Uma casa de família. Maxi Pereira abre a porta ao Maisfutebol e mostra-nos o seu mundo. A simpatia da esposa, as gargalhadas dos filhos, a companhia do cão Fofo. O que se segue é uma conversa que se prolonga duas horas e atravessa os 12 anos - «quase 13», corrige Maxi - dos Pereira em Portugal.  

Os últimos seis meses sem futebol, os planos para a carreira aos 35 anos, as memórias da troca da Luz para o Dragão em 2015, a opinião sobre Sérgio Conceição e Jorge Jesus, o adeus ao universo azul e branco no final da época passada e as reflexões sobre o futebol moderno. Treinador profissional? Não contem com ele.  

Simpatia desarmante, abertura total, todas as explicações sobre as opções tomadas e por tomar. Com um café bem português à mesa e uma paixão confessa pela Cidade Invicta. «Nunca tive esta qualidade de vida noutro sítio e já viajei por todo o mundo.»

Esta é a primeira entrevista dada por Maxi Pereira após a saída do FC Porto. No Maisfutebol

PARTE I: «A minha carreira não acabou, estou louco para jogar»

PARTE II: «Com o Jesus a minha cabeça parecia explodir»

PARTE III: «Vejo o FC Porto e sinto que ainda teria lugar»

PARTE IV: «Não traí o Benfica, o FC Porto fez-me sentir importante»

Maisfutebol – A sua imagem de marca é a raça, a entrega. Foi sempre assim?
Maxi Pereira – Nunca percebi como é possível alguém não dar o máximo em campo. Ganhamos um salário bom, temos uma vida privilegiada, não podemos defraudar os milhares de adeptos que fazem sacrifícios para nos verem e apoiarem. Sempre me senti tranquilo nesse sentido, sempre dei tudo. Nunca fui o melhor jogador da equipa, mas deixei tudo em todos os jogos.

MF – No balneário há conversas sobre esse estatuto de privilégio que vocês têm?
MP – Falamos, claro, principalmente com os colegas mais próximos. Mas as pessoas têm de entender que o futebolista profissional, de topo, vive mesmo numa borbulha, num mundo à parte. Estamos fora da realidade. Eu nunca me esqueço de onde vim, da minha família pobre, e é isso que me puxa para o mundo real. Agora, pensemos um pouco: sou um rapaz de 19 anos, alguém me dá o bilhete premiado da lotaria e de repente estou a ganhar todo o dinheiro que quero e que nunca esperei ganhar. Não é fácil gerir tudo isto. Posso dar um exemplo concreto daquilo que é a vida de um futebolista profissional

MF – Vamos a isso, Maxi.
MP – Hoje, pela primeira vez, fui tratar da minha Via Verde. Não fazia ideia do que era tirar uma senha e estar numa fila de espera. Sempre tive pessoas a tratarem-me das burocracias nos clubes. Carro, casa, água, luz, nunca me preocupei com isso até agora. Essa não é a realidade de uma pessoa, digamos assim, normal. É por isso que só posso respeitar as pessoas que fazem centenas de quilómetros para ver o seu clube a jogar. Conheço adeptos que foram de autocarro para França e Inglaterra só para ver o Benfica ou o FC Porto. O futebolista é egoísta, fica chateado se só entrar a faltar dez minutos e diz mal do treinador. Eu também o fiz. A minha forma de aproveitar o que o futebol me deu foi correr, correr. Por que não haveria de dar tudo? Por estar cansado? Não pode ser.

MF – Quatro Copas América, três Mundiais, 125 jogos pelo Uruguai. O que sente ao ouvir este registo?
MP – É bonito ouvir esses dados. Tive muita sorte. Comecei com o Jorge Fossatti na seleção e depois apanhei o maestro Tabarez. Deu-me sempre muita confiança. Tudo começou em 2007 e até há uma história bonita. Eu ia às seleções jovens e conheci um roupeiro da federação. Esse roupeiro foi promovido à seleção principal na mesma altura do que eu e mantemos uma amizade bonita até hoje. Já me veio visitar várias vezes aqui ao Porto. Foi esse amigo que me disse que o maestro me queria convocar para a Copa América, mas tinha dúvidas porque eu estava lesionado. Para verem como confiava em mim: fiz 45 minutos num jogo, o maestro Tabarez gostou e convocou-me. Não fiz o primeiro jogo, mas comecei no segundo jogo contra a Bolívia e iniciou-se aí o ciclo-Maxi na seleção.

MF – Um ciclo que durou até ao Mundial de 2018. Ficou chateado por não ter jogado?
MP – O maestro apostou no Guillermo Varela, um miúdo que na altura estava no Peñarol e agora joga no Copenhaga. Começou ele, depois jogou o Martin Cáceres e ainda o Diego Laxalt. Eu sentia-me muito bem, mas acabei por não jogar. Fomos até aos quartos-de-final, quando perdemos contra a França por 2-0. Podia ter jogado pelo menos um jogo, para mostrar como estava. Fiquei triste, claro.

MF – A idade também no Uruguai é um tabu?
MP – Sim, um bocadinho. Não é como em Itália. Quem passa dos 33/34 anos é um jogador acabado. Se eles soubessem como se treina no Porto… (risos). No FC Porto cuidei-me como nunca. Sempre ia dormir às 11 horas, comia bem, não bebia. Claro que se perde alguma velocidade, mas ganha-se experiência e outras coisas. Aquela falta que já não fazemos, gerimos melhor as coisas.

MF – O Uruguai é um país pequeno, mas tem uma grande seleção.
MP – Sim, somos três milhões e temos conseguido fazer coisas bonitas. Mas ganhar o Mundial é duro. Alemanha, Portugal, Itália, Inglaterra, França, Argentina, Brasil. A gente no Uruguai vive para o futebol, talvez por haver muita gente necessitada. O futebol é a solução para muitas famílias. Somos um povo aguerrido e isso marca a diferença. A seleção mexe muito connosco e sinto-me um privilegiado por ter vivido tudo isto. Jogar um Mundial é a coisa mais linda que me aconteceu na carreira. Mas vejam como são as coisas: estava no Mundial e por não estar a jogar andava triste. Não estava a desfrutar. Isso é injusto para quem nunca teve essa possibilidade de lá ir.

MF – É a isso que se chama um animal competitivo?
MP – É muito isso. Estamos tão focados em nós, na pressão que metemos sobre nós, que se as coisas não correm como queremos… não aproveitamos nada.

MF – Por falar em aproveitar. Qual foi o estádio mais bonito em que jogou?
MP – O que mais me marcou foi o do Liverpool, Anfield Road. Joguei lá duas vezes com o FC Porto. O hino do clube, toda a gente a jogar, mágico. Depois… os estádios do Besiktas e do Galatasaray. Os assobios e o fanatismo são incríveis, ninguém se senta. Também adorei jogar em Wembley.   

MF – Tem visto futebol em Portugal?
MP – Nos estádios, não. Nunca mais fui. Prefiro ficar em casa a ver na televisão ou num restaurante. Mas se está a jogar o FC Porto, sinto que estão a olhar para mim e a ver as minhas reações (risos). O futebol tira-nos esta tranquilidade, é normal. Mas no Porto tenho uma vista muito mais normal. O Iker Casillas também é muito assim, reage muito bem quando anda na rua, sempre tranquilo, impressionante. É muito conhecido, mas percebeu que no Porto pode andar descontraído. Em Lisboa seria impossível.