FOTOS: Ricardo Jorge Castro

Domingos Paciência em grande entrevista ao Maisfutebol. Poucos dias depois de completar 50 anos, o antigo ponta-de-lança abre o coração e o baú de memórias. Ele é o sexto melhor marcador de sempre do FC Porto, o último português a ganhar a Bola de Prata e o homem que resolveu três clássicos em Alvalade para os azuis e brancos.

Uma conversa longa e obrigatória, a dois dias do grande Clássico de sábado.

Esses jogos entre Sporting e FC Porto preenchem parte de uma entrevista que passa pela morte do grande amigo Rui Filipe e pela recordação de todos os treinadores com quem trabalhou nas Antas. 

Tudo numa conversa em frente ao rio Douro, num banco do jardim do Passeio Alegre.   

PARTE 2: «No Sporting não tiveram paciência comigo»

PARTE 3: «Madjer já era jogador de playstation há 30 anos»

PARTE 4: «Falhei a foto do plantel 87/88 por estar a tirar a carta»

Maisfutebol – O Domingos resolveu três épocas seguidas o Clássico de Alvalade para o FC Porto. 93/94, 94/95 e 95/96.
Domingos Paciência –
Com quatro golos [risos]. O FC Porto interpretava muito bem as ideias ofensivas dos treinadores. Ou comigo sozinho na frente, ou com o Kostadinov ao meu lado. Eu atravessava uma fase muito boa, de confiança, e esses jogos ficaram marcados na minha carreira. Eu adorava jogos grandes, eram os que me davam mais prazer. Nunca tive medo de errar e nesses jogos assumia a responsabilidade de desequilibrar. Claro que isto acontecia por tive treinadores que me davam liberdade total. Artur Jorge, Carlos Alberto Silva, Bobby Robson… eles diziam-me ‘vai para cima, dribla, chuta, ganha faltas’. No início da carreira fui muitas vezes assobiado nas Antas porque era demasiado individualista. Mas eu era bom assim.

MF – E os treinadores gostavam do Domingos assim.
DP –
Lembro-me de o Carlos Alberto Silva vir falar comigo, agarrar-me no braço e dizer: ‘tu comigo jogas, tens a minha confiança’. Eu saía da reunião com ele e pensava que não podia deixar ficar mal este homem. E isso ajudava-me nesses jogos grandes. Em Alvalade e na Luz também. Há um jogo na Luz em que o FC Porto ganha 3-2 [1991/1992] e eu saio do banco na segunda parte. O CAS falou comigo. ‘Deixa-te estar, hoje vais estar comigo e vais entrar para decidir’. Eu entrei, ofereci um golo ao Timofte e outro ao Kostadinov.

Os dois golos de Domingos em Alvalade (95/96):


MF – E os tais golos em Alvalade, lembra-se de todos?
DP – Claro, mas antes deixe-me dizer-lhe que eu já nos juniores tinha uma tendência para marcar ao Sporting [risos]. Fiz dois golaços ao ângulo, um deles num remate pouco depois do meio-campo. Em Alvalade marque uma vez de penálti, depois de uma falta do Iordanov sobre mim na área. Noutro… lembro-me que apanhámos um massacre do Sporting [risos]. O Ivic era o nosso treinador e eles tinham uma equipa de luxo. Valckx, Juskowiak, Balakov, Filipe, Figo, Peixe, uma super equipa. Aos sete minutos há um passe longo, eu ganho ao Peixe, descaio para o lado direito e pumba, de pé esquerdo. A bola entra ao nível da cabeça do Costinha e não lhe dá tempo de reação. Ganhámos 1-0 e sofremos, sofremos. Mas nós tínhamos um espírito incrível. Dentro do campo olhávamos uns para os outros e dizíamos ‘dá-lhes a bola, deixa-os vir, deixa-os vir’. Unimo-nos e ganhámos muitos jogos assim.

MF – E há o fatídico jogo da época 94/95, quando cai o varandim em Alvalade.
DP – Horrível. Vimos tudo no autocarro. A grade caiu e as pessoas ficaram amontoadas. Foi traumatizante. Se fosse hoje em dia… não havia jogo. E bem. Ficámos todos condicionados por aquilo. Futebol tem de ser prazer. Morreram pessoas ali. Que sentido fez esse jogo?


MF – Não foi o único jogo da sua carreira em que teve de jogar nessas condições.
DP –
Ui, nem me fale. Refere-se à morte do Rui Filipe? Bem, nem é bom falar nisso.

MF – Como é possível não terem adiado esse Beira Mar-FC Porto?
DP –
É difícil responder. Tinha de haver força da parte da federação e cancelar de imediato esses dois jogos de que estamos a falar. Os espetadores teriam de entender isso.

MF – Como é que o plantel do FC Porto ficou a saber da morte do Rui Filipe?
DP – Estávamos no Gaia Hotel, de manhã, e fomos informados por um dirigente na hora do pequeno-almoço. O acidente aconteceu de madrugada, não sei se às duas ou às três. Não queríamos acreditar. Os passos que o Rui deu nessa noite eram os passos que dávamos muitas vezes juntos. O jantar em Labruge, num restaurante conhecido, e a viagem para casa dele, em Vale de Cambra. Esse restaurante ficava no meio dos campos de milho, era o refúgio do nosso plantel. A tal mística era construída ali também, resolvíamos nessas mesas os nossos assuntos. O Rui era uma pessoa muito querida, muito querida mesmo. Simples, trazia muitas vezes queijos e enchidos para nós. Unimo-nos muito à volta do Rui Filipe.

MF – O Rui era pouco mais velho do que o Domingos.
DP – Dois anos. Fomos colegas de quarto no lar do FC Porto durante dois ou três anos. Era uma pessoa muito próxima de mim. Ele era excecional, não tinha inimigos. A forma dele estar na vida era muito simples. Esse jogo em Aveiro… marcámos um golo e abraçámo-nos a chorar. Horrível.

MF – Voltando a Alvalade. Há um jogo, já em 2000, em que o Domingos é expulso no banco de suplentes.
DP- Eu e o Fernando Santos, creio eu. Fui substituído e no banco tive uma reação quente. ‘É falta o c…..’. A única vez em que fui expulso na carreira foi no banco. Pelo árbitro Isidoro Rodrigues. E como treinador só fui expulso no Estádio do Mar, quando estava no Sp. Braga.

DOMINGOS AVALIA OS TREINADORES NO FC PORTO:

Tomislav Ivic: «Era um apaixonado pelo futebol, por uma esferográfica e por um caderno. Rabiscava tudo. A paixão do Ivic contagiava a equipa.»

Quinito: «Vinha do Sp. Espinho, uma realidade diferente. Apanhou uma geração de jogadores maduros. A pré-época foi boa, mas o campeonato começou mal. Acabou por ser sacrificado devido às conquistas anteriores. Quando se ganha tem de haver renovação e encontrar pessoas que querem ganhar. Houve ali um abaixamento de nível e isso prejudicou o Quinito. O jogador à Porto tem de ganhar todos os anos, mas nessa fase a equipa baixou de nível. Tinha um coração grande, tratava-me por ‘meu menino’. Fiz alguns jogos com ele, não estava a ser fácil afirmar-me.»

Artur Jorge: «Volta ao clube para renovar o plantel. Se calhar com um ano de atraso. Chegam outros jogadores. O Rui Neves, o Marito, o Caetano, o Rui Águas e o Dito, o Morgado, o Jorge Couto. Não ganhámos nesse primeiro ano dele, mas voltámos a ganhar logo a seguir. Fui campeão sete vezes em dez anos. E tudo começa nessa renovação. Era um treinador focado nos resultados, muito metódico. Apanhei-o mais tarde no Tenerife outra vez e adorei trabalhar com ele. Estava muito diferente, mais aberto. No FC Porto só vi o Artur a rir-se com o Branco, um dos colegas mais malucos que apanhei no futebol. Pela positiva, um brincalhão. O Artur adorava o Branco, adorava.»

Carlos Alberto Silva: «O melhor treinador que eu tive. Ou, pelo menos, aquele que mais liberdade me deu e que mais acreditou em mim. Nunca mais me esqueço de o ver a correr no tapete, no ginásio, já com quase 60 anos. Corria uma hora numa velocidade impressionante. Eu via aquilo e sentia-me obrigado a dar tudo, tudo. O Carlos percebeu facilmente o que é o FC Porto.»

Bobby Robson: «A alegria em treino. Os jogadores queriam acordar para trabalhar com ele. Era marcar golos, golos, não gostava de fazer substituições e era muito próximo dos colegas. Ainda apostou no Iuran, mas mostrei-lhe que estava errado [risos]. É com ele que ganho a Bola de Prata. Ainda hoje utilizo como treinador alguns métodos do Bobby Robson e não duvido que o José Mourinho também o faz.»

António Oliveira: «Teve a vantagem de ter sido um futebolista craque. Sabia no momento certo transmitir como podíamos usufruir de um jogo de futebol. Tinha essa capacidade.»

Fernando Santos: «Pessoa de trato espetacular. Metódico, trabalhador e que sempre criou uma barreira na relação com o jogador. Havia um tempo muito limitado para celebrar a vitória. Depois voltava a ser o ranhoso do costume [risos]. Grande treinador, grande pessoa, gosto muito dele. Um homem de fé, de coração grande. Passa muito bem a mensagem pretendida, sabe agarrar os jogadores.»

[entrevista originalmente publicada às 23h55, 10-01-2019]