Por onde passa o futuro de Vítor Pereira? O treinador português bicampeão pelo FC Porto sabe muito bem para onde quer ir. E para onde não quer. Os 52 anos e a carreira recheada de títulos - é um dos únicos três portugueses campeões em três países - levam-no a refletir com uma serenidade que ao próprio surpreende, principalmente por ser numa altura em que não está no ativo. 

Nesta grande entrevista ao Maisfutebol, Vítor Pereira assume que esteve duas vezes muito perto de assinar por clubes da Premier League. E que numa delas chegou a preparar o jogo seguinte. 

PARTE I: «Pedi desculpa ao Jesus por lhe ter chamado egocêntrico»

PARTE II: «Tinha de parar, a adrenalina de ser treinador é uma droga»

PARTE III: «No golo do Kelvin eu estava a pedir para ele cruzar»

PARTE IV: «3x4x3? As 'estruturas transformers' vieram para ficar»

PARTE VI: «Na Alemanha desci à terra e percebi que não faço milagres»

Maisfutebol – Quantas vezes esteve perto de assinar por um clube de Inglaterra?

Vítor Pereira – Estive duas vezes muito perto. É por isso que já não crio grandes expetativas quando vou a entrevistas. Já fui a tantas. Os ingleses têm uma forma muito particular de contratar. Nós aqui vamos uma entrevista para assinar contrato. Só não o fazemos se houver algum desacordo. Lá não é assim. Eles entrevistam cinco, seis, sete, dez treinadores e depois propõem o contrato. Discutimos o contrato, definimos a equipa técnica, objetivos, salários, tudo. Isto aconteceu-me duas vezes em Inglaterra. Numa das vezes eu até já estava a preparar o jogo seguinte. Percebi que é assim, é o padrão deles.

MF – Dizia há pouco ter ficado agradado com o que encontrou na China. Consegue detalhar o que mais o agradou?

VP – O campeonato é competitivo e há jogadores estrangeiros de grande nível, que fazem a diferença. Assisti ao vivo à evolução tática de todos os clubes. ´Não podemos ter como objetivo um nível altíssimo tático, mas senti na minha equipa a aquisição de conhecimentos e a respetiva evolução. A China tem de evoluir e pode evoluir. Respondi há pouco a uma entrevista com 32 questões de um jornal chinês e as minhas conclusões foram estas: têm de apostar na formação, porque o jogador chinês tem défice técnico e de decisão; têm de levar treinadores qualificados para a formação; têm de apostar na formação de treinadores chineses, claramente; têm de apostar na formação dos árbitros, porque vi jogos com um tempo efetivo de jogo terrível, não têm sensibilidade para ler o jogo. Em Portugal esse debate também tem de ser feito. Perdemos muito tempo em cada falta. Nós jogámos contra o Yokohama Marinos, do Japão, e fiquei impressionado com a qualidade tática e técnica do ponto de vista ofensivo. E não perdiam uma fração de segundo na marcação de faltas. Parávamos e a bola já estava perto da nossa baliza.

MF – Os estrangeiros têm nível, mas muitos estão em final de carreira.

VP – Concordo e também referi isso nessa entrevista que dei. Quem vai para a China no final da carreira, vai pela questão financeira. Esse aspeto é brutal. Mas não podemos ir só com esse objetivo. A China tem de cativar estrangeiros mais jovens. Eles agora vão colocar tetos salariais e isso vai atrair outro tipo de atletas. Se calhar um europeu com um nível mais baixo, mas com mais aspirações. Pode ser bom para a liga chinesa. Gostei muito do primeiro e do segundo ano lá. O terceiro foi atípico. Fomos primeiros na fase regular e depois não levámos nenhum ponto para a fase a eliminar. O que ficou para trás não interessou nada. Foi um campeonato que me desgastou muito, a mim e a toda a gente.

MF – O seu Shanghai SIPG acabou em 2018 com o grande domínio do Guangzhou. Sente que em Portugal não perceberam a dimensão do feito?

VP – Não perceberam, é verdade. Eles vinham de sete títulos seguidos e é um clube que tinha os melhores chineses e os melhores estrangeiros. E há mais um dado curioso. Para fortalecerem a seleção chinesa, a federação aceitou naturalizar vários atletas estrangeiros. Quase todos brasileiros [Elkeson, Alan, Aloísio e Fernandinho, todos do Guangzhou]. Começámos a jogar contra equipas que tinham muitos estrangeiros em campo. No meu clube não havia nenhum naturalizado. Quebrar a hegemonia do Guangzhou foi um feito tremendo. Nós tínhamos o Hulk, o Óscar, o Elkeson… aliás, vejam bem como as coisas são: o Elkeson naturalizou-se e a meio do segundo ano saiu da nossa equipa para o Guangzhou. Foi uma perda importante, associada à do Wu Lei, que marcou 30 golos em 2018 e saiu para o Espanhol de Barcelona. Isso mexeu muito com a nossa estabilidade.

MF – Que clube é o Shanghai SIPG?

VP – É um clube estável, sério, paga sempre a tempo e horas, deixou-me trabalhar com liberdade. Agora vai construir um estádio novo, mas já não o inaugurei. Muito bonito. O nosso centro de treinos era alugado, não era de topo, mas tinha boas condições. Deixei lá bons amigos, os jogadores chineses gostam de mim. Não sei se voltarei à China, mas senti-me realizado com o que fiz na China. Não foram três anos perdidos. Para além do aspeto financeiro, senti que o nosso trabalho foi recompensado.

MF – Tem convicções fortes para as suas equipas. Como foi o processo de transmitir essas convicções a futebolistas chineses?

VP – Demorou mais um bocadinho. Mas o exemplo mais marcante de contraste foi passar do FC Porto para a Arábia Saudita. Eu organizava um exercício de treino no Porto, num espaço curto, a um toque, e aquilo fluía com uma qualidade impressionante. Funcionava quase a meio toque, que é tocar muito ao de leve. Espaço curto, pressão intensa. Na Arábia Saudita esse exercício era um caos, não resultava. Mas temos de ser flexíveis. Aumentava o espaço, permitia quatro/cinco toques e eles iam ganhando prazer em ter a bola. A determinada altura já o faziam a dois toques. Não é de um dia para o outro e temos de encontrar soluções para ter condições de sucesso. Se eles não conseguem, o treinador é que está errado. Temos de simplificar as coisas para operacionalizá-las.

MF – Foi mais fácil lidar com os futebolistas chineses ou com os estrangeiros já numa fase avançada da carreira?

VP – Com os chineses é muito simples. É um handicap deles, aliás. Eles têm de ser orientados, ter diretrizes, são bastante humildes. No início havia alguma falta de seriedade. Havia um cruzamento mal feito no treino e eles riam-se, era uma galhofa. Tivemos de colocar exigência, ambição, responsabilidade. No primeiro jogo contra o Guangzhou fomos massacrados. Ninguém queria a bola. Tive de desmontar essa mentalidade e foi possível. Depois fomos ganhar a casa do Guangzhou por 5-4, decidimos lá o campeonato. Em muitos dos países por onde passei, a componente tática era desfeita pela componente emocional. Na Arábia os jogos resolviam-se muitas vezes nos últimos cinco minutos. Até esse momento estávamos equilibrados, depois começávamos a ir de qualquer forma e apareciam os golos.

MF – E o Vítor abomina jogos descontrolados.

VP – Eu gosto de um jogo de qualidade e a qualidade tem de incorporar o risco. Se não correr risco, não corro. Mas as minhas equipas têm de arriscar. Sem anarquia. A criatividade tem de estar em cima da organização. Há muitos treinadores que preferem ganhar por 5-4, mas eu digo uma coisa diferente: se a minha equipa sofre quatro golos é sinal de que estou a trabalhar muito mal. Alguma coisa está errada. Gosto de um jogo de domínio, de controlo de todos os momentos. Tem de haver um fio condutor, uma equipa deve funcionar como um cérebro. Há várias zonas e a região criativa, que deve ser estimulada. Gosto que a minha equipa seja criativa e organizada.