O sol e a areia de Espinho são a casa de Vítor Pereira. É na Praia da Baía, em frente ao hotel onde o pai trabalhou mais de 30 anos na receção, que o treinador recebe o Maisfutebol. A conversa dura mais de duas horas e revela-se uma verdadeira lição de futebol. E de vida.   

Aos 52 anos, e a aguardar o convite certo para voltar ao ativo e a fazer o que mais gosta, Vítor Pereira aproveita para estar mais tempo com a família e reaprender a respirar bem. Algo que se esqueceu de fazer durante muitos por culpa da pressão que lhe é imposta por ele próprio. 

Nesta parte da conversa, oportunidade para voltar ao icónico «momento-Kelvin» e aos duelos que teve com Jorge Jesus durante três temporadas: uma como adjunto de Villas-Boas e duas como treinador principal.


PARTE II: «Tinha de parar, a adrenalina de ser treinador é uma droga»

PARTE III: «No golo do Kelvin eu estava a pedir para ele cruzar»

PARTE IV: «3x4x3? As 'estruturas transformers' vieram para ficar»

PARTE V: «Estive duas vezes muito perto de clubes ingleses»

PARTE VI: «Na Alemanha desci à terra e percebi que não faço milagres»

Maisfutebol – O famoso golo do Kelvin ao Benfica faz oito anos em maio. No estrangeiro viveu algum momento semelhante a esse, com a mesma intensidade e importância?

Vítor Pereira – Na vitória de 5-4 sobre o Guangzhou, em 2018. Foi na penúltima jornada, ganhámos, o jogo foi muito engraçado. Eu estava castigado, levei três jogos de suspensão. Estava na bancada e antes do intervalo desci para os balneários. Quando me levantei estávamos a ganhar e quando cheguei lá abaixo estávamos a perder (risos). Foi surreal. ‘O que se passou aqui?’ Foi um jogo marcante também, mas reconheço que o golo do Kelvin… até pelo desgaste das duas épocas, a luta jogo a jogo, ponto a ponto, é único. O pior que pode acontecer é estarmos a aquecer e o adversário direto acabar de ganhar o jogo noutro campo. Passámos de quatro a sete pontos e a pressão é enorme. Mexe muito com a equipa, desgasta. Por isso, ganhar daquela forma provocou-me uma descarga emocional muito grande. É difícil conseguir algo parecido. Para mim foi uma luta tremenda. Fiz explodir as emoções que estavam contidas. Saiu tudo cá para fora. Andamos no futebol para viver este tipo de momentos. É um sofrimento horrível, uma luta constante e depois este prazer. Estive três anos na equipa do FC Porto, fomos tricampeões e perdemos um jogo em 90. Não me posso queixar.

MF – Mantém algum contacto com o Kelvin?

VP – Depois de sair do FC Porto, não. Não sou muito de ir atrás das pessoas. Os meus amigos sabem que estou lá. Nem que esteja na China. Mas não sou muito de estimular relações, sou mais de virar a página e ver o que me dá a página seguinte. Não sou muito de ficar ligado às coisas. Quando dou o passo seguinte, vou mesmo em frente.

MF – Os duelos entre o Vítor Pereira e o Jorge Jesus ficaram na história do nosso campeonato. Mesmo nas salas de imprensa.

VP – Tivemos grandes jogos. A abordagem nesses jogos grandes tem muito a ver com o desbloqueio dos medos. Como se faz isso? Reforçando a nossa identidade. Se vamos à Luz, o que vamos lá fazer? Damos o que eles querem ou damos aquilo a que eles não estão habituados? Vamos pressioná-los, tirar-lhes a bola e não lhes dar os espaços que eles querem. Temos de perceber preferencialmente onde eles gostam de jogar, com que jogador mais gostam de jogar e são esses que fazem a diferença. Então vamos criar engodos. Jogar na Luz, para nós no FC Porto, era jogar na casa onde mais gostávamos de ganhar. Por isso fazia questão de agarrar a equipa à sua identidade e foi assim que preparei os jogos da minha equipa. O Jesus é um grande treinador e não era nada fácil jogar contra as equipas dele. No primeiro ano, ainda com o André Villas-Boas, demos 21 pontos de avanço ao Benfica.

Vítor Pereira e Jesus na noite do golo de Kelvin

MF – Nunca falou com o Jorge Jesus sobre esse momento-Kelvin?

VP – Não falei sobre o momento em concreto, falei sobre os nossos jogos de palavras. Em Portugal vive-se muito destas coisas entre clubes, da rivalidade. Nós assumimos o clube e assumimos a pele da rivalidade dos adeptos. Muito do nosso discurso fugia e ia para além do que era aceitável. Conversei uma vez com ele sobre isso. Eu tinha dito que ele era egocêntrico, era ele, ele e ele, e achei que fui para o lado pessoal. Tive a oportunidade de o ver no Fórum da UEFA e pedi-lhe desculpa por lhe ter chamado isso, não tinha estado bem.

MF – É quase impossível sofrer uma derrota apenas em três campeonatos.

VP – Chegámos a esse jogo em Barcelos com problemas por resolver e isso afetou o nosso futebol. E, é verdade, o árbitro não teve o melhor jogo da sua carreira (risos). O Sporting ainda não perdeu este ano, mas ainda é a primeira época assim. Não é fácil. O nosso FC Porto quando fazia um golo tinha muita segurança com bola, controlava o jogo de forma impressionante. Com personalidade, qualidade e não tremia. O Benfica estava à nossa frente, não podíamos perder pontos e não perdíamos mesmo. Isso era fantástico, andámos sempre a morder-lhes os calcanhares até eles falharem. E no primeiro ano fomos a ganhar 3-2 à Luz, não cedíamos. Lembro-me de perder quatro pontos em dois empates, com o Jackson a desperdiçar penáltis. Depois estivemos sempre na perseguição e conseguimos a ultrapassagem.

MF – Isso é que é treinar permanentemente sob pressão.

VP – Eu só consigo avaliar realmente um treinador depois de ele passar por um momento assim. ‘Sim, este gajo, de facto, é bom’. Quando se ganha sempre e não se sente a pressão de estar atrás e reverter, acaba por ser confortável. Estamos em cima. Até para avaliar a personalidade do treinador eu tenho de vê-lo em dificuldades. E nós estivemos muitas vezes assim.

MF – Como é que consegue controlar o seu coração depois de 90 minutos no banco e falar numa «flash interview»?

VP – Na China é fácil, não se diz nada. É só sobre o jogo, não se fala de mais nada. Simplifica muito (risos). Nos países latinos não é fácil. Agora com os estádios vazios, então, conseguimos ouvir tudo. Há muita pressão dos bancos, tenta-se condicionar tudo. O treinador pode e deve estar em pé, eventualmente mais um adjunto, duas pessoas em pé. Em alguns jogos está o banco todo em pé. Na China eles colocam o fiscal-de-linha no lado oposto do banco da casa. Em Portugal é ao contrário, é cultural. Fazer a pressão é cultural. Nós e os espanhóis somos muito assim, está enraizado. ‘Vamos condicionar, vamos para cima’. O futebol é emoção, vejo treinadores que conseguem estar de braços cruzados, não têm expressão. Eu não consigo ser assim, tenho de viver o jogo. Tenho-me procurado controlar, mas ainda marco golo de cabeça e ainda chuto no banco (risos). Às vezes tenho a sensação de que ainda estou a jogar, que estou lá dentro. É feitio? Então tenho de me controlar e mudar.