por parte das pessoas que, no dia a dia, trabalham no interior. Muitas vezes, sentem-se impotentes porque não têm ao lado quem lhes dê a mão para toda aquela vontade. Para toda aquela avidez de oportunidade. Muitas vezes… “Ah, vou ao médico”. “Ah, está bem, então daqui a bocado…” “Ah, não, não, mas eu tenho de ir ao médico ao Porto!”. Está a ver? Eram coisas que eu já não estava habituado a ouvir há muitos anos. As pessoas não terem as coisas ao pé delas. Mas isso ainda nos motiva mais. E fui à procura disso, enquanto pessoa nascida em Trás-os-Montes.

Um desafio maior, não é?

Houve várias coisas que me levaram a Chaves. No FC Porto, fomos campeões na II Liga. No Rio Ave as coisas saíram bem. Eu tenho que andar rápido com a minha vida, já não tenho 30 anos nem 40. Quanto mais processos percorrer e quanto melhor os fizer, mais validado fica o treinador. E achava que ali estava a oportunidade de ir à minha região trabalhar. De ajudar na progressão de um clube. [pausa] A parte familiar também foi importante. A saúde do meu pai levou-me a Trás-os-Montes, para poder estar ao lado dele nos momentos finais da vida dele. Trabalhei sempre de forma entusiasta, embora tivesse passado um período horrível da minha vida. Infelizmente, não tive o meu pai o tempo que eu gostaria. Cheguei a Chaves com o meu pai, terminei a época sem o meu pai. Isso foi marcante. Por outro lado, deu-me energia para fazer trabalho e ficar ainda mais satisfeito com o que fiz com a minha equipa técnica, com a minha estrutura, com os meus jogadores.

Quer continuar a andar rápido ou está bem onde está?

Não é quero; tenho que andar rápido. Para atingir objetivos que ainda tenho de vida, tenho que andar rápido. Não sou um treinador com 40 anos. Estive no FC Porto dez anos, há quem diga que foi muito tempo. Não temos de nos penalizar por estar mais ou menos tempo. Há muitos objetivos da minha vida que não vão ser cumpridos. Como nas vossas vidas [aponta]. Agora, nunca vamos deixar de olhar para eles.

Mas tem essa avidez por desafios? Se lhe aparecer um bom desafio…

Não estou ávido. A avidez normalmente ligo a instabilidade interior…

Certo.

Estou em paz comigo. Sinto-me bem comigo. Não me preocupo com a minha reputação, com o que os outros pensam de mim. Preocupo-me com a minha consciência e com tudo o que penso. Em não me desiludir. Tive poucos momentos de desilusão comigo mesmo. Esta época, em alguns jogos, a minha consciência ficou um bocadinho abalada, porque depois de ter refletido sobre aquilo que fizemos, achava que podia ter feito mais enquanto treinador. Durante a semana e no dia do jogo. Com essa base de pensamento, tenho de percorrer caminho para atingir o que quero. Já o disse: gostaria de ser campeão nacional. Se não for em Portugal, num outro país.

Mas também já disse que não o atrai muito treinar fora de Portugal…

Sim. Nunca me atraiu muito treinar fora de Portugal porque gosto de ter a família por perto. Para mim, a família é muito equilibradora. Com a família a dispersar-se pelo mundo, poderei ser mais um a dispersar. [risos]

Parte II: «No FC Porto não resolvi nada, só ajudei a que o tempo passasse»

Parte III: «Vendia embalagens por 300 euros/mês, hoje só consigo vender futebol»

artigo atualizado: hora original 23:55, 17-05-2018