No verão de 2019, Mário Silva era o treinador que todos queriam. Campeão europeu pelos sub19 do FC Porto, inteligente, simpático e conhecedor. Saiu dos dragões para um projeto em Espanha e voltou a Portugal para se estrear na I Liga.

No Rio Ave esteve cinco meses. Viveu momentos fortíssimos - a eliminação do Besiktas e a cruel derrota contra o poderoso AC Milan nos penáltis -, deixou a equipa numa posição confortável no campeonato e foi demitido a dois dias do Ano Novo. 

Dez meses depois da separação, Mário Silva dá a primeira entrevista, fala finalmente sobre o Rio Ave e escolhe o Maisfutebol para mostrar que aos 44 anos é um treinador feito, cativante no discurso e na arte de ser cavalheiro. 

Uma personagem que muita falta faz ao primeiro escalão do nosso futebol. 


PARTE II: «Saí do FC Porto para poder ser um treinador de verdade»

PARTE III: A «serenidade» de Diogo Costa, o «futebol de rua» de Fábio Vieira

Maisfutebol – Saiu do Rio Ave há dez meses. O que tem feito o Mário Silva?

Mário Silva – Tenho aproveitado para fazer coisas que não consigo fazer quando estou a treinar um clube. Infelizmente, e sublinho isto, estou há dez meses no desemprego. Estou a dar outra atenção à família, ganhei paixão por fazer caminhadas. Consigo ter momentos diferentes com os meus familiares mais próximos. Quando estou a treinar, a função consome-me todas as horas do dia.

MF – O Mário é pai de trigémeos. A família é grande.

MS – É verdade, já têm 16 anos. Fazemos tudo pelos nossos filhos, para sempre. Temos olhado muito para a vertente escolar e desportiva deles, para ajudá-los em tudo.

MF – Disseram-nos que há aí dois esquerdinos com talento a aparecer.

MS – É verdade (risos). O Martim joga nos sub17 do FC Porto e o Miguel no Rio Ave. Quero que eles se divirtam com paixão no futebol, mas nunca colocando o desporto à frente da formação escolar. Eu e a mãe deles investimos muito no sucesso escolar dele e queremos que eles usufruam disso. O mundo do futebol é ingrato. É muito difícil chegarmos onde queremos, chegar lá em cima. Espero que continuem a ser excelentes alunos, já estão no 11º ano. O pai não conseguiu tirar um curso superior e quero que eles o façam. Eu concluí o 12º ano mais tarde, depois de ter deixado a escola com 16 anos. Devo ao futebol tudo o que sou, mas ainda bem que ainda fui a tempo de acabar pelo menos o ensino secundário.

MF – É daqueles treinadores obcecado por futebol e que passa os tempos livres a ver e a analisar o jogo?

MS – Nunca desligo do futebol, nunca. Adoro ver jogos, vou aos estádios sempre que posso, estarei no FC Porto-Boavista, por exemplo. Gosto de perceber como as equipas jogam e hoje em dia a oferta é tremenda. Sigo vários campeonatos, embora o maior foco seja a liga portuguesa. Gosto de refletir e de retirar conclusões sobre os jogos que vejo. Além disso, tento ver os jogos dos meus filhos. Todos os fins de semana tenho, pelo menos, dois para ver ao vivo (risos).

MF – O futebol é adrenalina, é viciante. Já tem saudades de entrar num balneário?

MS – Muitas. Eu estive 11 anos seguidos a trabalhar, sem interrupções. Felizmente. Agora estou há uns meses parado e custa-me. O trabalhar para fazer crescer a equipa e os jogadores, o cheiro do balneário, as rotinas dentro do clube, tudo isso me fascina. Neste interregno tirei o IV Nível do Curso UEFA Pro e foi uma grande experiência. Tenho a esperança de voltar rapidamente ao ativo.

MF – Esses cursos têm a parte teórica e prática. Imagino que sejam semanas intensas.

MS – Sim, bastante. Nós fazemos de jogadores no campo e é gratificante. Percebemos melhor o objetivo de determinado exercício estando nos dois lados. O pior é que a parte física às vezes não está preparada para tanto trabalho e as lesões aparecem. Foram seis semanas de muita partilha de informação e de aprendizagem. Foi pesado, mas matei o «bichinho».

MF – O que lhe dá mais prazer na função de treinador? Os 90 minutos de jogo, a possibilidade de mexer na equipa, o lado do treino, o entrar no balneário e ter a equipa toda à frente?

MS – Tudo me estimula. Um bom treinador não é só aquele que percebe do jogo e do treino. Do meu ponto de vista, o lado humano é fundamental. Gerir os diversos departamentos, as palestras, a gestão da adrenalina, tudo isso é estimulante. Saber motivar, saber falar, perceber o que aquele jogador está a sentir em determinado momento. Por isso é que as equipas técnicas hoje em dia são também multidisciplinares, embora no topo da pirâmide esteja o treinador.

MF – Passámos do paradigma do 4x3x3 ou 4x4x2 para o aparecimento do 3x4x3. Muitas equipas, mesmo em Portugal, jogam agora com esse sistema. Como se explica isto?

MS – O sistema é importante. Gosto de um jogo posicional e o sistema de que mais gosto é o 4x3x3, mas com variantes. Dou um exemplo: no meio-campo gosto de ter um pivô e dois médios interiores. As minhas equipas têm três homens na primeira fase de construção e o terceiro homem pode ser esse médio mais recuado – pode posicionar-se na zona central ou numa mais lateral. Um pivô defensivo é fundamental para a minha ideia de jogo. Tem de ter capacidade para construir de forma fluída e ajudar a projetar bem os laterais, para que os alas/extremos se coloquem mais dentro. Isso dá-nos opções para jogar por fora e por dentro. Depois temos de atrair o adversário para as zonas que queremos. A minha ideia é importante, mas também nunca descuro aquilo que é o adversário – o potencial e as debilidades opostas. O futebol é muitas vezes o jogo do gato e do rato. Atrair, puxar a bola para um lado e depois levar para o outro…

MF – Nas bancadas não há muita paciência para quem joga para trás.

MS – Eu costumo dizer isto: se posso jogar para a frente, não vou jogar para o lado; se posso jogar para o lado, não vou jogar para trás; se não tiver nenhuma das melhores opções, então jogo para trás com o objetivo de ter melhores condições para voltar a atacar. No Rio Ave dominávamos o jogo em posse, como eu gosto, mas sem nunca deixar de capitalizar uma transição rápida.

MF – É um treinador mais romântico ou mais pragmático?

MS – Mais pragmático. Mas tudo o que eu disse antes só faz sentido se existir um grupo unido. Isso é absolutamente inegociável. Um grupo forte tem muito mais possibilidades de ter sucesso. As coisas são funcionam assim. O treinador pode ter boas ideias e jogadores talentosos. De nada adianta se não houver a comunhão de comportamentos e valores. Quando ganhei a Liga dos Campeões e a Taça UEFA com o FC Porto, o plantel era extraordinariamente forte. O grupo era fantástico.

MF – O que faltou para que as ideias do Mário Silva vingassem no Rio Ave?

MS – A derrota contra o AC Milan, pela forma como aconteceu, foi determinante. No futebol os «ses» não existem, mas se as coisas tivessem sido diferentes… se tivéssemos perdido de forma clara, tinha custado menos. Teria sido mais fácil de ultrapassar. Esse foi o momento crucial. Depois de tudo o que fizemos, sofrer o golo do empate na última jogada do prolongamento e depois perder como perdemos nos penáltis, afetou todos de forma muito negativa. Se tivéssemos passado a eliminatória, tudo seria diferente. A equipa foi abaixo e não tivemos a capacidade de superar a pancada rapidamente.

A noite em que o Rio Ave ficou a segundos de tombar o AC Milan

MF – Quando saiu, o Rio Ave estava numa posição relativamente tranquila com 11 jornadas feitas. Acabou por descer.

MS – Tinha condições para continuar. No campeonato as coisas não estavam mal. Tivemos uma fase menos positiva, sim, mas tínhamos de ultrapassar isso e entrar numa onda positiva. Para grande tristeza minha, vi o Rio Ave a descer de divisão. O momento marcante foi a derrota contra o Milan. Emocionalmente, a equipa caiu. Senti que a motivação que existia no meu grupo esmoreceu. Enfim, depois a direção decidiu prescindir de mim e tive de respeitar. Segui o meu caminho.

MF – O Mário saiu no dia 28 de dezembro, poucos dias antes de o mercado reabrir.

MS – Primeiro, tenho de agradecer ao Rio Ave por ter apostado em mim e feito de mim um treinador de I Liga. Segundo, no momento que saí sentia que tinha condições de ficar e de fazer pequenos ajustes no mercado de janeiro. Havia dois ou três alvos identificados e esperava poder fazer essas contratações para corrigir algumas lacunas. A vida de um treinador de futebol é assim. Foi a primeira vez que fui despedido. Há algum que nunca tenha sido? O Pep Guardiola, talvez o Jurgen Klopp. Não estava habituado e custou-me a recuperar. Deixou-me triste. Resta-me esperar por uma nova oportunidade.

MF – O seu Rio Ave tinha qualidade com bola, em posse, mas muitas dificuldades em fazer golos. Concorda?

MS – Sim, concordo. Havia qualidade no nosso jogo. Controlávamos o jogo com bola, em posse, para desorganizar o adversário e criar oportunidades. Depois, é verdade, tínhamos muitas más decisões no último terço, no momento de finalização. Construíamos bem as coisas e tínhamos esse problema. Tivemos jogos em que dominávamos e só conseguíamos empatar. A equipa produzia e tinha, é verdade, problemas em fazer golos.

MF – Já tem na cabeça o próximo passo a dar na carreira?

MS – Quero um clube que acredite em mim e me dê tempo para trabalhar e implementar as minhas ideias. Isso é que é fundamental. Já trabalhei fora de Portugal como jogador e como treinador, tenho vontade em voltar a sair, mas adoro o meu país e adoro trabalhar cá. Tive já várias abordagens, algumas não aceitei e noutras não houve acordo e decidiram por outros, o que é normal.